Kaltner, L.F., De Partu Virginis Mariae: Anchieta e o nascimento de Jesus. Revista BRASIL-EUROPA 135/19. Bispo, A.A. (Ed.). Academia Brasil-Europa e ISMPS





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BRASIL-EUROPA

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Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 135/19 (2012:1)
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ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2860




De Partu Virginis Mariae: Anchieta e o nascimento de Jesus


Prof. Dr. Leonardo Ferreira Kaltner,

Universidade Federal Fluminense

 

Introdução: o Humanismo renascentista português


O presente artigo remonta à pesquisa que vimos desenvolvendo, interdisciplinarmente, nas áreas de Educação e Letras Clássicas, acerca da inserção da cultura clássica greco-latina no Brasil quinhentista. Desenvolve-se, sobretudo, nossa pesquisa a partir das obras literárias escritas em latim por José de Anchieta no Brasil do século XVI. Destas obras literárias, destacamos o poema elegíaco De Beata Virgine Dei Matre Maria para o presente artigo, uma das mais representativas obras literárias do humanismo renascentista cristão no Brasil do século XVI. I


Convém, todavia, ressaltarmos que desenvolveremos, inicialmente e de forma breve, o contexto deste tema, oriundo do Humanismo renascentista português, movimento cultural desenvolvido, sobretudo, a partir da chegada do humanista Cataldus Parisius Siculus a Portugal,II no ano de 1485, na época de D. João II, conforme atestam as pesquisas do Professor Américo da Costa Ramalho.


Cataldo Parísio Sículo, humanista siciliano da família dos Parísios, foi o primeiro humanista a atuar na corte portuguesa, trazendo para Portugal as Humaniores Litterae, as Letras Clássicas da RenascençaIII. Cataldo atuou como Orator, Secretário de Assuntos Latinos de D. João II, como preceptor de nobres e como poeta, sendo figura importante na corte lusitana do século XV. Suas principais obras literárias humanísticas são as Epistolae et orationes quaedam, os livros de poemas Aquilae libri, as Visiones e o De Perfecto HomineIV.


Encontramos, em fins do século XV, outros humanistas, após a chegada de Cataldo à corte, que fomentarão o interesse pelas Letras Clássicas em Portugal, assim como Henrique Caiado, Vasco Fernandes de Lucena, D. Fernando de Almeida, D. Diogo Pacheco, dentre outrosV. Estes humanistas fomentarão o início do movimento humanístico renascentista portuguêsVI, que encontrará seu apogeu no reinado de D. João III, após o reinado de D. Manuel, o Venturoso, e ressoará no Brasil do século XVI, sobretudo com as obras poéticas em latim de José de Anchieta, que chegaria ao Brasil em 1553, com dezenove anos de idade.


No século XVI, D. João III fomentará a vida cultural de Portugal, sobretudo a partir da reforma da Universidade de Coimbra, concluída em 1537, e da fundação do Real Colégio das Artes de Coimbra, no ano de 1548VII. Ilustres humanistas participarão efetivamente da consolidação desta segunda fase do Humanismo renascentista em Portugal, como o Doutor Azpicuelta Navarro, Martinho de Ledesma, André de Gouveia, Jorge Buchanan, Diogo de Teive, dentre inúmeros outros, que atuariam como professores e autores literários, deixando-nos poemas e textos em prosa escritos em latim clássico. José de Anchieta seria um dos alunos do Real Colégio das Artes de Coimbra, quando contava então a idade de catorze anos, em 1548. 


Paralelamente a este desenvovimento na corte lusitana, no mesmo ano de 1548, foi instituído no Brasil colônia o Governo-Geral, tendo sido nomeado, então, para o cargo Tomé de Souza, como primeiro Governador-Geral do Brasil. Logo a criação de um posto de administração no Brasil possibilitaria futuramente a vinda de religiosos, saídos de Portugal, como o jovem e desenganado José de Anchieta, irmão jesuíta biscainho que viria ao Brasil para tratar-se de uma enfermidade adquirida em Coimbra, considerada então intratávelVIII.  


Outro fator que foi totalmente determinante para a vida de Anchieta, além da criação do Real Colégio das Artes de Coimbra e da criação do Governo-Geral do Brasil, foi, certamente, o surgimento da Societas Iesu, a Companhia de Jesus, fundada em 1534 por Santo Inácio de Loyola, da qual Anchieta tornou-se irmão no ano de 1551, com dezessete anos de idadeIX. Podemos apreender que José de Anchieta passou por uma formação extremamente complexa e dinâmica, o que lhe facultou a composição de obras literárias extremamente elaboradas e com um alto valor estético. Seu contato tanto com as Humaniores Litterae, as Letras Clássicas, tamém com as Litterae Diuinae, a tradição cristã, e com a PhilosophiaX, está patente em sua obra literária novilatina, que possibilita diversas possibilidades de análise, para um estudo interpretativo e comparativo, sendo este o campo atual de nossa pesquisa.


A educação de José de Anchieta na época da Renascença


Tracemos em linhas gerais, como sucedeu a educação de José de Anchieta, apoiando-nos em sua biografia, que teve como principal pesquisador contemporâneo o historiador o Professor Hélio Abranches Viotti, SJ. Sabemos que Anchieta nasceu em 1534 nas Ilhas Canárias, em Tenerife, e que, provavelmente, sua primeira educação, o primeiro contato com o latim, veio da Paróquia em que foi batizado e de seu seio familiar, o que ocorre aproximadamente do ano de 1534 até 1548. Com quatorze anos de idade, Anchieta, junto com seu irmão mais velho, Pero Nuñez viajaram de Tenerife para Portugal, rumo à cidade de Coimbra. Enquanto seu irmão mais velho iria estudar Cânones com o famoso canonista Azpicuelta Navarro, na Universidade de Coimbra, Anchieta matriculou-se no Real Colégio das Artes, não chegando, todavia, a se formarXI.


Do ano de 1548, provavelmente até 1551, ou 1553, Anchieta estudou no Real Colégio das Artes de Coimbra, em 1551 ingressou na Companhia de Jesus, iniciando seus estudos teoógicos. Em 1553 foi enviado ao Brasil, sendo ordenado sacerdote somente em 1566, após estudar intensamente Teologia no Brasil, na BahiaXII. Ao longo da obra de Anchieta, podemos encontrar um profundo conhecimento e domínio da Cultura Clássica e da Cultura Cristã. Encontramos, por exemplo, na obra De Gestis Mendi de Saa referências a praticamente todas as disciplinas do Triuium e do Quadriuium, que nos mostra o domínio de Anchieta de artes como a Astronomia e a Retórica, da época da RenascençaXIII.


Há que se notar referências também a um profundo conhecimento dos autores latinos, como Vergilius, Ouidius, e da língua grega, com uma sintaxe apurada em seus poemas novilatinos. Em relação à Teologia, encontramos na obra De Beata Virgine Dei Matre Maria um profundo conhecimento da Mariologia e um domínio pleno da tradição latina cristãXIV. Em suma, a educação de José de Anchieta reflete-se em suas obras que deixaram indícios da erudição de um dos primeiros humanistas a aportar no Nouus Mundus.


O De Gestis Mendi de Saa e o De Beata Virgine Dei Matre Maria: crítica genética


Quando nos confrontamos com a leitura dos dois principais poemas novilatinos anchietanos, o poema epicum De Gestis Mendi de Saa e o poema elegíaco De Beata Virgine Dei Matre Maria, poemas estes escritos completamente em latim, com uma longa extensão, uma das primeiras abordagens a se ter em consideração é o contexto em que esses poemas foram escritos por Anchieta. Surge a partir desta reflexão o longo caminho que percorreram ambos os poemas até terem sua autenticidade atestada e virem a lume no século XX, pelo trabalho do filólogo Pe. Armado Cardoso, SJ.


O De Gestis Mendi de Saa possui duas fontes textuais, a primeira é uma edição de 1563, tipografada em Coimbra, da qual resta apenas um exemplar que pertence ao Arquivo Distrital de Évora. A Fundação Biblioteca Nacional, no ano de 1997, editou, no Brasil, uma versão fac-similada deste livro de 1563, que foi o primeiro livro escrito no Nouus Mundus a ter sido publicadoXV.


A segunda fonte do texto do De Gestis Mendi de Saa, o poema que narra os feitos de Mem de Sá, terceiro Governador-Geral do Brasil colônia, é conhecido por Manuscrito de Algorta, um manuscrito que contém a maioria das obras literárias em latim atribuídas a Anchieta e não possui datação, mas se estima ser do século XVI ou XVII. Este manuscrito perdeu-se em um incêndio, todavia, fotos dele foram enviadas ao Brasil, das quais se utilizou o Pe. Armando Cardoso para reeditar o poema no século XXXVI.


Já o De Beata Virgine Dei Matre Maria, o poema elegíaco sobre a Virgem Maria, Mãe de Deus, possui diversas fontes. A primeira e principal fonte do De Beata Virgine Dei Matre Maria é o Manuscrito de Algorta, manuscrito este que contém também o De Gestis Mendi de Saa e outros poemas eucarísticos. Há um segundo manuscrito, conhecido como Manuscrito de Santiago, encontrado em Colégio da Companhia de Jesus em Santiago do Chile, datado do século XVII, que traz algumas variantes. Por sua vez, o poema De Beata Virgine Dei Matre Maria foi editado primeiramente por Simão de Vasconcelos em 1663 em sua obra Chronica da Companhia de JesusXVII. 


O De Gestis Mendi de Saa, obra escrita por Anchieta provavelmente entre 1560 e 1562, apresenta em seu universo ficcional a origem da civilização brasileira, tendo por efetivo fundador Mem de Sá, terceiro Governador-Geral do Brasil colonial que devotava uma grande amizade a Manuel da Nóbrega e a José de AnchietaXVIII. O universo ficcional do poema apresenta-nos a realidade da colonização no século XVI, através de uma perspectiva estética épica clássica, em que a cultura cristã dialoga com a cultura clássica.


Já o De Beata Virgine Dei Matre Maria, foi escrito provavelmente por José de Anchieta entre os anos de 1563 e 1565. Esta data é muito importante na vida de José de Anchieta, porque ficou refém dos índios Tamoio em Iperoig, durante quase todo o ano de 1563, ao buscar negociar a paz com a Confederação dos TamoiosXIX. Iperoig ficava onde atualmente temos o atual município de Ubatuba, que em sua fantástica geografia combina a essência de serras com Mata Atlântica, um ameno litoral e exuberantes praias. Neste cenário idílico, consta que Anchieta escreveu os versos latinos do De Beata Virgine Dei Matre Maria inicialmente sobre as areias da praia, memorizando estes versos para transcrevê-los posteriormenteXX.


Escrever sobre a areia: o De Beata Virgine Dei Matre Maria


O De Beata Virgine Dei Matre Maria é um extenso poema escrito em dísticos elegíacos, ao todo são quase cinco mil e oitocentos versos escritos em latim, na edição estabelecida pelo Pe. Armando Cardoso, publicada no ano de 1991. Esta obra tem por tema a vida da Virgem Maria, Mãe de Deus, narrando passagens lineares, desde a sua mais tenra infância até seu perpassamento, em um poema em que o eu-lírico dialoga incessantemente por intervenção divina, sendo um poema de devoção.


O fato de o poema ter sido idealizado por Anchieta durante a época em que esteve como refém da Confederação dos Tamoios, leva-nos a crer que há uma possibilidade inexplorada para a leitura do poema De Beata Virgine Dei Matre Maria, que possui, provavelmente, como tema assuntos que motivaram a sua negociação de paz enquanto era refém. E, através da leitura dos versos latinos de Anchieta, poderíamos talvez deslumbrar como se processou o diálogo originário da catequese do índio Tamoio, e como Anchieta negociou sua libertaçãoXXI, saindo ileso, i.e., quais foram os temas dos diálogos que travou para negociar sua sobrevivência e quais eram os questionamentos dos índios sobre o cristianismo, sobretudo em relação à devoção à Virgem Maria.


O De Beata Virgine Dei Matre Maria poderia indicar-nos qual seria o caminho para o diálogo intercultural que permitiu o estabelecimento do Brasil colônia, em um momento em que uma guerra parecia ser a única solução possível. Através da leitura do De Beata Virgine Dei Matre Maria, poderíamos encontrar indícios de como ocorreu a inicial resolução de conflito entre ambas as partes, tamoios e portugueses, que redundaria, porém em guerra, posteriormenteXXII.


Há uma tradição de biógrafos que comentam como Anchieta escreveu o primeiro esboço do poema em latim sobre as areias da praia de Iperoig. Este ato de escrever sobre a areia, extremamente simbólico, também nos relata um dos primeiros contatos entre uma civilização ágrafa indígena com a escrita. Ao mesmo tempo, Anchieta ao transformar a paisagem da praia em um livro, em um texto, inscrevendo o poema em latim, com estilo clássico ovidiano, sobre a areia, transforma o ato de escrever em um símbolo intercultural, tema este que carece de uma análise mais aprofundada.


Vejamos como exemplo do texto do De Beata Virgine Dei Matre Maria uma breve e bela passagem do poema, que é o momento do nascimento de Cristo, entre os versos 2445 e 2475, no início do VI Livro do poemaXXIII, confrontamos duas edições como fonte para estabelecer o texto.


De Partu Virginis MariaeXXIV


Tandem, Sancta Parens, reuolutis ordine saeclis,

Aduenit partus hora beata tui.


Hora tibi totis animae exoptata medullis,

Nox sacraXXV, nox omni clarior una die!


O nox, o cunctis speciosior una diebus!

O nox, natalis pulchra decore noui!


O nox, qua uerae radiant clarissima lucis

LuminaXXVI, Phoebeis splendidiora rotis!


O noxXXVII, caligo qua pellitur atra, suusque

Redditur immenso rebus in orbe colorXXVIII,


Qua Deus egreditur puerili carne uolutus,

Quem menses clausit Virginis arca nouem!


Quae, precor, o felix, quae gaudia, Virgo, medullas

Pulsarunt cordis, nocte silente, tui,


Ante tuos oculos iacuit cum paruulus infans,

Qui patris ante nouum fluxit ab ore iubar,


Processitque tua carnem uestitus ab aluo,

Damna fuit passus nec tuus ulla pudor!


Haec tibi sidereus pauitanti nuntius olim

Promisit, laetum cum tibi dixit aue.


Haec tu submissa cepisti oracula mente,

Nec tua credulitas uana fidesque fuit.


Nam tua continuo non marcescente pudoris

Intrauit summus uiscera flore Deus.


Nunc idem egreditur materni uentris ab aula,

Nec thalami reserat ostia sacra sui.


Vltima respondent primis mysteria coeptis,

VeraqueXXIX sub tacita gaudia mente foues.


Tunc formosa nimis, cum se decor ipse silenter

Clausit in hospitii tecta pudica tui:


Nunc formosa magis, cum iam sine murmure uique

Claustra pudicitiae transiit arcta tuae.


Tradução:


Sobre o parto da Virgem Maria


Enfim, Santa Mãe, atravessados os séculos em sua ordem,

Aproximou-se a hora sagrada do teu parto.


Uma hora por ti tão desejada, em toda a profundidade de tua alma,

Noite sagrada, noite mais clara do que qualquer outro dia!


Ó noite, uma só noite mais bela do que todos os dias!

Ó noite, bela pelo ornamento de um novo nascimento!


Ó noite, na qual irradiam as claríssimas luzes da Luz verdadeira,

Noite mais resplandescente do que as rodas do carro de Febo!


Ó noite, na qual a escuridão sombria é repelida, e a sua cor

É retirada das coisas nesse imenso mundo,


Noite em que Deus se eleva revolvido em um corpo de criança,

Ele que a arca da Virgem resguardou por nove meses!


Ó feliz Virgem, rogo-lhe aquela grande alegria que,

Silenciando-se a noite, tocou o fundo do teu coração,


Quando ante o teu olhar repousou o pequenino bebê, aquele que

Emanou do Verbo do Pai, perante a nova estrela da manhã. 


Ele procedeu de teu ventre, coberto pela carne,

E nenhum dano sofreu o teu pudor!


O Mensageiro celeste prometeu isto a ti apavorada, outrora,

Quando te disse a feliz saudação: Salve!


Tu recebeste estes oráculos com a mente submissa,

Nem tua crença e fé foram em vão.


Pois imediatamente, sem definhar a flor do teu pudor,

Ingressou Deus onipotente em teu ventre,


Agora Ele mesmo procede do Palácio do ventre materno,

E não abre as sagradas passagens de seu leito nupcial.


Os últimos mistérios asseguram aos primeiros já iniciados,

E tu favoreces as verdadeiras alegrias sob a mente calma.


Daí, tu és plenamente bela, quando a própria beleza, silenciosamente,

Resguardou-se nas puras moradas de tua hospitalidade,


Agora és mais formosa, quando já, sem nenhum grito e nem força,

O bebê atravessou as estreitas passagens de tua castidade.



Conclusão: aspectos literários


Das duas principais obras literárias novilatinas do Brasil quinhentista, destacamos para nossa apresentação uma passagem do De Beata Virgine Dei Matre Maria e comentamos brevemente acerca das fontes do De Gestis Mendi de Saa. Estas obras refletem, em sua composição, a formação humanística renascentista de José de Anchieta. São poemas esteticamente bem elaborados, que em conjunto demonstram haver uma profunda inserção da cultura renascentista na origem do Brasil.


Para compreendermos, de certa forma, o processo de latinização do Brasil colônia, através do estudo das relações interculturais, temos que a literatura novilatina anchietana possa ser um dos objetos de estudo mais frutíferos, sobretudo por seus escritos literários dialogarem com a essência da cultura europeia ocidental: a cultura clássica e a cultura cristã, culturas originárias, inicialmente, do oriente próximo, que alteraram o rumo das civilizações ocidentais, e posteriormente, com as navegações na época da Renascença, alteraram historicamente o rumo do Nouus Mundus.


Desta forma, convém observar que as obras de José de Anchieta podem nos revelar não só a mentalidade da época, nem só retratar os conflitos iniciais, mas, sobretudo, nos indicar quais seriam os projetos civilizatórios envolvidos na colonização e na origem do Brasil. Esta característica marcará os poemas novilatinos anchietanos, que não só estão vinculados ao Humanismo renascentista português, mas buscam, na mesma medida, criar um universo ficcional autóctone latino no Nouus Mundus, marcando a chegada de uma cultura com antigo fundo indo-europeu às AméricasXXX.



Bibliografia


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VASCONCELOS, Simão de. Chronica da Companhia de Jesu. Lisboa: A. J. Fernandes, 1865, v. 2.

______________. Vida do Venerável Padre Ioseph de Anchieta. Lisboa: Ioam da Costa, 1672.




I. Caracteriza-se o De Beata Virgine Dei Matre Maria como um poema novilatino elegíaco, que participa da tradição literária do movimento conhecido Humanismo renascentista português, da geração de  autores ligados à reforma da Universidade de Coimbra e da fundação do Real Colégio das Artes em 1548. Temos que (Cf. TANNUS, 2007, p. 20): “Finalmente, em 1537, a Universidade começa a funcionar em Coimbra, no mês de março. Importantes professores acorreram, então, ao chamado de D. João III, dentre eles os espanhóis Azpilcueta Navarro e o teólogo Martinho de Ledesma. Fundaram-se a partir de então os necessários Colégios para que os estudantes das ordens religiosas pudessem freqüentar os cursos da Universidade: o do Carmo em 1540; o de S. Pedro em 1543; o de Santo Tomás, em 1546 e muitos mais, como o de S. Jerônimo e o de S. Bernardo.” Por outro lado, soma-se à estética renascentista a temática cristã do poema elegíaco De Beata Virgine Dei Matre Maria, escrito em um padrão métrico clássico latino em que temos as obras poéticas de Publius Ouidius Naso por principal referência, mas que apresenta os ideais da formação teológica de Anchieta, enquanto jesuíta. Esta admirável fusão do pensamento clássico greco-latino e cristão é a principal característica da estética dos poemas novilatinos de Anchieta e do Humanismo cristão português da época da Renascença.

II. Cf. TANNUS, 2007, p. 13: “Diversamente do que era opinião comum há algumas décadas, o vasto movimento de renovação cultural e espiritual, mais tarde designado Humanismo, não chegou a Portugal tardiamente, como querem alguns, mas em 1485, com a vinda de Cataldo Parísio Sículo, humanista siciliano que passara pelas Universidades de Bolonha, Pádua e Ferrara. Indicaram-no a D. João II o português D. Fernando Coutinho então estudante, futuro Bispo de Lamego e Silves, e o humanista italiano Antonio Corsetti, com os quais mantinha relações de amizade. Incentivou-o, ademais, uma carta de D. João II convidando-o a vir para o reino luso”.

III. Ver CATALDO, 1988, p. 7 – 8, passim.

IV. Cf. TANNUS, 2007, p. 14 e seguintes.

V. Cf. TANNUS, 2007, P. 15.

VI. O Humanismo renascentista português pautar-se-á, sobretudo, por obras que descrevem as relações interculturais entre a Índia, África e Portugal, teremos obras sobre os combates travados, como o Commentarius de rebus in India apud Dium gestis, anno salutis nostrae MDXLVI de Diogo de Teive, obras teológicas como as de Damião de Góis, dentre outras, ver TANNUS, 2007, p. 19.

VII. Cf. TANNUS, 2007, p. 20.

VIII. Sobre a doença intratável de Anchieta, Cf. VASCONCELOS, 1672, p. 6: “porque continuando sua enfermidade por tempo de três anos, e parecendo o mal irremediável, consultados os médicos peritos, resolveram os médicos passá-los ao Brasil, terra nova onde por fama a clemência dos ares era benigna, e acomodados os mantimentos à sua compleição.”

IX. Cf. VASCONCELOS, 1672, p. 4: “Entrou enfim José, na Companhia de Jesus, deu último vale ao mundo, aos regalos da verde idade, às esperanças de sua casa, a pais, parentes e amigos; para de todo liure entregar-se a Deus. Aqui sendo somente de 17 anos (...).”

X. A viagem de Anchieta ao Brasil seria uma viagem iniciática e mística, devido às circunstâncias de sua saúde, configurando-se quase como uma catábase, em que sofreu tempestades e toda a incerteza de uma viagem rumo ao mundo desconhecido, ao Novo Mundo. Este aspecto de total incerteza e inconstância das coisas, que era comum às viagens marítimas da época dos Descobrimentos, teria gerado todo o sentimento épico da literatura deste período e é um dos aspectos centrais da poesia novilatina de José de Anchieta. Simão de Vasconcelos compara a viagem de Anchieta ao Brasil com a saga dos Argonautas. Cf. VASCONCELOS, 1672, p. 8: “Desta sorte iam vencendo as dificuldades da viagem aqueles espirituais Argonautas (...).”

XI. Na biografia de Anchieta, percebemos a sua formação humanística, iniciada no seio familiar e desenvolvida no curso de Filosofia do Real Colégio das Artes de Coimbra. Anchieta, todavia, não possuiu nenhuma formação militar, diferenciando-se de outros poetas como Camões, por exemplo, que além de sua atividade como poeta e homem de letras, também possuía formação como homem de armas. Por outro lado, Anchieta estudara em um momento extremamente complexo no Real Colégio das Artes de Coimbra, pois a Inquisição afastaria os professores do Real Colégio reestruturando-o posteriormente em 1555, a pedido de D. João III, cf. TANNUS, 2007, p. 20.

XII. Cf. VASCONCELOS, 1672, p. 111 e seguintes.

XIII. As Artes Liberais, base da Escolástica, marcariam a erudição da formação humanística também na Renascença, logo o aprendizado de Grammatica, Rhetorica e Dialectica, seguidos do estudo de Aritmetica, Astronomia, Geometria e Musica formaria a base da erudição dos humanistas da Renascença como Anchieta, sendo os estudos iniciais que antecederiam a formação filosófica, jurídica e teológica. A organização desse sistema se baseia na Antiguidade Clássica, cf. MANACORDA, 2006, 126: “Esta é uma herança greco-romana, transmitida através de Marciano Capela, que agora (na Idade Média) adquire importância ainda maior do que na época romana. As sete artes liberais que aparecem na série por ele idealizada, das núpcias de Mercúrio e da Filosofia, são definidas por triuium e quadriuium nesta época. Boécio, parece, será o primeiro a chamar as quatro disciplinas que hoje denominamos científicas (aritmética, geometria, astronomia e música): elas são um quadrívio porque por elas deve viajar quem procura os conhecimentos certos; o termo triuium entrará em uso mais tarde.”

XIV. A principal técnica de composição do De Beata Virgine é a paráfrase bíblica, reestruturada em versos clássicos. Em Iperuig, Anchieta tinha consigo uma edição da Bíblia, o Breviário e o Missal. Há também passagens no De Beata Virgine Dei Matre Maria que se remetem à obra Vita Christi de Ludolfo de Saxônia, cf. ANCHIETA, 1991, p. 57-58.

XV. Cf. ANCHIETA, 1997, p. 17: “Esta edição, vinda a público, - sem nome do autor no ano de 1563, em Coimbra, pelo tipógrafo régio, João Álvares, por encomenda de Francico de Sá, filho de Mem de Sá, - permaneceu praticamente desconhecida até as primeiras décadas do século XX. Trata-se de um poema de 2.470 versos, nas dimensões de 18x12cm, in 8º, com 50 folhas, incluindo a capa e o apêndice final de 52 versos, o qual não pertence a Anchieta, num total de 95 páginas impressas com versos de 26 linhas cada uma”.

XVI. Cf. ANCHIETA, 1991, v. 1, p. 64: “O manuscrito de Algorta foi assim chamado porque se encontrou nessa cidade da Província de Biscaia, uma das quatro que formam o país basco espanhol, não longe de Bilbao sua capital. Possuía-o a biblioteca particular de D. Luís de Lezena Leguizamón, casado com D. Feliza Zuazola, oriunda da família Anchieta”.

XVII. Cf. ANCHIETA, 1991, v. 1, p. 64 e seguintes.

XVIII. A importância histórica desses personagens no Brasil do século XVI é patente, cf. NÓBREGA, 2000, p. 17: “Quando Nóbrega chegou ao Brasil não havia diocese, nem colégio, nem convento, nem cidades, apenas algumas vilas dispersas pela costa imensa, e, ora aqui, ora ali, alguns clérigos seculares e alguns frades exclaustrados. A primeira cidade do Brasil, a do Salvador da Baía, fundou-se já com a presença e colaboração de Nóbrega, da qual foi algum tempo pároco interino, assim como quatro anos depois o iria ser de São Paulo de Piratininga, que fundou, e alguns anos mais tarde da cidade do Rio de Janeiro, que ajudou a fundar e defendeu”.

XIX. A Confederação dos Tamoios foi tema de poema homônimo do poeta romântico Domingos José Gonçalves de Magalhães, o Visconde do Araguaia, médico e diplomata que escreveu uma epopeia no século XIX dedicada ao Imperador D. Pedro II (cf. MAGALHÃES, 1856). O principal líder da Confederação dos Tamoios, que ocorreu no século XVI, o guerreiro Cunhambebe, atualmente é homenageado no município de Angra dos Reis, dando nome a um dos distritos municipais, onde o próprio Cunhambebe teria nascido no século XVI, segundo a tradição. O Decreto Estadual No. 41.358 de 13.06.2008, no Estado do Rio de Janeiro, criou o Parque Estadual Cunhambebe, reserva de Mata Atlântica, situado entre os municípios de Mangaratiba, Angra dos Reis, Rio Claro e Itaguaí, sendo fronteiriço ao Parque Nacional da Serra da Bocaina e da Terra Indígena de Bracuhy (cf. INEA, 2011).

XX. A obra novilatina de Anchieta nos mostra como aos poucos, ao longo dos anos de convívio com os indígenas, inicia-se uma aproximação do autor com o mundo indígena, logo uma indigenização no estilo do autor. Inicialmente, na Epistola Quamplurimarum rerum naturalium, escrita entre 1558 e 1560, Anchieta descreve a natureza sob um ponto de vista humanístico, totalmente integrado à natureza de São Vicente, sem, todavia, referir-se ao mundo indígena. Alguns anos de convívio de José de Anchieta com os índios, já nos remetem ao De Gestis Mendi de Saa, escrito provavelmente entre 1560 e 1562, sendo que o diálogo com os indígenas dá-se em tom épico, tratando o indígena como um referencial externo. Já no De Beata Virgine Dei Matre Maria, escrito provavelmente entre 1563 e 1565, Anchieta parece dialogar sobre a Fé com os indígenas, o poema é uma longa exposição catequética discutida em pormenores, uma obra lírico-didática escrita no Brasil quinhentista. No momento em que a comunicação direta com os índios se apresenta, então, Anchieta não se utiliza mais do Latim como língua literária e sim do Tupi, Espanhol e Português, sobretudo em seu teatro e sua lírica. Esta indigenização do autor será a contrapartida do processo intercultural de latinização do indígena, o que marcará a origem do Brasil.

XXI. A expedição de Anchieta à Iperoig iniciou-se em 12 de abril de 1563, 1º dia da Oitava da Páscoa, partindo de São Vicente e a São Vicente retornando em 22 de setembro do mesmo ano, o chefe Cunhambebe foi o principal aliado de Anchieta para a negociação de sua vida (ANCHIETA, 1991, p 29 – 37).

XXII. O conflito com os Tamoios redundaria em um grande combate no ano de 1567 no Rio de Janeiro.

XXIII. Cf. ANCHIETA, 1991, v. 2, p. 38 – 40.

XXIV. O texto latino utilizado no presente trabalho foi retirado da edição de 1865 da Chronica da Companhia de Jesu de Simão de Vasconcelos (Cf. VASCONCELOS, 1865, p. 196), obra inicialmente editada no século XVII, e comparamos o texto com a edição estabelecida pelo Pe. Armando Cardoso, SJ, no ano de 1991 do De Beata Virgine Dei Matre Maria.

XXV. Na edição de 1865, sacrae.

XXVI. Na edição de 1865, Lumino.

XXVII. Na edição de 1865, uox.

XXVIII. A imagem que se forma no poema é de uma luz saída da terra para o céu, que vem de baixo para cima, a partir do nascimento do Deus-Menino, iluminando a noite, luz esta que se opõe à luz do dia, que se inclina do céu para a terra.

XXIX. Na edição de 1865, Veraqne.

XXX. Há de se notar que o diálogo transcultural que originou o Brasil se deveu antes às mais profundas crenças e concepções de mundo da civilização greco-latina e cristã. A percepção da cosmogonia indígena foi um dos elementos que iniciou este diálogo do qual se originaria o Brasil. No ano de 1549, por exemplo, Nóbrega escreve uma carta de Salvador ao Dr. Martin de Azpicuelta Navarro, em que relata uma noção de origem antediluviana dos indígenas: “ (os indígenas) Têm notícia do dilúvio de Noé, posto que não segundo a verdadeira história, porque dizem que morreram todos, excepto uma velha que escapou numa árvore alta ” (Cf. NÓBREGA, 2000, p. 49), em outro ponto, referindo-se aos índios Goianases e Carijós, em carta escrita na Bahia também em 1549, relata: “Têm memória do dilúvio, mas falsamente, porque dizem que cobrindo-se a terra de água, uma mulher com seu marido subiram em um pinheiro, e depois de minguadas as águas desceram: e destes procederam todos os homens e mulheres” (Cf. NÓBREGA, 2000, p. 65). José de Alencar baseou-se neste e noutros relatos para compor o desfecho do romance O Guarani, cf. ALENCAR, 1992, p. 294, no romance, Peri conta a lenda de Tamandaré, o sobrevivente do Dilúvio, antes de subir com Ceci em uma palmeira, no momento da cheia de um grande rio.




Indicação bibliográfica para citações e referências:
Kaltner, L.F. "De Partu Virginis Mariae: Anchieta e o nascimento de Jesus". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 135/19 (2012:1). http://www.revista.brasil-europa.eu/135/Kalter-De-Partu-Virginis-Mariae.html