Música tradicional como patrimônio imaterial. BRASIL-EUROPA 134/23. Bispo, A.A. (ed.). Academia Brasil-Europa e ISMPS




Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Danças tradicionais romenas

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Fotos A.A.Bispo
©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 134/23 (2011:6)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2010 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2832


Academia Brasil-Europa



A música tradicional como patrimônio cultural imaterial
Da Etnomusicologia a uma musicologia de orientação teórico-cultural em contextos globais:
consequências para a discussão patrimonial
Revendo concepções de
Constantin Brăiloiu (1893-1958)

Ciclo de estudos da A.B.E. na Transilvânia. 40 anos da renovação da disciplina Folclore musical sob a perspectiva de estudos de processos culturais (Nova Difusão). Associação Cultural-Educativa Zestrea Carpatilor, Hermannstadt 2011

 
Danças tradicionais romenas

Nas relações entre a Romênia e o Brasil, o estudo de expressões tradicionais populares desempenham papel de singular relevância.

Já o início dos contatos entre os dois países, no século XIX, deu-se privilegiadamente no contexto dos estudos etnográficos. Esses, do lado romeno, inseriram-se no movimento político nacional que levou à união do Moldau com a Valáquia e à criação da Romênia. Estiveram a serviço da solidificação da identidade romena e apenas podem ser compreendidos no campo de tensões políticas da região e da Europa de sua época.

Os elos estreitos da Romênia com a França e a presença de estudantes e exilados romenos em Paris determinaram já nessa época o papel mediador da França nos contatos entre a Romênia e o Brasil. Significativamente, foi um pesquisador e político romeno o co-fundador e secretário da Sociedade de Etnografia em Paris que chegou a ser sugerido como merecedor de uma condecoração do Brasil (vide artigo a respeito da Academia Română).

No século XX, a Romênia - também através da França - continuou a desempenhar um papel importante nos estudos de expressões da cultura popular.

Para os estudos euro-brasileiros, uma personalidade merece ser particularmente salientada, a do etnomusicólogo Constantin Brăiloiu (1893-1953). Sob diferentes aspectos exerceu a obra de Brăiloiu influência no pesquisa musical brasileira e por diferentes razões merece ser êle considerado nas suas relações com o Brasil.

Constantin Brăiloiu, Etnomusicologia e renovação do estudo do Folclore no Brasil

Quando da introdução da disciplina Etnomusicologia no Brasil, que deu-se - no sentido estrito do termo - no âmbito dos cursos de Licenciatura em Educação Musical e Artística do Instituto Musical de São Paulo, em 1972, as obras e o pensamento de Constantin Brăiloiu mereceram particular consideração.

Esses trabalhos foram precedidos pelo uso de textos e gravações por êle publicados em cursos de Folclore Musical em outras instituições, realizados a partir tendências teóricas renovadoras impulsionadas pela fundação da sociedade dedicada a estudos de processos culturais (Nova Difusão), a atual organização Brasil-Europa. Esses cursos foram efetuados em estreito relacionamento com o então Museu de Artes e Técnicas Populares da Associação Brasileira de Folclore, sendo acompanhados aqui por encontros presididos por Rossini Tavares de Lima.

Passados agora 40 anos desses trabalhos, pareceu ser conveniente rever a obra e a posição de Constantin Brăiloiu à luz do desenvolvimento das reflexões teóricas das últimas décadas na área da Etnomusicologia, um ramo disciplinar que vem sendo alvo de crescente crítica teórica por parte de pesquisadores preocupados pelo desenvolvimento de uma Musicologia de orientação culturológica em processos globais e, reciprocamente, de uma Ciência da Cultura que dedica particular atenção a questões musicais.

A atualidade da discussão de questões patrimoniais, em particular àquelas dirigidas ao patrimônio "intangível", propôs a perspectiva para a reconsideração do pensamento de Constantin Brăiloiu na sua adequada inserção cultural romena.

Danças tradicionais romenas
Inserção em processos político-culturais romenianos

Os trabalhos partiram da convicção de que a obra e o pensamento de Brăiloiu não deveriam ser estudados sem a consideração do contexto histórico-cultural e político da Romênia nas suas relações com desenvolvimentos internacionais europeus. É essa perspectiva que permite que se reconheça não apenas a recepção, na Romênia, de conceitos e métodos desenvolvidos em outros centros, como também e sobretudo o papel relevante desempenhado internacionalmente por pesquisadores do país.

Nesse intento, não se pode deixar de dar particular atenção ao significado dos estudos e de anelos de natureza cultural na formação nacional da Romênia no século XIX.

A valorização do romeno como idioma e o da respectiva literatura desenvolveu-se paralelamente aos esforços de reconscientização histórica e cultural a serviço da identidade romena, da unificação e formação da nação com base em fundamentos lançados em remotas eras pelos romanos e que justificava os estreitos laços existentes com demais países latinos (vide http://www.revista.brasil-europa.eu/134/Tropaeum-Traiani.html). Pode-se dizer, assim, que questões de natureza patrimonial - o do "resgate", revitalização e conservação de bens culturais mantidos sobretudo na tradição popular - assumiram particular significado no contexto histórico-político do vir-a-ser da Romênia como estado nacional.

O relacionamento dos anelos culturais com a situação política da região surge assim como pressuposto para a consideração adequada dos vínculos particularmente estreitos dos intelectuais e artistas romenos com a França.

Essa orientação geo-político-cultural do processo de individuação romena exige também diferenciações relativamente à consideração da obra e do pensamento de intelectuais e artistas inseridos em outros contextos políticos. Não se pode esquecer que, até o término da Primeira Guerra, vastas regiões que hoje pertencem à Romênia, sobretudo a Transilvânia, a dos saxões siebenburgueses, integravam a Hungria e, esta, a Dupla Monarquia áustro-húngara. Essa outra situação política, que condicionou necessariamente diferentes enfoques do patrimônio cultural necessitaria ser mais cuidadosamente considerada ao estudar-se a significativa obra de pesquisa musical de Béla Bartók (1881-1945). (e.o. Sabin V. Dragoi, "Musical Folklore Research in Rumania and Béla Bartók's Contribution to it", Studia Memoriae Belae Bartók Sacra, 3a. ed., Budapest: Academia Húngara de Ciências 1959, 13-29).

Os estreitos vínculos dos círculos intelectuais e artísticos romenos com o mundo cultural francês possibilitam compreender o caminho seguido por Constantin Brăiloiu. Após ter estudado em Lausanne, onde, ainda muito jovem, em 1911, publicou composições para piano, passou para o Conservatório de Paris, ali recebendo formação nos anos que precederam a Primeira Guerra Mundial.

O grande nome de músico romeno em Paris era o de George Enescu (1881-1955), então já renomado violinista e compositor, membro de juri do Conservatório e que passava a desempenhar papel significativo na vida musical de Bucareste. Cumpre lembrar que músicos brasileiros que haviam estudado no Conservatório atuavam em Paris na época e que Enescu havia estudado com um violinista cubano que passara muitos anos no Rio de Janeiro (vide artigo a respeito de Enescu).

Retornando à Romênia, Brăiloiu atuou como compositor e crítico, voltando-se, porém, cada vez mais a estudos de história, estética e do folclore musical. Com a vitória dos aliados na Primeira Guerra, a Romênia experimentou não apenas um considerável aumento territorial, mas também uma nova fase na sua vida cultural e de aumento de sua influência internacional.

Brăiloiu foi um dos fundadores da Sociedade de Compositores Romenos (Societatea Compozitorilor Români), da qual seria secretário-geral (1926-1943). A partir de 1921, Brăiloiu atuou como professor de História da Música e Estética na Academia Real de Música e, em 1926, tornou-se secretário-geral da Sociedade de Compositores Romenos. O desenvolvimento da vida cultural e artística da Romênia nos anos vinte poderia ser considerado em cotejo com aquele do Brasil relativamente à intensificada política cultural francesa - agora marcada pela euforia da vitória -, pelo significado dos elos da França com os Estados Unidos e pela atenção renovada ao folclore do país.

Esse redespertado interesse pela cultura tradicional popular foi acompanhado pela preocupação de seu registro e, assim, conservação, o que manifesta a natureza patrimonial das iniciativas de pesquisa. Foram nesses intentos documentais de fixação do "imaterial" e, assim, de conservação de bens culturais que Brăiloiu distinguiu-se.

Ao realizar pesquisas de campo, que foram desenvolvidas sistematicamente em diferentes regiões da agora ampliada Romênia entre 1929 e 1930, a sua atenção foi dirigida à importância e aos problemas da fixação do ouvido através da grafia e do registro sonoro. Explica-se, assim, o significado assumido por questões relativas à transcrição musical no seu "Esboço de um método de folclore musical" ("Schița a unei Metode de folklore Muzical", in Boabe de Grâu II/4, 1931).

Também esse desenvolvimento poderia ser considerado em cotejo com aquele ocorrido no Brasil, nessa época. A intensificada preocupação pelo registro e conservação do material nos anos vinte foi acompanhada pelo desenvolvimento da técnica de gravação, e foram justamente as perspectivas assim abertas que mais marcaram a obra de Brăiloiu.

Interessando-se sobretudo pelo registro sonoro da música tradicional, convicto de que por mais acuradas ou refletidas que fossem as notações estas não poderiam substituir gravações sonoras, Brăiloiu passou a dedicar-se à realização de grandes projetos de registros sonoros no sentido de formação de arquivos. Participou, entre outros projetos, dos trabalhos dirigidos por Dimitrie Gusti (1880-1955), o fundador do Muzeul Satului de Bucareste, voltado, assim também a questões do patrimônio material (vide http://www.revista.brasil-europa.eu/134/Bucareste-Museu-Aldeias.html). Já em 1928 iniciou com os acervos de gravações para a Sociedade de Compositores Romenos (Arhiva de folklore) que deveriam fornecer as bases para um Instituto de Folclore e Etnografia. Brăiloiu foi responsável por 33 discos publicados pela Sociedade de Compositores Romenos (1930-43).

Na década de 30, a atividade diplomático-cultural de Brăiloiu merece uma particular atenção. Foi nomeado conselheiro cultural do Ministério das Relações Exteriores da Romênia, em 1938, e atuou como adido cultural em Berna, na Suiça, entre 1943 e 1946. Que essas suas atividades diplomático-culturais relacionaram-se estreitamente com aquela das iniciativas voltadas à produção e divulgação de fontes sonoras do patrimônio cultural isso demonstra o fato de ter co-fundado os arquivos internacionais de música folclórica junto ao Musée d'Ethnographie de Genebra, o qual dirigiu até 1958. Nesse trabalho, ultrapassando os limites da pesquisa romena, os seus trabalhos arquivísticos e de conservação patrimonial-sonora assumiram dimensões globais, levando-o a coletar documentos de todo o mundo. Essa iniciativa deu-se em cooperação com o antropólogo Eugène Pittard (1867-1962), que desenvolveu, na sua diversificada obra, também trabalhos na Romênia e que, a partir de 1949, fundaria a sociedade suíça de americanistas. Uma nova fase da atuação internacional de Brăiloiu iniciar-se-ia após a Guerra, quando, em 1948, transferiu-se para Paris.

Sob muitos aspectos, essa fase da vida de Brăiloiu poderia ser considerada em cotejo com desenvolvimentos ocorridos no Brasil. Os paralelos mais imediatos, porém, também compreensíveis apenas no contexto político-cultural da situação da Europa após a Segunda Guerra, manifestam-se relativamente à ação de Luís Heitor Correa de Azevedo (1905-1992). Também o estudioso brasileiro dedicara-se a questões arquivísticas e bibliotecárias, à pesquisa folclórica, passando a ocupar cargo de natureza diplomático-cultural com a fundação do Conselho Internacional de Música. (A.A.Bispo, "Zum Neubeginn musikalischer Zusammenarbeit in Europa nach Erinnerungen von Luiz Heitor Correa de Azevedo", Leichlinger Musikforum 1985, 63-69).

Brăiloiu foi nomeado, em 1948, maître de conférence no Centre National de la Recherche Scientifique, trabalhando no Musée de l'Homme e no instituto de musicologia da Sorbonne. Dando continuidade à sua obra de documentação e conservação arquivístico-patrimonial, publicou, além de 19 discos para os Archives Internationales de Musique Populaire (1948-49), 40 pela UNESCO e pelos Archives Internationales de Musique Populaire na Collection Universelle de Musique Populaire Enregistrée (Paris e Genebra, 1951-8).

Nas atividades de reconstrução da vida acadêmico-musicológica internacional após a Guerra, Brăiloiu desempenhou papel significativo. Particular menção merece a sua comunicação relativa à prática do Jodel no IV Congresso da Sociedade Internacional de Musicologia, em 1949 ("A propos du Jodel", Kongressbericht der Internationalen Gesellschaft für Musikwissenschaft, Bärenreiter 1951, 69-71).

Um dos campos de estudos de Brăiloiu que teve particular proximidade com aqueles de pesquisadores de Portugal e do Brasil disse respeito a questões do rítmo e da modalidade, em particular do pentatonalismo (e.o. "Le rythme aksak", Abbeville 1952; "Sur une mélodie russe", in P. Souvtchinsky, V. Fédorov, G. Brelet eds, Musique russe, Paris 1953; Le rythmique enfantine: notions liminaires, Paris/Bruxelas 1956). Essa proximidade pode ser explicada, em parte, pelo significado dessas questões na pesquisa gregoriana e nas suas repercussões na Pedagogia no mundo francês e de influência francesa. Assim, na coletânea dedicada a Bela Bartók organizada sob a direção de B. Rajeczky e L. Vargyas (Studia Memoriae Belae Bartók Sacra, op.cit.), e onde o Brasil se encontra representado com um texto de Luís Heitor Correa de Azevedo ("The Archaic Guitar in Brazil", 121-122), publicou-se um texto de Brăiloiu dedicado ao pentatonismo em Debussy ("Pentatony in Debussy's Music", 377-418).

Nesse artigo, Brăiloiu se refere aos elos entre a discussão teórica do modalismo e aquelas do âmbito dos estudos gregorianos, citando Léon Vallas (Achille-Claude Debussy, Paris 1944), que fazia remontar o uso dos modos por Debussy à música russa dos Cinco, e a gregorianista portuguesa Júlia d'Almendra, que, ao contrário, publicara todo um volume a respeito dos modos eclesiásticos na obra do compositor francês (Les modes grégoriens dans l'oeuvre de Claude Debussy, Paris 1950). Essa discussão também teve prosseguimento no Brasil, no âmbito das disciplinas de Etnomusicologia e Estruturação Musical em cursos de Licenciatura em Educação Musical, de 1972 a 1974. Na Europa, tiveram continuidade em encontros com Júlia d'Almendra no âmbito das atividades do I.S.M.P.S. e.V.


"A vida anterior"

Um dos escritos de Brăiloiu que se oferecem para a releitura sob a perspectiva das reflexões relativas ao "patrimônio cultural imaterial" é A vida anterior, divulgado no Brasil em tradução portuguesa já desde os anos sessenta. (in: A Música: das origens à actualidade, Enciclopédia da Plêiade, dir. Rolland-Manuel, trad. F. Lopes Graça I, Barcelos: Arcadia, 1965, 132-141)

Nesse texto, Brăiloiu apresenta em traços gerais concepções que, em consideração mais pormenorizada e à luz de desenvolvimentos posteriores da discussão teórica, dirigem a atenção a alguns aspectos básicos no relacionamento entre a pesquisa musicológica, os estudos culturais e as preocupações patrimoniais da atualidade.

A argumentação diz respeito a questões fundamentais das relações entre a pesquisa empírica e a histórica. Ponto de partida é o problema das possibilidades de conhecimento de um passado anterior àquele documentado pelas fontes históricas mais remotas. Ao tentar investigar esse passado ante-histórico, o pesquisador confronta-se com uma "muralha de silêncio", com uma era de séculos sem voz.

Esse problema, de natureza fundamentalmente historiográfica e discutido nas ciências históricas, impõe-se com particular intensidade na pesquisa musical, sobretudo devido ao fato da grafia musical ter-se desenvolvido tardiamente, havendo povos de alta cultura que a dispensam. Além do mais, a notação musical representa antes indicações e sugerências, pressupondo a transmissão viva através da memória e da experiência. A falta de documentação não significa, porém, não ter existido eras anteriores e nem a existência de continuidades que, de tempos anteriores às fontes históricas mais antigas, ter-se-iam mantido através dos séculos. Refutar essa convicção consistui o principal escopo do texto de Brăiloiu.

A crítica à concepção do primitivo e realidade material do canto

Após trazer à consciência a necessidade de consideração do passado anterior à mais antiga fonte histórica existente, Brăiloiu passa a criticar a concepção do "primitivo". Essa crítica - na verdade um lugar comum em reflexões etnomusicológicas - surge, na sua argumentação, como resultado das preocupações de cunho histórico nascidas do estudo de fontes. Como a mais antiga fonte, por mais remota que seja, pressupõe uma era anterior, seria errôneo considerar os cantos indígenas americanos como primitivos, por subentenderiam um desenvolvimento milenar. Eles não representariam um estado primordial ou de origem. Seria um êrro, sobretudo, estabelecer um paralelo entre limitações quanto ao material musical empregado, por exemplo relativamente à estrutura escalar, com uma estreiteza de consciência dos respectivos povos.

O canto indígena, em si, na sua realidade material, adquiria um valor de fonte. Sob o aspecto da discussão atual do patrimônio material e imaterial, a argumentação de Brăiloiu aproxima, assim, contrariando acepções comuns, a música ao patrimônio material. Desse fato, para êle, poderia nascer uma nova ciência, ou seja, aquela que partia da análise da realidade material da música.

Para Brăiloiu, uma fase da história do pensamento científico chegava ao fim, ou seja, aquele de aproximações especulativas. Com o trabalho sistemático de pesquisadores, criavam-se pontes entre a Europa e o resto do mundo. As fontes representadas pelos cantos transmitidos pela tradição viva - e não pela escrita - eram "históricas" por permitirem o estudo de remotas eras graças à memória, particularmente fiel em meios sem o conhecimento da grafia.

Assim, a crítica à concepção do primitivo de Brăiloiu necessita ser considerada de forma diferenciada. Ele negava a existência de música e mesmo grupos humanos que representassem o começo da evolução, refutando o uso de termos tais como "música neolítica", o interesse da pesquisa, porém, era dirigido à procura desses princípios.

Assim, o seu pensamento partia da convicção da existência de sobrevivências de remotas eras que se teriam perpetuado em sociedades sem escrita, na Ásia, na Terra do Fogo ou mesmo na Europa. Essas sobrevivências, para êle, poderiam ser reconhecidas tanto pela "identidade de raíz" como pela universalidade. Brăiloiu lembra que, em coros a quatro vozes mistas persistiam até então "estranhas sílabas" conhecidas de tradições de pastores suíços, e, até há pouco, tinham persistido, no canto de trabalhadores de Berry, fenômenos similares àqueles conhecidos de cantos exóticos. As crianças européias continuariam a repetir embriões melódicos que se assemelham àqueles da Oceânia, de Esquimós, de africanos ou de indígenas.

Dessas constatações, derivadas das análises da "realidade material" das fontes, Brăiloiu chegava à conclusão que esses fatos desafiavam o espaço, uma vez que eram encontrados nas mais diversas regiões do mundo. Lembrava que se cantava em quintas no Cáucaso e em Bali, em terças na África e na Nova Guiné, em segundas na Formosa e na Dalmácia.

Embora partindo da "realidade material", essas constatações derivadas da análise diziam respeito a "fatos imateriais primeiros", e esses também não estavam sujeitos ao tempo, ou melhor, à cronologia. Só seriam mais velhos ou mais novos uns em relação aos outros, e não relativamente a um referencial europeu. Preservados até hoje, o seu estudo levaria muito perto às origens. Nada impediria, porém, de supor-se ter havido várias origens, ou seja, de ter a música nascido mais do que uma vez e em mais do que num local em tempos mais ou menos afastados do presente.

Pensamento evolutivo nas concepções

Para Brăiloiu, seria seguro que os primeiros momentos do desenvolvimento músical, quaisquer que fossem a hora e o local do seu nascimento, teriam sido guiados por uma espécie de "ordem das coisas". Seria essa ordenação que estava sendo desvendada aos poucos pela pesquisa não-especulativa, dirigida à "realidade material" do canto.

A partir dos documentos sonoros, podia-se partir da idéia de que tudo ter-se-ia desenvolvido a partir de um primeiro som com vibrações regulares, daí partindo um avanço lento, mantido por leis físicas elementares. A partir de um primeiro som, a voz humana teria procurado atingir outros, dirigindo-se para o agudo ou o grave, por uma "entoação a esmo" ou de um "tateio musical". Seria a da primeira infância do homem: a evolução teria seguindo um caminho idêntico na humanidade e no indivíduo.

A seguir, teria havido ligações de parentesco. O mais forte deles era o da consonância. Desde que esse princípio atuasse, a música tomaria corpo. Dois sons, e sobretudo três, bastariam para a constituir, tal qual "estrêlas de uma constelação". Daqui teriam nascido conjuntos de sons que se poderiam encontrar tanto na França, na Rússia, entre os Lapões, no Havaí, entre os esquimós ou nas ilhas Salomão.

Desse sistema ter-se-iam derivado outros, cada um com um número determinado de recursos e de deficiências, que os caracterizariam e os identificariam. Essas características derivadas sistematicamente, portanto, tirariam dos resultados todo o caráter regional ou nacional. Um tal caráter apenas se tornaria perceptível quando vigorasse uma preferência coletiva quando ao uso dos recursos dos sistemas. Quando essa preferência interferisse, então entrava em vigor um processo que conduziria provavelmente a uma arte musical erudita específica, não necessariamente como a européia. Esse futuro virtual, porém, não era alvo das preocupações da pesquisa.

"O nosso olhar escruta um passado intemporal, cuja imagem os antigos 'sistemas', reconstruídos peça a peça, compõem traço por traço. Pacientemente reunidas e confrontadas, as suas locuções e as suas fórmulas imutáveis, sempre vivazes e cada vez mais familiares, põem-se a falar uma linguagem inteligível. Ensinam-nos o destino da música antes que esta tenha emergido à luz da escrita, a sua história do antes da história e, numa palavra, a sua vida anterior." ("A vida anterior", op. cit. 141)

Discussão das concepções de Brăiloiu sob novas perspectivas

Muitos são os aspectos sob os quais as concepções de Brailoiu poderiam ser discutidas. No contexto das reflexões a respeito do patrimônio, a sua argumentação, partindo de uma acepção antes dirigida à música como documento na sua realidade acústica, a aproxima do patrimônio considerado como material. Compreende-se, nesse contexto, a sua preocupação por transcrições e, sobretudo por gravações musicais e arquivos sonoros.

A partir da análise desse material, conduzida sobretudo sob perspectivas sistemáticas, Brăiloiu procura chegar ao conhecimento de "fatos imateriais primeiros", que, na realidade, dizem antes respeito a ordenações inerentes ao material, detectadas analiticamente. O patrimônio assim revelado, constituido pelos recursos e falta de recursos de sistemas, teria, segundo a sua argumentação, um caráter universal. Para a consideração de cunhos regionais ou mesmo nacionais, seria necessário estudar o tratamento preferencial desses recursos nos respectivos contextos.

Essa tarefa, porém, que Brăiloiu não se coloca, pressupõe procedimentos outros àqueles que segue. A atenção dirigida às preferências no uso de elementos intrinsecos a estruturas estudadas pela análise, leva a uma orientação teórico-cultural da pesquisa musicológica. Mesmo o estudo analítico que procura identificar constantes em determinados contextos músico-culturais pressupõe o estudo dos pressupostos culturais que levaram ao surgimento dessas constantes.

A releitura do texto de Brailoiu sob a perspectiva das reflexões patrimoniais salienta, assim, a insuficiência teórica da distinção entre "patrimônio material" e "imaterial", com a inclusão indiferenciada da música neste último. Chama a atenção, também, à necessidade de um direcionamento teórico-cultural das reflexões patrimoniais referentes à música e outras expressões da "cultura imaterial", e isso implica em ampliar o espectro das atenções de valorização e conservação do patrimônio para além daquelas manifestações que, em determinado contexto temporal-espacial, representaram determinados usos preferenciais de elementos de ordenações, no caso da música de configurações rítmicas, melódicas e outras.

Antonio Alexandre Bispo




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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "A música tradicional como patrimônio cultural imaterial. Da Etnomusicologia a uma musicologia de orientação teórico-cultural em contextos globais: consequências para a discussão patrimonial. Revendo concepções de Constantin Brăiloiu (1893-1958)". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 134/23 (2011:6). http://www.revista.brasil-europa.eu/134/Constantin-Brailoiu.html



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