Rio de Janeiro na Boêmia. Bispo, A.A..Rev. BRASIL-EUROPA 133/13 (2011:5). Academia Brasil-Europa e ISMPS





Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

_________________________________________________________________________________________________________________________________


Índice da edição     Índice geral     Portal Brasil-Europa     Academia     Contato     Convite     Impressum     Editor     Estatística     Atualidades

_________________________________________________________________________________________________________________________________




Imagens de Turnov

Fotos A.A.Bispo
©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 133/13 (2011:5)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2011 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2798




Conhecimentos do Brasil na Boêmia I
O Rio de Janeiro em
A vida de sociedade no Brasil  de Wolfgang Adolf Gerle (1781-1846)



Ciclo de estudos Boêmia-Brasil da A.B.E. No ano da morte de Otto von Habsburg-Lothringen (1912-2011). Turnov (Turnau)

 

A Boêmia, como designação de país ou região, vive na atualidade do quotidiano em contexto brasileiro sobretudo nas expressões "cristais da Boêmia", "lustres da Boêmia" e similares. A Boêmia é, assim, estreitamente associada a cristais e objetos de vidro artisticamente trabalhados, em particular aqueles de coloração rubra, lembrando grenada ou rubim. Essa imagem corresponde em grande parte à realidade, uma vez que o trabalho em vidro determinou a história econômica e cultural de várias cidades da Boêmia consistindo ainda hoje significativa atividade de labor artístico, artesanal e comercial do país.


Esse trabalho artístico em vidro foi uma decorrência da lapidação de pedras preciosas e semi-preciosas, primeiramente daqueles do país,  posteriormente também de outras regiões. Tratando-se, em parte, de uma aplicação, no vidro, de aptidões desenvolvidas no trabalho artístico em pedras preciosas, dirige a atenção a seu uso em jóias, arte que também marca a cultura de várias cidades da Boêmia.


Não apenas as aptidões ganhas na técnica e na arte joalheira influenciaram a produção de vidros trabalhados e que ficaram associados com a Boêmia; em caminho recíproco,o desenvolvimento da indústria e da arte do trabalho em cristal levou à produção de jóias em vidro, ou seja, bijouterias. Considerar a produção desses objetos de "arte menor" e mesmo massificados não é sem interesse para os estudos euro-brasileiros, uma vez que marcou a história cultural de regiões das quais provieram colonos teuto-boêmios ao Brasil, por exemplo, a cidade de Gablonz, possuidora de um museu de particular significado para pesquisas respectivas(veja artigo a respeito nesta edição).


Turnov: centro da arte boêmica de trabalhos de lapidação de gemas e em vidro


Uma outra cidade que tem a sua história econômica e cultural caracterizada pela joalheira e bijouteria e Turnov (Turnau), situada às margens do Iser, próxima à reserva natural do assim-chamado Paraíso Boêmico (Český Ráj), Ali foi fundada, em 1884, a primeira Escola Técnica de trabalho em gemas, jóias de metal com pedras preciosas lapidadas e outros tipos de adereços, broches, colares e outros.


No museu ali existente, toma-se conhecimento da importância do trabalho em pedras preciosas e semi-preciosas para os contatos da Boêmia com outros países e mesmo outras regiões do mundo. A lapidação de gemas, sobretudo as rubras da Boêmia, já praticada no século XVI, experimentou um considerável incremento nos séculos que se seguiram, sendo que, no século XVIII, eram levadas mesmo a países de outros continentes. O desenvolvimento da técnica e das aptidões artísticas locais fizeram também que para ali viessem gemas de diferentes partes do mundo para serem trabalhadas. O mesmo deu-se com a decorrente produção de objetos de vidros artisticamente ornamentados. Esses cristais passaram a fazer parte do patrimônio doméstico de famílias aristocráticas ou da burguesia de posses, mesmo em regiões coloniais. No século XIX, objetos de cristal da Boêmia eram trazidos como apreciados e valiosos souvenirs por aqueles que visitavam os balneários do país, de renome internacional. A produção de bijouterias em vidro ali se desenvolveu a partir do século XVIII, contribuindo ao florescimento de Turnov.


A constatação do significado dessas "artes menores" e de adereços nas relações entre a Boêmia e outros países dirige a atenção ao papel desempenhado pela Boêmia na história da vida social e mesmo da moda na Europa e nos países que, na América, passavam de colonias a nações independentes, imbuídas de anelos de ascensão e representação. Faz, também, que se compreenda o interesse boêmico por questões relacionadas com a vida social nas diferentes partes do mundo.


As jóias e os cristais da Boêmia ficaram associados a modos de vida de uma época marcada pelo Romantismo. A própria cidade de Turnov, situada em região de paisagens que evocam ideais românticos, com as suas florestas, rochedos e castelos medievais, teve o seu principal monumento, o castelo de Hrubý Rohozec, transformado em testemunho da força do Romantismo na Boêmia. Remontando a burgo medieval, remodelado segundo critérios renascentistas por Karl von Wartenberg (1553-1612), família a que se prende a história local, tendo sido adquirido por Albrecht von Wallenstein (1583-1634), vulto maior da Recatolização (veja artigo a respeito), o edifício, já sob propriedade da família Desfours, adquiriu feições neo-góticas em 1822.


Nesse contexto, adquire significado constatar a publicação, enm 1836, de um artigo referente à vida social no Rio de Janeiro. Esse texto foi publicado em semanário ilustrado, editado pela editora Gottlieb Haase em Praga, em alemão, e redigido por Wolfgang Adolf Gerle. ("Das gesellige Leben in Brasilien", Das wohlfeilste Panorama des Universums zur erheiternden Belehrung für Jedermann und alle Länder 22, 1836, 174).


Wolfgang Adolf Gerle (1781-1846)


Para compreender-se o escopo e as características do texto, torna-se necessário considerar o seu autor, Wolfgang Adolf Gerle, escritor hoje totalmente esquecido. As suas atividades e a diversidade de seus interesses podem ser entendidas a partir de sua formação como filho de antiquário e livreiro. Confrontado com literatura proveniente de todas as partes do mundo, de várias épocas e em vários idiomaas, dominando êle próprio também o italiano, teve a possibilidade de utilizar-se de obras e relatos de várias partes do mundo. Passou a escrever romances, primeiramente sob pseudônimos, por exemplo "Koralli ou o amor em zonas quentes" (Koralli oder die Liebe in heißen Zonen), publicado como de autoria de Gustav Erle. Usou também os pseudônimos de Hilarius Kurzweil (1001 Schnurre, 1825) e de Konrad Spät (Historien und guten Schwänke des Meisters Hans Sachs, 1818).


A partir de 1807, já com o seu próprio nome, publicou obra que testemunha o seu interesse pela natureza: "Corais e fragmentos do campo da natureza" (Korallen und Fragmente aus dem Gebiete der Natur, Praga 1807). Esse seu interesse pela natureza, associando-se àquele pelos diferentes povos, levou-o a escrever a respeito da geografia e da cultura de diferentes regiões do mundo. Unindo esses interesses àqueles de editor, realizou publicações de cunho turístico sobre cidades e regiões da Boêmia (Gemälde von Böhmen, 3 vols., 1823), principalmente sobre Praga (Prag und seine Merkwürdigkeiten, 1825) os seus balneários (; Böhmens Heilquellen, 1828; Franzensbrunn, Karlsbad, Marienbad, Teplitz, entre outras)


De particular significado é salientar a sua proximidade à cultura de cunho popular, não apenas revelada no seu interesse por lendas e estórias tradicionais, como também no seu próprio estilo e intuitos de ampla divulgação de escritos. Wolfgang Adolf Gerle não tem sido suficientemente considerado no papel que desempenhou no despertar de interesses pelos estudos do folclore da Europa Central.


A sua coleção de lendas populares da Boêmia, publicada em 1819, foi também traduzida para o inglês, contribuindo, assim, cedo, ao papel que desempenhou a Boêmia no Romantismo europeu. (Volksmährchen der Böhmen, Praga 1819).


Como autor preocupado em criar obras de cunho popular, salientou-se com a sua peça teatral "Aventura na Noite de Ano Novo", que entrou no repertório tradicional do dia de São Silvestre em Praga. Essa sua proximidade à cultura de cunho popular e o seu intuito popularizador relacionam-se com a sua tendência a assuntos humorísticos, o que se expressou nas suas muitas comédias (entre outras Der letzte April, Der Familienvertrag).


Wolfgang Adolf Gerle teve a sua obra também marcada por um acentuado interesse pela história, tanto da Boêmia, como de outras partes do mundo. Também aqui, porém, teve a preocupação de oferecer quadros, de "pintar" cenas (Historische Bildersaal der Vorzeit Böhmens, 3 vols., 1823 ss.). Foi, assim, um representante do Romantismo na Boêmia, o que é documentado pelas suas novelas, lendas e pelos seus contos e romances (Novellen, Erzählungen und Märchen, 1821; Die Liebesharfe, 1825; Neue Erzählungen, 1825; Holzschnitte, 1841). Essa sua tendência romântica manifestou-se também no seu interesse por motivos orientais (Tausend und ein Tag oder die Märchen der Solimena, 1841).


A influência mais ampla de Wolfgang Adolf Gerle na cultura da Boêmia deu-se provavelmente através dos periódicos por êle dirigidos e mesmo redigidos, entre outros o Prager Zeitung e a revista Der Kranz. Esse é o caso também do Panorama des Universums, cuja redação assumiu em 1834. (Ersch und Gruber, Wurzbach, Biographisches Lexikon und Steger, Ergänzungs-Conversations-Lexikon, 2 volumes, Leipzig 1847)


Sob esse pano de fundo, pode-se situar contextualmente o artigo dedicado à vida social do Brasil.


"A vida social no Brasil"


O artigo, limitando-se ao Rio de Janeiro, trata apenas das classes abastadas. Oferece um quadro da vida social na capital do Império, mencionando o Passeio Público e sugerindo a amenidade de suas proximidades com a praia.

As sociais no Rio de Janeiro são um tanto limitadas; o teatro (em geral ópera) e as sociedades vespertinas usuais (jogo, dança e música) são o fundamento da mesma. Além disso, tem-se um passeio público nas proximidades da praia, provido de belos terraços, alamedas, pérgolas de jasmim etc. Aqui não há falta de vida social toda a tarde, até altas horas da noite."

As palavras a respeito das jovens brasileiras são das mais elogiosas. A descrição se detém nos penteados, salientando o uso de tranças enfeitadas com fitas e o uso, em ocasiões mais cerimoniais, de diamantes e pérolas nos cabelos.

"De fato, as jovens das classes mais altas - e só dessas vai-se aqui falar - distinguem-se tanto pelos seus muitos encantos como pela sua graça. A fineza de suas formas, os seus traços amáveis, o fogo nos seus olhos, a beleza de seus dentes, e a suavidade da pele são realmente admiráveis. O seu olhar é realmente encantador, especialmente ao dançar. Ao mesmo tempo têm uma vivacidade, abertura e cordialidade nos seus modos que a todos atrai.

O seu penteado apresenta algo singular, que combina plenamente com os seus finos traços faciais. O cabelo é liso à frente, penteado para trás, deixando a testa livre, e enfeitado com delicadas flores artificiais ou naturais. Entre essas, nota-se sobretudo o Jasmim, a Polianth ou a Plumeria. Atrás, o cabelo cai em muitas tranças transpassadas de fitas, terminando em rosas. Em traje completo, essas tranças são divididas com leveza e arte, enfeitadas com pérolas e diamantes. Não se conhece pó-de-arroz; só damas de mais idade é que o usam."

O texto documenta a mudança dos hábitos no Brasil sob a influência dos costumes inglêses. Nessa época, como salienta, já quase que não se viam os antigos modos de vestir e que o autor designa como brasileiros. Constata, assim, a anglicanização da vida social do país.

"O restante do traje é totalmente inglês; só aqui e alí é que se pode ainda observar um resto do traje brasileiro. Este é um manto leve, de seda preta, preso nas costas, e que cai numa longa cauda que é segura por um serviçal. O traje caseiro é muito bonitinho, saias e corpetes são da mais fina musselina."

Dos costumes, cita o uso das cadeirinhas pelas mulheres de sociedade, que ainda nesta época não costumavam andar a pé pelas ruas.

"As jovens dessa classe andam raramente a pé. Em regra usam as assim-chamadas Cadeirinhas. Essas são poltronas portáteis, atrás graciosamente fechadas, À frente com um apoio para os pés, em cima com um teto, e ao redor com cortinas. As cortinas são abertas ou fechadas à vontade, e são em geral de tafetá vermelho-carmosim, com ricas franjas de ouro."

Os costumes masculinos são menos considerados, ainda que se saliente os bons modos e a instrução dos homens. Também aqui a influência inglêsa era dominante. Registra-se a difusão do violão pelos homens das classes mais elevadas.

"Com respeito aos homens, esses parecem ser em geral - e aqui se considera apenas os das classes mais altas - muito bem formados e instruídos. O traje inglês substituiu entre êles o antigo brasileiro, apenas raramente vê-se alguns de seus restos. Homens jovens, que tocam com predileção a guitarra, deixam crescer as unhas de alguns dedos da mão direita. Pratica-se de resto apaixonadamente a caça e o jogo."

Retornando aos passeios que o Rio de Janeiro possibilitava, cita o surgimento de novos bairros na periferia, então de alta qualidade urbana e de vida. O texto sugere o gosto bucólico que neles se refletia, dando às moradias desses bairros aspectos de casas de campo.

"Os arredores do Rio de Janeiro, por fim, são muito agradáveis e possibilitam vários tipos de passeios. Os novos bairros periféricos são muito convidativos com os seus jardins e gramados, e possibilitam uma espécie de estada de campo urbana."

Antonio Alexandre Bispo



Todos os direitos relativos a texto e imagens reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do editor.

Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "Conhecimentos do Brasil na Boêmia I. O Rio de Janeiro em A vida de sociedade no Brasil  de Wolfgang Adolf Gerle (1781-1846)". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 133/13 (2011:5). http://www.revista.brasil-europa.eu/133/Rio-de-Janeiro-na-Boemia.html



  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa: http://www.brasil-europa.eu


  2. Brasil-Europa é organização exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias e não considera nos seus textos dados divulgados por agências de notícias e emissoras. É, na sua orientação culturológica, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. Foi registrada em 1968, sendo continuamente atualizada. A A.B.E. insere-se em antiga tradição que remonta ao século XIX.


  3. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações, academias de letras ou outras páginas da Internet que passaram a empregar designações similares.