Ethos de trabalho de colonos teuto-boêmios. Bispo, A.A..Rev. BRASIL-EUROPA 133/6 (2011:5). Academia Brasil-Europa e ISMPS





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BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 133/6 (2011:5)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2011 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2791




Per laborem ad honorem
Do ethos de trabalho dos colonos teuto-boêmios no Brasil
a partir da leitura da arquitetura da Casa da Câmara de Liberec/Reichenberg



Ciclo de estudos Boêmia-Brasil da A.B.E. No ano da morte de Otto von Habsburg-Lothringen (1912-2011). Liberec/Reichenberg

 


Na tentativa de um aprofundamento maior dos estudos culturais da imigração, a consideração do contexto cultural de procedência dos colonos europeus no Brasil assume papel de relevância. As dificuldades que aqui se encontram não dizem respeito apenas ao fato de nem sempre haver dados a respeito das suas cidades de origem. Muitas vezes os antepassados procediam de famílias constituidas por membros originados de diferentes regiões de língua alemã, até mesmo ultrapassando fronteiras nacionais. Este é o caso do registro publicado de um depoimento de Renato U. Seibt. (Nova Petrópolis, Prefeitura Municipal, Secretaria de Educação e Cultura, Beitrag zur Geschichte von Nova Petrópolis: Berichte/Contribuição para a história de Nova Petrópolis, coord. Gessy Deppe, Caxias do Sul: EDUCS, 1988).


Os avós do lado paterno de Renato U. Seibt, Florian Seibt e Mathilde von Habel, eram de Karolinsfield, perto de Reichenberg, Boêmia. O bisavô, Albrecht Schwarzbold era de Chemnitz, Saxônia, a bisavó Maria Zang do Hunsrück, tendo vindo para a Linha Nova ainda antes da fundação de Nova Petrópolis. Os outros avós provinham do Steiermark e de Kärten, tendo-se mudado da Áustria para a cidade alemã de Aachen na fronteira com a Bélgica e, de lá, emigrado para o Brasil. (op. cit. 58-59)


Tais descrições complexas de situações demonstram as dificuldades de estudos culturais mais aprofundados a partir de dados genealógicos transmitidos pela memória. As regiões mencionadas são em parte próximas - tais como a de Reichenberg, na Boêmia, e a de Chemnitz, na Saxônia; a de Hunsrück, porém, é delas muito distante. Estudos de história oral e de fontes necessitariam ser acompanhados por estudos empíricos da cultura familiar, onde se deve procurar detectar contextos culturais e referenciais históricos predominantes. Para isso, porém, torna-se necessário que se tenha conhecimentos mais diferenciados das características culturais e da história das diferentes regiões.


Esse não é o caso, porém, sobretudo no concernente a cidades da Boêmia como Reichenberg, que já não possem população de idioma alemão, expulsa que foi após a Segunda Guerra Mundial. Nestes casos, ao lado de documentos das mais diversas origens, a leitura dos testemunhos visuais do passado assume papel de particular significado para a construção de uma história das mentalidades. (Veja tema em debate) Uma tentativa nesse sentido pode ser feita a partir da Casa da Câmara de Reichenberg, cidade de onde vieram muitos colonos para o Brasil.




Casa da Câmara de Liberec/Reichenberg  - presença de Viena na Boêmia do Norte


A antiga Reichenberg, atual Liberec, é a mais importante cidade da Boêmia do Norte. Banhada pelo Neiße de Lausitz, situada na bacia de Zittau, situa-se não muito distante da Alemanha e da Polonia. É limitada ao nordeste pelas montanhas do Iser e a sudoeste pelas montanhas Jeschken.


A Casa da Câmara de Liberec, construída em fins do século XIX (1892), surge como principal emblema arquitetônico da cidade, centro de sua administração e de atos civis e festivos. É, porém, antes de mais nada, um monumento de época passada, de uma situação já não mais existente da predominância da cultura alemã na região à época em que pertencia à Áustria-Hungria. Nela se reflete não apenas o progresso econômico e cultural da cidade na segunda metade do século XIX e os seus vínculos com Viena. Ela foi concebida como um monumento da cultura dos sudetos, sendo marcada por representações que surgem como sinais de seus valores e de sua auto-consciência. Em exposição no seu interior, apresenta-se a Casa da Câmara antiga e aquela que a substituiu, demonstrando o crescimento do poder econômico e da consciência de seus habitantes.


Em primeiro lugar, o observador constata de imediato a similaridade com a Casa da Câmara de Viena. Essa semelhança não é apenas devida ao fato de ter sido vienense o seu arquiteto: Franz Ritter von Neumann (1844-1905). Foi resultado evidente de uma vontade de tornar presente Viena em Reichenberg, acentuando a sua integração na Dupla Monarquia e a predominância da cultura alemã.


O arquiteto que a burguesia de posses de Reichenberg contratou era um dos mais renomados arquitetos do Império, aristocrata, também político, autor de importantes projetos que marcaram a fisionomia de Viena. Fora discípulo dos arquitetos que projetaram o anel (Ringstrasse) da capital austríaca e colaborou no projeto das casas de arcadas da praça da Casa da Câmara de Viena. Foi, também, o arquiteto solicitado para a construção da Casa da Câmara de outra cidade da Boêmia, próxima de Reichenberg: Friedland (1893).


Correspondendo às tendências do Historicismo, o edifício é impregnado de referências e associações à Idade Média e Renascença. Vinha de encontro, assim, a concepções românticas e a tendências restaurativas no âmbito do Catolicismo, ao qual os Habsburgs tão estreitamente se vinculavam. Essas tendências gerais foram, porém, aplicadas ao contexto histórico de Reichenberg. Assim, o edifício apresenta várias referências ao passado medieval da cidade e de sua região. Esta, de fato adquiriu significado na Idade Média a partir da colonização alemã no século XIII. A consciência histórica local permaneceu marcada por esse passado colonizador, da memória de abertura de florestas e de desenvolvimento comercial.


Este desenvolvimento tornou-se possível pelo fato da cidade situar-se no centro da via que unia as regiões centrais da Boêmia ao Mar do Leste. A importância da ação de ordens religiosas nesse processo de expansão alemã manifesta-se no fato de que, ao lado de Friedland, a povoação mais antiga citada nos documentos, encontra-se a dos Joanitas da Aicha Boêmica. Entretanto, Reichenberg foi também um dos centros das tendências reformistas dos hussitas, que dali procederam nas suas lutas contra os católicos de Lausitz.


Após as guerras, em meados do século XV, teve início um período de reconstrução, levando a um apogeu comercial e cultural no século XVI. Nessa época desenvolveu-se a indústria de tecidos, fomentada pela família dos von Redern, os soberanos de Friedland. Um dos vitrais da Rathaus, designado com o termo "Indústria" faz referência ao trabalho do linho e à produção de tecidos que teve ali o seu centro na Boêmia do Norte. Com a sua elevação a cidade, em 1577, recebeu armas, constituídas por duas torres, uma roda e um leão de uma cauda.


Com a desapropriação de Christoph von Redern (1591-1641), em 1620, e com a perda de uma batalha na qual lutou do lado da oposição protestante contra os Habsburgs, as terras foram entregues a A. von Wallenstein (1583-1634). Sob a sua ação, a cidade experimentou um desenvolvimento econômico, que possibilitou a Wallenstein adquirir armas e mercenários. Após o seu assassinato, em 1634, passou para a família italiana Gallas. Esse passado vinculado a Wallenstein explica o vitral que salienta a virtude de nobilidade cavalheiresca.


A cidade sofreu na guerra dos 30 anos com a passagem de armadas pelo seu território. No início da guerra, com a introdução da Contrareforma na Boêmia, e com a exigência que os seus habitantes assumissem a fé católica, nobres da região fronteiriça passaram para o reino evangélico-luterano da Saxônia.


No século XVIII, as várias oficinas artesanais deram origem a manufaturas, fundamentando o desenvolvimento da cidade.


Um semanário ilustrado de 1836, o "Panorama do Universo", tratou das cidades manufatureiras da região, salientando o papel dos trabalhos em lã e algodão. ("Die Gewerbsstädte des Bunzlauer Kreises",Das wohlfeilste Panorama des Universums zur erheiternden Belehrung für Jedermann und alle Länder III, Praga: Gottlieb Haase Söhne 1936: 27-28):


"Como a terra da região de Reichenberg é montanhosa, em geral pedregulhosa e de tão pouca produtividade que não chega a produzir os alimentos necessários para os seus habitantes, estes precisaram encontrar meios para superar essa deficiência de bens naturais através da diligência artesanal e da indústria, o que conseguiram tão bem que hoje a cidade encontra-se no mais belo florescimento com os seus trabalhos de lã e algodão, com as suas manufaturas de tecido, de meias e de linhos, assim como com as suas tecelagens de fios de algodão.


No terceiro quarto do século XVI, quatro tecelões vindos de fora se estabeleceram em Reichenberg. Cresceram tanto que já constuiram uma organização, em 1632, à qual o Duque da Friedland, Albrecht von Waldstein, concedeu muitos privilégios; apenas porém no início do século XVIII começaram, porém a especular fora dos limites da Boêmia, e ampliaram aos poucos os seus elos comerciais cada vez mais, de modo que os tecidos de Reichenberg passaram a ser enviados não apenas a todas as províncias da monarquia austríaca, mas também aos outros países alemães, à Rússia, Itália, até mesmo à Ásia, sendo que no país natal foram menos usados do que no Exterior. Conta-se, em Reichenberg, com ca. de 900 produtores de tecidos, 400 tecelães de linho e 300 mestres em fazer meias.


Em Kosmanos distingue-se a excelente fábrica de algodão do Sr. Leitenberger, cujas produções são preferidas de outras nas exposições de Leipzig devido à beleza de suas cores. Uma grande parte da produção local é vendida para o reino lombardo-veneziano. Não menos importante é a fábrica de algodão do Sr. Köchlin e Singer no vale do Iser, próxima a Jungbunzlau.


Também Hirschberg, com o seu velho castelo próximo ao lago, produzem-se obras de manufatura e industriais, em especial produtos de algodão. Não longe se encontram as ruinas do castelo de Pösig, que, pelo suposto, foi construído no século XII por imigrantes alemães."


A riqueza de Reichenberg, no século XIX, foi possibilitada pelo desenvolvimento fabril. Os muitos rios das montanhas passaram a ser utilizadas como fontes de energia, favorecendo o estabelecimento de fábricas. Máquinas de tecelagem proporcionaram o desenvolvimento da antiga indústria de tecidos. A industrialização exigiu operários, atraindo tchecos do interior à procura de trabalho. Em consequência ao aumento do operariado tcheco, a configuração da população local modificou-se sensivelmente no decorrer da segunda metade do século XIX.


O desenvolvimento econômico de Reichenberg foi devido em grande parte à família Liebig, industriais de tecidos. Os seus nomes surgem como doadores de um grande vitral (Veja ilustração no Índice desta edição). A firma Liebig havia sido fundada pelos irmãos Franz Liebieg (1799-1878 e Johann Liebieg (1802-1870, originarios de Braunen, em 1822. Adquiriram, em 1828, umd grande tecelagem, transformando-a na mais importante da Europa. Os seus produtos passaram a ser exportados para a América do Sul e Central. Em fins do século XIX, a firma empregava, sob condições trabalhistas modelares para a época, ca. de 3000 trabalhadores. Assim, criou-se uma cidade operária aos moldes de cidades jardins, com infraestrutura social avançada, inclusive com jardins-da infância. A firma de Liebzig de Reichenberg tornou-se a maior empresa da Dupla Monarquia. A sua prosperidade econômica manifestou-se também no seu empenho pelas artes. Criou-se importante coleção de obras artísticas, hoje cerne do importante museu Oblastní.


A população judaica em Reichenberg, de origens documentadas no século XVII, adquiriu tal significado que, entre 1887 e 1889 construiu-se uma sinagoga em estilo renascentista.


Período posterior à Primeira Guerra


O período de apogeu de Reichenberg - a sua "idade de ouro" - terminou com a Primeira Guerra Mundial.  Após o término da Guerra, a cidade passou, em novembro de 1918, por pouco tempo a capital da Província alemã-austríaca da Boêmia Alemã. Teve início, porém, a ocupação do território pelos militares tchecos e ao exílio das autoridades alemãs, que fugiram para a Saxônia.


A fundação da Tchecoslováquia levou à perda dos mercados na Áustria, Hungria e Jugoslávia, principal rêde comercial da cidade á época do estado multinacional austro-húngaro. Em fins dos anos 20, passou a ser alvo da propaganda nacionalsocialista. Em 1938, com a presença de tropas alemãs, Reichenberg foi integrado ao Império Alemão e administrada no âmbito dos Territórios Sudeto-Alemães pelo Comissário Konrad Henlein (1898-1945). Em 1939, Reichenberg tornou-se capital do Reichsgau Sudentenland.

Com o término da Segunda Guerra e recriação da Tchecoslováquia, em 1945, os sudetos, em grande parte desapropriados, foram expulsos para fora das fronteiras. A estrutura de apoio aos expulsos passou a ser apoiada em Augsburg, em 1955. Ali criou-se um arquivo (Heimatstube Reichenberg) e um Círculo (Heimatkreis Reichenberg - Stadt und Land e.V.).


Em 2001, criou-se uma parceria de cidades entre Augsburg e Liberec. Esse intercâmbio é promovido pelo jornal Reichenberger Zeitung, pelo anuário Jeschken-Iser Jahrbuch e pela fôlha Reichenberg Heimatblatt.


Após a Revolução de 1989, a cidade passou a experimenter uma renovação. Com novos investimentos, deu-se início ao trabalho de reconstrução. O centro antigo da cidade encontra-se hoje renovado. 


Antonio Alexandre Bispo




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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "Per laborem ad honorem. Do ethos de trabalho dos colonos teuto-boêmios no Brasil
a partir da leitura da arquitetura da Casa da Câmara de Liberec/Reichenberg". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 133/6 (2011:5). http://www.revista.brasil-europa.eu/133/Reichenberg-ethos-de-trabalho.html



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Casa da Câmara de Liberec/Reichenberg
Fotos A.A.Bispo
©Arquivo A.B.E.