Pernambuco na Boêmia. Bispo, A.A..Rev. BRASIL-EUROPA 133/15 (2011:5). Academia Brasil-Europa e ISMPS





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BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 133/15 (2011:5)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2011 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2800





Conhecimentos do Brasil na Boêmia III
Pernambuco em
"Uma viagem no Brasil" de Wolfgang Adolf Gerle (1781-1846)



Ciclo de estudos Boêmia-Brasil da A.B.E. No ano da morte de Otto von Habsburg-Lothringen (1912-2011). Kost, 2011

 

Há 100 anos, o historiador Josef Pekař, significativa personalidade da historiografia tcheca, professor da Universidade de Praga e, posteriormente, também decano e reitor, publicou um trabalho sobre o burgo Kost, monumento histórico-arquitetônico situado na região do "Paraíso Boêmico" (Kniha o Kosti, 1910/11; 2a. ed. Praga: Melantrich, 1935). Nesse seu trabalho, após considerar a história do burgo e de seus proprietários, trata da condições de vida dos habitantes da região. Considera assim relações entre a gente do povo e os senhores, ainda que tratadas sob a perspectiva conservadora que foi criticada posteriormente pelos seus oponentes marxistas.


O contexto de Kost e a passagem dos 100 anos da publicação da monografia surgem como adequados para a consideração de um texto relativo ao Brasil, publicado em Praga, e que também é voltado à descrição das condições de vida do povo sujeito a senhores. Trata-se de "Uma viagem no Brasil", publicada em 1836 na revista "Panorama do Universo", redigida por Wolfgang Adolf Gerle. Esse artigo seguiu outro texto referente à vida de sociedade no Brasil publicado no número 22 dessa revista. Aqui também vale as considerações feitas a respeito do autor no respectivo artigo desta edição: Gerle demonstra, neste texto, o seu interesse pela geografia, pelos diferentes povos, pela cultura do povo e, ao mesmo tempo, o seu estilo de características populares e o seu intuito popularizador. Esse seu intuito correspondia também ao escopo do semanário, que, como o seu nome indica, era o de oferecer um muito acurado panorama do universo para a ilustração bem humorada e leve de qualquer leitor, de todos os países. ("Eine Reise in Brasilien", Das wohlfeilste Panorama des Universums zur erheiternden Belehrung für Jedermann und alle Länder 22, 1836, 175-6).


Para os estudos euro-brasileiros, desperta particular interesse constatar a presença do Nordeste, em particular de Pernambuco, na Boêmia do século XIX. Tal fato serve para demonstrar que, nos estudos relativos aos pressupostos culturais dos colonos boêmios que vieram ao Brasil não se pode apenas partir da idéia de que a imagem do Brasil tivesse sido apenas marcada por informações relativas às regiões de imigração do sul do Brasil.


Relato de uma viagem em Pernambuco - modos de vida "autênticamente brasileiros"

O redator do Panorama do Universo baseou-se, no seu texto, em relato de um viajante do qual não dá o nome. O seu conteúdo parece indicar o uso de uma fonte mais antiga do que aquela do texto precedente na revista, dedicado à vida social no Rio de Janeiro. Considerando-se as atividades de antiquário de Gerle, compreende-se que, para a sua revista, procurava dados nos mais diversos textos disponíveis. Assim, os textos referentes ao Brasil surgem em caderno dedicado sobretudo ao Japão.

O relato diz respeito a uma viagem de uma semana realizada a partir de Recife e a êle retornando. A rota da excursão passou por Olinda, Paulista, Utringa, Pindoba, Santa Cruz, Bom Jardim e Limoeiro. Foi feita em companhia de um capitão-mór que se dirigia às suas plantações de algodão. O viajante faz observações de significado para os estudos histórico-culturais. Descreve, assim, a sua alegria em entrar finalmente na "paisagem" após Olinda, em região ainda coberta de matas, oferecendo imagens da vida da população e de características de seu modo de vida que lhe pareciam autênticamente brasileiras.

"Saí de Pernambuco - diz um recente viajante - na companhia de um capitão-mor, que queria viajar pelo seu distrito. Partimos na mais linda manhã, logo passamos por Olinda e entramos finalmente na natureza. Vê-se muita floresta, muitos campos de mandioca, que se reconhece de imediato no seu verde escuro, e uma quantidade de cabanas de camponeses, distribuidas pitorescamente entre os grupos de árvores.

Essas cabanas são cobertas com folhas de coqueiros e têm uma aba de telhado saliente com uma espécie de corredor à frente. As rêdes de dormir, as rêdes de pesca e as garrafas de cabaças penduradas, o mulato que sela o cavalo, o jardinzinho com as touças de jasmim, as janelas de madeira entrelaçada, onde se encontram os vasilhames de bebida, atrás das quais se escondem as jovens tímidas, - tudo parece autenticamente brasileiro."

Zona de canaviais - Paulistas

O autor do relato descreve a passagem da zona marcada pela mata àquela dos canaviais, dando expressão à mudança de atmosfera que sentiu. O texto oferece aqui uma imagem da vida dos trabalhadores de ascendência africana. A menção de que seriam libertos em breve, tendo sido já preparados para a liberdade através de educação adequada surge como significativo para estudos da história da emancipação, considerando-se tratar-se de um texto de época relativamente remota.

"Logo, porém, a paisagem ficou mais silvestre, não víamos mais nem casas nem plantações, e tínhamos dos dois lados do caminho densa floresta. Tanto mais agradavelmente ficamos surpreendidos quando vimos à nossa frente ao redor do meio-dia a plantação de cana dos Paulistas.

É um sentimento muito particular aquele que se tem quando se sai da floresta, com caminho estreito, apertado, escuro, e se entra numa planície ampla, livre, clara. O ar, que antes era quente e abafado, torna-se de repente fresco e refrescante. Vê-se a casa comprida, de um só andar, com os seus telhados que caem bem baixo, a capela com a sua grande cruz de madeira, o moinho de açúcar, aberto de todos os lados e apoiado em colunas de pedra; as cabanas de negros, que se estendem ao longo; a moradia do capitão com o seu jardim, e as grandes mangueiras ao fundo, o gado às margens de um riacho, finalmente os campos de cana e mandioca - tudo distribuido numa ampla área, e cercado com um largo fosso.

O proprietário dessa plantação era um parente próximo do capitão-mor, e um ancião de quase 80 anos. Êle não pode nos receber pessoalmente por estar doente; arriamos por isso na casa do seu filho, o padre, visitamos porém de pronto a dona da casa.

Ela estava sentada com as suas duas filhas numa sala grande, cercada de uma quantidade de negrinhos. Estes brincavam no meio a cães, à vontade pelo chão, o que parecia dar muito prazer a todas as senhoras.

A mãe tinha 70, a filha mais nova 50, o irmão 61 anos. Êle nos disse que, após a morte do último membro da família, todos os seus negros - no total 70 - seria dada liberdade. Êles haviam sido preparados também com uma adequada educação, aprendizado de artesanato etc."

O comer a "modo brasileiro" - "tudo de qualquer jeito e em grande quantidade"

No seu relato, o autor, que oferece observações de interesse para estudos culturais do quotidiano, dá particular atenção aos modos de mesa que observou, registrados em diferentes ocasiões.

"Às cinco horas da tarde demos continuidade à nossa viagem. Era fim de janeiro, ou seja, em pleno verão brasileiro, só o vento que vinha do mar refrescava o ar de forma muito agradável. Passamos por várias plantações de cana. Uma delas, chamada Utringa de Baixo, situa-se numa caldeira cercada de elevações com matas. Ela se alcança apenas por degraus numa trilha estreita; assim parece ser totalmente separada do resto do mundo. Através dessas matas andou-se assim até a propriedade do capitão-mór. A moradia era grande, a aparelhagem velha de um século. Serviu-se todo o tipo de comida; tudo era a modo brasileiro, sem qualquer ordem, de qualquer jeito."

Trajes militares e uso de pijamas na vida doméstica

Com as suas referências aos hábitos ao comer, ao uso de roupas de dormir e trajes sumários na vida diária e à informalidade nos modos de recepção o autor manifesta o quanto lhe pareceu estranho esse quotidiano no Brasil e, ainda que de forma não explícita, crítica cultural.

"Na manhã seguinte partimos bem cedo. Tínhamos uma forte jornada até a plantação de algodão Pindoba. Essa servia por sinal a local de reunião para a vistoria dos quadros do distrito. Pelo caminho juntaram-se a nós vários oficiais. Todos usavam o uniforme usual, azul escuro com vermelho, completado com um chapéu redondo com penas curtas. As calças largas Nantin nas botas de boca estreita não davam a melhor das impressões.

A região era muito bem cultivada; passamos por vários canaviais. Na de Santa Cruz já era meio-dia. Para além dela começa a região do algodão. À tarde, às seis horas, alcançamos Pintoba, cujo proprietário nos recebeu à porta. Ele estava de pijama e chinelos, e usava apenas camisa e cueca - um sinal de prosperidade no costume brasileiro.

O nosso grupo contava agora com 18 pessoas; comemos e bebemos à vontade. Apenas um único copo corria. Depois fumou-se e tocou-se guitarra. O nosso hospedeiro sentava-se numa mesa e tinha um pau de pelo menos 6 pés. Por fim, as rêdes foram penduradas em duas salas grandes, e cada um tomou conta de uma como bem quis.

Na manhã segundo teve lugar o recrutamento, talvez três companhias de ordenanças ou de guarda da terra. A gente apareceu em geral apenas vestidos comumente, quase todos porém traziam boas espingardas. Ao meio-dia tivemos um almoço muito brilhante; o dono da casa serviu  pessoalmente o capitão-mór. Havia uma grande quantidade de pratos, tudo em enorme quantidade, como é aqui de costume. Cada um pegava o que queria, passando às vezes por cima de três ou quatro pessoas. Nisso, um tirava do prato do outro sem cerimônia o melhor bocado, sujando toda a toalha. Isso não preocupava a ninguém. Bebeu-se também a valer, ainda que houvesse apenas um único copo para seis ou sete pessoas."

Religiosidade em Bom Jardim, agitações e queimadas

No dia seguinte ia-se a Bom Jardim. Este é um povoado considerável com ca. de 500 habitantes, a boa hora e meia de Pindoba. Localiza-se na descida de uma elevação íngrime; a terra ao redor é vale como sendo a melhor para plantar-se algodão. Assisti á missa, e não me surpreendi pouco com a quantidade de gente presente. Só que escutei que havia nas matas muitas agitações escondidas que não era sem significado para a população.

Para retornar a Recife, tomamos após o almoço uma outra estrada. Nessa vimos queimar uma parte da mata. Isso não é raridade no verão. O pessoal da terra toma fogo das casas, para acender cachimbos, e o joga sem mais nem menos na vegetação. Essa pega fogo na hora, as chamas se espalham por horas, e sobe frequentemente acima dos cumes. Mesmo quando o fogo finalmente apaga, fica a brasa ainda por longo tempo sob as cinzas, e se incendeia novamente com a primeira lufada de ar.

Assim chegamos a Limoeiro no Capibaribe, que também é um povoado considerável de 600 habitantes. Entretanto, tem apenas uma única rua, que no seu fim acaba na igreja e na casa do padre. Os habitantes fazem comércio considerável com o interior, por isso há um grande mercado semanal. Não há falta de brigas, que porém raramente são acompanhadas por crimes de morte. - Sem maiores aventuras alcançamos depois de ausência de oito dias Pernambuco de novo."

Antonio Alexandre Bispo



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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "Conhecimentos do Brasil na Boêmia III. Pernambuco em "Uma viagem no Brasil" de Wolfgang Adolf Gerle (1781-1846)". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 133/15 (2011:5). http://www.revista.brasil-europa.eu/133/Pernambuco-na-Boemia.html




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