"Costumes e caráter dos brasileiros" de W.A.Gerle. Bispo, A.A..Rev. BRASIL-EUROPA 133/16 (2011:5). Academia Brasil-Europa e ISMPS





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BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 133/16 (2011:5)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2011 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2801




Conhecimentos do Brasil na Boêmia IV
"Costumes e caráter dos brasileiros
" de Wolfgang Adolf Gerle (1781-1846)




Ciclo de estudos Boêmia-Brasil da A.B.E. No ano da morte de Otto von Habsburg-Lothringen (1912-2011), Český ráj , ruínas de Trosky

 

A imagem romântica que a Boêmia adquiriu no século XIX e que, em parte, perdura, foi determinada pela suas condições naturais e pela sua história, pelas suas montanhas rochosas e florestas, pelos seus muitos burgos e castelos medievais, pelas ruínas e reconstruções neo-góticas. O pensamento volta-se a um passado distante, o da Idade Média, sufocado pelas muitas guerras que assolaram a região, dos conflitos hussitas à Guerra dos Trinta Anos. Foi uma região marcada por violências, pela existência de vultos audaciosos, alguns de conduta questionáveis e que desempenharam poder local.


A ruína por excelência, o que se manifesta no seu próprio nome, é a do burgo Trosky, na região de florestas e rochas do assim chamado "Paraíso Boêmico", próximo a Semily e entre Turnov/Turnau e Jičín/Tschechin . Essas ruínas dirigem a atenção a esse passado de violências, marcado pela ação de cavaleiros-ladrões que, atuando nessas regiões afastadas, apesar de seus desatinos, desempenharam papel de liderança e controle. A ruína é dupla, pois consta de duas torres que, tais como irmãos gêmeos, se elevam sôbre duas altas montanhas de basalto. O cimo mais baixo, mais amplo, recebe a denominação de "mulher velha" (Baba), o mais elevado e mais esbelto, também mais dificilmente acessível de jovem ou "virgem" (Panna). Pela sua localização, o burgo adquiriu a fama de ser inexpugnável. À época do Romantismo, encantou a poetas e artistas, sendo motivo muitas vezes reproduzido.




O castelo na sua configuração dupla é documentado já em fins do século XIV como sendo de propriedade da estirpe von Wartenberg, importante na região, passando logo ao rei da Boêmia Wenzel IV (1363-1419). Após a propriedade ter passado para o domínio de Otto, "o Velho", o seu filho, Otto "Júnior", convicto católico, conseguiu resistir a um assédio de hussitas, em 1424. Com isso, o castelo entrou na história como um marco da resistência católica.


Logo a seguir, porém, foi destruído por um incêncio e capturado por um ladrão-cavaleiro, Christoph Schof von Helfenburg. Os bandidos, que dominaram a região e exerceram contrôle sobre a sua população, apenas puderam ser afugentados com o apoio de uma liga de seis cidades de Oberlausitz. Vendida ao senhor de Kost (veja artigo a respeito) em 1452, a região continuou a ser assolada por homens prontos a exercer violência, sendo capturado por um militar real. Após ter passado à propriedade do senhor de Hrubá Skála (veja artigo a respeito nesta edição), perdeu o seu significado. Na Guerra dos Trinta Anos, foi tomado várias vezes pelos suecos; com a vitória do exército imperial, em 1648, incendiou-se, caindo no abandono.


Nesse contexto, surge como significativo considerar a atenção dada aos "valentões" no Nordeste do Brasil em texto publicado em Praga, em 1836. Trata-se de um artigo de título "Costumes e caráter dos brasileiros", publicado em 1836. (Wolfgang Adolf Gerle, "Sitten und Charakter der Brasilianer", Das wohlfeilste Panorama des Universums zur erheiternden Belehrung für Jedermann und alle Länder 23, 1836, 179-180). Para a compreensão desse artigo e do interesse do seu autor em publicá-lo, torna-se necessário considerar o campo de interesses do seu autor no contexto de suas atividades. Também aqui Wolfgang Adolf Gerle demonstra o seu interesse por geografia e pela cultura popular. (veja artigo relativo a Turnau, nesta revista)



"Costumes e caráter dos brasileiros" segundo "estórias"


Diferentemente de textos em publicações de natureza etnográfica ou em relatos de viagem, esse texto de Gerle baseia-se em anedotas, boatos e características culturais e de comportamento percebidas como singulares e jocosas por europeus que visitaram o país. O interesse por assuntos picarescos do seu próprio país, a Boêmia, que se reflete em parte na sua obra, é dirigido aqui ao Brasil, em particular ao Nordeste. O texto de Gerle assume, assim, particular interesse para um estudo de história das mentalidades.


As estórias transmitidas por Gerle serviam à intenção de instruir de forma amena e divertida os leitores a respeito do grau da cultura brasileira. Esse intuito correspondia ao escopo do semanário.

"O Brasil oferece im geral ainda todas as expressões de um estado social imperfeito. Num país de extensão tão extraordinariamente grande e relativamente pouco povo não poderia ser diferente. Aqui damos algumas anedotas características, das quais se pode julgar o grau da cultura brasileira em geral."

Gerle não tira das estórias, em geral, lições explícitas; deixa, porém, com os desfechos incompreensíveis e paradoxais do ponto de vista europeu, que os leitores percebam a vigência de uma outra mentalidade no Brasil. Em particular, surgem como estranhas certos aspectos de comportamentos e falta de punição de crimes. O texto de Gerle representa aqui um documento que prova o conhecimento, na Europa Central, de situações sociais e culturais que poderiam ser consideradas no amplo complexo do cangaço.

"Um plantador havia decaído tanto por sua própria culpa, que possuia apenas quatro escravos. Êle tinha feito muitos inimigos, no Brasil se vinga sanguinolentamente por qualquer ofensa. Por isso, fechava toda a noite as suas portas e janelas cuidadosamente, uma vez que apenas um de seus escravos estava apto a trabalhar. Uma noite, duas horas após o cair do sol, apareceram três homens á frente de sua casa e pediram abrigo em uma das casas da fazenda. O proprietário respondeu, sem abrir, e deixou que fossem ao alambique.

Uma hora mais tarde bateram mais uma vez e um deles pediu um cesto de bananas a troco de dinheiro. O plantador não negou, abriu descuidadamente a porta e deu-lhes as frutas. Nesse momento, dois dos estranhos atiraram, indo o tiro na parte inferior do corpo. O homem teve mesmo assim coragem, tomou um facão, que estava pendurado nas proximidades, empurrou os criminosos e trancou a porta. Passaram-se 24 horas até que fosse assistido; mesmo assim, saiu com vida. Os criminosos, conhecidos, não foram presos."

Das estórias incluídas no texto, Gerle manifesta ter dado especial atenção a uma "normalidade" da violência no Nordeste. Ao mesmo tempo, indica comportamentos questionáveis nas relações sociais, manifestados em atitudes de arrogância de brancos para com pessoas de côr. Apesar disso, de forma a deixar o leitor atônito, esses senhores orientavam-se segundo valores cristãos do perdão.

"No Brasil, o sábado é o único dia de matança na semana. Isso acontece em todas as fazendas de um distrito, um após o outro, de modo que se pode fazer uma espécie de mercado de carne. Nessas ocasiões ajunta-se então toda a vizinhança.

Um dia, aconteceu que um jovem mulato estava ocupado em embrulhar a carne que comprara, quando apareceu um branco rico a cavalo. O mulato deu-lhe pouco ou nenhuma atenção, recebendo por isso uma paulada bastante forte. 'Espere, eu quero ensiná-lo' - disse - 'a tirar o chapéu quando um branco passa!'

O mulato não deu uma palavra, tirou porém o seu grande facão de carne, enterrou-o no peito do branco e distanciou-se. O plantador, ferido mortalmente, expirou dentro de alguns minutos. Apenas teve tempo de acusar-se a si próprio e de perdoar o malfeitor. Este voltou após algumas semanas à sua terra, sem que se falasse mais no assunto."

A diferença das mentalidades é salientada por Gerle numa estória que se teria passado de fato na realidade e que demonstrava uma tendência a expressões exageradas de ameaças, aos mal-entendidos daí decorrentes e da esperteza dos homens, o que influenciava até mesmo as relações entre governantes e governados.

"Mais ou menos há 15 anos aconteceu o seguinte caso. O governador de Pernambuco estava extremamente irritado com um plantador do interior e mandou por isso um sargento para prendê-lo. 'O plantador ou a sua cabeça!' - Esse foi a ordem curta mas firme do Governador.

O sargento pôs-se a caminho, chegou, mostrou a sua ordem, e não se esqueceu de acrescentar o que podia fazer em caso de necessidade. O plantador, que era ao mesmo tempo capitão-mor, pegou imediatamente um saco com moedas, deu-o ao sargento, mandando recomendações ao Governador, dizendo que êle mesmo iria logo ao Recife. O sargente pegou os cobres; separaram-se satisfeitos. Nesse meio termo, o sargento imaginou um truque. Comprou, a caminho, um carneiro, cortou-lhe a cabeça, enfiou-a num saco e fechou-o. Ao chegar a Pernambuco foi imediatamente ao Governador, atirou-lhe aos pés a carga ensanguentada e disse, sem piscar:

'A sua ordem foi feita - o capitão-mor não quis vir -. Aqui está a sua cabeça!' - O Governador levantou-se surpreendido: 'O quê? Você o matou mesmo?!' - 'Sim!' - foi a resposta - 'Como o Sr. tinha mandado!' - O Governador fêz um gesto para que se afastasse, e fêz a si mesmo mil acusações pelo que havia feito.

No outro dia de manhã - veja, quem se anunciava? - Nenhuma outra pessoa do que o plantador de Monjoré. Explicaram-se mutuamente; em poucos minutos estava tudo resolvido. O Governador prometeu a si mesmo nunca ser de novo tão apressado, o sargento ficou com o dinheiro, e o fazendeiro saiu de novo rindo com o seu cavalo."

Meios para o alcance e a manutenção de poder de capangas

Tema predominante nas estórias transmitidas por Gerle é o da auto-justiça e da posição de poder de líderes de grupos de capangas. No exemplo de um desses líderes, denominado de Pedro, sugere o caminho e os meios por êles utilizados para conseguir e manter situações de poder, desafiando a própria Justiça.

"Vinte horas do Recife há um canavial conhecido pelo nome de Agua Azul. Pedro o tinha recebido de empréstimo do Govêrno, soubera, porém, tornar-se dono. Para isso construiu a casa ao lado do alambique no alto de uma elevação que havia no meio da proprietade. A essas casas levava um só caminho estreito, que serpenteava o morro. Ao redor da elevação se estendiam as terras, cercadas por um fosso fundo, com uma cerca de paus por fora. Vários cachorros bravos ficavam no terreno, especialmente perto da casa. Além do mais, Pedro dava a cafajestes e criminosos de todo o tipo - com exceção de ladrões - proteção e segurança. Êles se mudaram para as matas fechadas vizinhas, e estavam a seu serviço num primeiro sinal.

Assim, Pedro vivia como um senhor independente, temido por todos os vizinhos, até mesmo pelo Governador, que deixava que continuasse a assim agir despreocupadamente. Coitado daquele que ganhava o ódio de Pedro ou que chegava perto de algum do seu pessoal! Era morto e as suas coisas eram queimadas. Às vezes, porém, quando Pedro estava de bom humor, resolvia as coisas de forma menos cruel.

Uma vez, por exemplo, apareceram dois mensageiros do juiz na plantação, e ensinuaram haver um decreto de execução por causa de dinheiro a receber. Pedro assobiou com os dedos e na hora vieram os seus capangas, com os quais falava por sinais. Na hora pegaram os dois, arrastaram-nos e os amarraram junto com os cavalos no moinho de cana. Depois de terem puxado sete ou oito minutos, não deixando de receber pancadas, foram desamarrados, e mandados embora com a menção que Pedro só pensava em pagar dessa forma."

Os "valentões" do sertão de Pernambuco considerados na Boêmia

Para os estudos culturais brasileiros, o texto de Gerle apresenta o particular interesse de documentar o conhecimento, na Europa Central, dos assim chamados "valentões", abrindo novas perspectivas para o tratamento de questões sociais e sócio-culturais no Brasil.

Diferentemente de grande parte do seu artigo, a estória é aqui precedida por uma descrição do fenômeno constituído por esses "valentões". Sugere, ainda que levemente, a constituição desses grupos e sua coesão interna. Menciona, de passagem, adereços que indicam elos com práticas religiosas e que possibilitam ser estudados sob esse aspecto. Esses "valentões" surgem como sendo as verdadeiras autoridades no mundo do sertão nordestino, prontos a atos de violência, tendentes a "tirar desforra" mas, ao mesmo tempo controladores da segurança de festas e imbuídos de idéias morais.

"Ainda precisamos, finalmente, mencionar os assim chamados valentões, uma espécie de renomistas nacionais, que, por assim dizer, não podiam ser encontrados em nenhum lugar. Eram pessoas de todas as classes, mas unidos com a mesma coragem, do mesmo espírito de independência e a mesma tendência à aventura. Traziam corrente de bolinhas verdes no pescoço, que diziam dar uma espécie de força encantada contra todos os perigos. Eram armados com espingardas, pistolas e facas grandes; também levavam grandes cães, acostumados à aguardente. Os valentões viviam à custa pública; por todo o lado as pessoas davam-lhes presentes de mêdo dos seus atos. Em especial, cuidavam de aparecer nas festas, quando só a sua presença mantinha a ordem. Nunca permitiam que se iniciasse uma briga, ou que se molestasse uma moça. Ao mesmo tempo, exigiam para si mesmo obediência e respeito. Muitas vezes ficavam em encruzilhadas e paravam as pessoas. Ou tinham que se haver com êles, ou descer do cavalo e passar com o chapéu tirado.

Coitado daquele que falasse mal deles, e mesmo que fosse depois de anos seria penitenciado terrivelmente. Assim, uma vez um plantador rico ameaçou disciplinar com o seu chicote um valentão ausente. Este tomou conhecimento e não descansou até encontrar o plantador. - Este estava a cavalo e vinha por uma trilha estreita.

'Desça' - mandou o valentão - 'Desça, irmão, e dê-me uma pitada de fumo!" - O plantador deu-lhe a dose, porém fêz com que o seu cavalo virasse e fugiu. 'Com Deus, irmão!'  gritou o valentão e, ajoelhando-se, tirou-o do cavalo à bala. - Estes são os valentões! - Deve-se, porém, dizer que já há quinze anos quase que desapareceram".

Antonio Alexandre Bispo



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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "Conhecimentos do Brasil na Boêmia IV. 'Costumes e caráter dos brasileiros' de Wolfgang Adolf Gerle (1781-1846)". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 133/16 (2011:5). http://www.revista.brasil-europa.eu/133/Costumes-e-carater-dos-brasileiros.html




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