Bispo, A.A.. BRASIL-EUROPA 133/. Academia Brasil-Europa e ISMPS





Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Liberec/Reichenberg

Fotos A.A.Bispo
©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 133/1 (2011:5)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 20101 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2786




Tema em debate

Boêmia e Brasil: entrelaçamentos culturais
Barroco, Romantismo, Teuto-Boêmios e Sudetos no Brasil
- o império multinacional austro-húngaro e o processo de diferenciação nacional tcheco -


Ciclo de estudos Boêmia-Brasil da A.B.E..No ano da morte de Otto von Habsburg-Lothringen (1912-2011)

 


A presente edição da Revista Brasil-Europa-Correspondência Euro-Brasileira é dedicada a questões culturais que dizem respeito primordialmente às relações entre a República Tcheca e o Brasil. Os textos apresentam relatos de observações, reflexões e estudos realizados no corrente ano em várias cidades da República Tcheca. A atenção, porém, é dirigida predominantemente ao passado dessa região, que constitui o coração da Europa Central.


Os temas tratados referem-se, assim, sobretudo a questões e processos culturais que antecederam a independência da República Tcheca à época do fim do Império Austro-Húngaro em consequência ao desfecho da Primeira Guerra.


Mais precisamente, esta edição inclui, na sua maior parte, estudos culturais que dizem respeito à Boêmia, quando esta ainda integrava a Dupla Monarquia. Nesse passado já distante, a população de língua alemã marcou de forma relevante a configuração humana, econômica, cultural e política da região. Esta já não é a situação de hoje, e quase que só os antigos edifícios de cidades - que apresentam fisionomias comuns a outras cidades do antigo Império dos Habsburgs - testemunham um passado marcado pela presença austríaco-alemã no Estado sui generis que foi a multinacional Áustria-Hungria.


Foi nessa época já hoje remota, vista na República Tcheca como encerrada, que vieram na sua maior parte os imigrantes para as regiões de colonização do sul do Brasil. As imagens que trouxeram, cultivaram e transmitiram a seus descendentes referem-se a uma situação de presença alemã nesse centro da Europa em configuração que já não existe na sua realidade geográfica de origem. Esse fato, porém, não significa que não continue a existir um universo cultural e mental teuto-boêmio. Este continua a ter referenciais nessa região da Europa, oferecendo um exemplo significativo da existência de geografias mentais, de geografias culturais na sua acepção mais abstrata e talvez mais própria do termo. Não se trata de mundo irreal, mas de realidade, ainda que virtual, e que atravessa fronteiras.


Essa foi a impressão que ficou marcada na memória de participantes do Forum Rio Grande do Sul do Congresso Internacional de Estudos Euro-Brasileiros da A.B.E., de 2002, quando os participantes foram recebidos na Casa da Amizade, em Nova Petrópolis. Graças ao empenho e à cordialidade de muitos, entre outros de Yedda Leão Michaelsen, Jorge Nestor Michaelsen e Beno Heumann, tiveram a oportunidade de presenciar vários grupos musicais, de teatro e dança tradicional, entre elas de expressões boêmico-brasileiras.



Cultivo da memória cultural bôemica no Brasil e estudos culturais


As datas relativamente recentes da constituição de grupos de cultivo de expressões culturais boêmicas demonstram a atualidade da consideração de questões culturais respectivas aos elos entre a Boêmia e o Brasil no contexto dos estudos euro-brasileiros.


Assim, o grupo de "dança da terra dos boêmios" da Linha Imperial (Böhmerlandtanzgruppe von Linha Imperial), com ca. de 55 membros, foi fundado em 1987. A Linha Imperial (Kaisertal), embora constituida por vários grupos de imigrantes, teve a sua imagem cultural marcada sobretudo por colonos provenientes de regiões do norte da Boêmia, das montanhas do Iser e da região de Friedland e Reichenberg. Em vários projetos, o grupo se dedica à pesquisa da história cultural da região e da localidade, salientando-se o projeto "memória da Linha Imperial". Também organiza a "Festa dos Sudetos" (Sudetenfest), para a qual puderam contar com apoio internacional; a comunidade dos sudetos alemães conta com um círculo de amigos, podendo-se registrar aqui o empenho de Ovidio Hillebrand (Freundeskreis Sudentenland).


O grupo de dança folclórica Sonnenschein da Linha Brasil, com ca. de 45 membros, foi fundado em 1990 também tem como objetivos o de pesquisar a história da região, manter viva a tradição dos imigrantes e contribuir para a diversidade cultural do Rio Grande do Sul. Embora os primeiros imigrantes, vindos em 1858, viessem de várias regiões alemãs, sabe-se que, em 1876, ali foram entregues parcelas a imigrantes vindos da Boêmia.


A preocupação pelo aprofundamento dos conhecimentos através de estudos e pesquisas, da história escrita e oral, indica uma tendência à diferenciação mais precisa das tradições culturais e mesmo à sua reconstrução. O grupo de danças folclóricas de Nova Petrópolis, mais antigo, fundado em 1967 por Irmgard Schuch como o primeiro da comunidade, apresenta, assim, antes um caráter internacional, procurando representar os diferentes grupos dos imigrantes e cultivar danças e trajes folclóricos dos mais diferentes países.


Durante o encontro, mencionou-se também a existência de grupos de estudos de tradições e de questões relacionadas com a cultura teuto-boêmia em outras regiões do Rio Grande do Sul, em particular na Linha Isabel, nas proximidades da cidade de Venâncio Aires. Fundada em 1873 por imigrantes também vindos da Boêmia do Norte, da região de Gablonz, Venâncio Aires destaca-se nos estudos da imigração pelo seu Deutsches Heimatmuseum, dirigido pelo Dr. Flavio L. Seibt.


De Santa Catarina, considerou-se sobretudo a cidade de São Bento do Sul, para onde vieram tanto imigrantes da floresta da Boêmia, na parte sul da região, como das montanhas do Iser, aqui também em particular da região de Liberec/Reichenberg. Lembrou-se da existência de vários grupos locais dedicados ao estudo e cultivo de tradições culturais alemãs sob a coordenação da sociedade Sudetosul.


No encontro em Nova Petrópolis foi possível constatar a intensidade com que se desenvolvem estudos e as pesquisas em contextos marcados pela imigração no Brasil, apesar das dificuldades de obtenção de informações e materiais. A relevância da cooperação com pesquisadores voltados a questões relacionados com o Brasil que trabalham na Europa foi salientada em várias oportunidades. Essa cooperação tem significado para ambos os lados, pois os europeus, em particular os alemães e austríacos, têm muito o que aprender a partir dos trabalhos desenvolvidos no Brasil.


Estudos culturais relacionados com a República Tcheca


O início dos estudos relacionados com assuntos tchecos sob a perspectiva da organização voltada à renovação dos estudos culturais através do direcionamento das atenções a processos (Nova Difusão) deu-se em 1968 no âmbito de programa dedicado à música da então Tchecoslováquia realizado por Paulo Affonso de Moura Ferreira. (veja artigo http://www.revista.brasil-europa.eu/116/1968-Paulo-Affonso.htm)


Entretanto, os elos com essa região da Europa Central na tradição a que se pretende a A.B.E. são muito mais antigos. Remontam á cooperação entre círculos de compositores e artistas de Praga com aqueles de Salzburg e que levou à fundação da academia de docentes e estudantes do Mozarteum. Uma das principais personalidades desse grupo foi Tatiana Kipmann (Braunwieser) que, tendo estudado na Escola Superior de Música de Praga, posteriormente contribuiu à difusão de obras de compositores da Tchecoslováquia no Brasil. 


Esse início de desenvolvimentos a que se vincula a A.B.E. processou-se, assim, em época marcada pelo fim da antiga Monarquia Austro-Húngara. Desenrolou-se no âmbito de um longo processo histórico-cultural centro-europeu - determinado de forma complexa por empenhos de conservação de um Estado multinacional marcado pelo idioma alemão - então uma das maiores potências do mundo - e por impulsos de diferenciação de grupos nacionais. 


O desenvolvimento histórico-político do século XX da atual República Tcheca não é sempre fácil de ser compreendido. Somente uma visão dirigida a processos - não tanto a áreas geográficas ou mesmo a Estados na sua configuração atual - pode contribuir ao esclarecimento de um panorama que surge como complexo e que coloca obstáculos aos estudos culturais.


A população de língua e cultura alemãs no Império dos Habsburgs


A população de idioma alemão, de antigas origens e tradições, de alta auto-consciência da própria história e cultura, que marcou a fisionomia e a vida de cidades e regiões através dos séculos, desempenhou, nas terras da Corôa da Boêmia e na vida política do Império, em Viena, um papel altamente relevante até a Primeira Guerra Mundial.


A região de Liberec/Reichenberg na Boêmia do Norte foi centro industrial e comercial de primeira importância e, como um dos esteios econômicos do complexo império multinacional, ocupava posição de influência na política em Viena e nos desígnios da Áustria-Hungria. Encontrava-se inserida em desenvolvimentos de crescente industrialização e expansão mercantil e era marcada por transformações demográficas advindas das próprias possibilidades de trabalho que oferecia. Compreende-se, neste quadro geral, que interesses econômicos e empresariais estivessem no centro das atenções de seus representantes, que se destacaram, em Viena, pelas suas posições conservadoras e de liberalismo econômico.


O desfecho da Primeira Guerra, que levou ao término da potência econômica que foi o império multinacional centro-europeu, trouxe consigo a cisão do todo e a desintegração da rêde interna de elos comerciais e industriais. Essa desintegração foi de graves consequências para Viena - agora metrópole desproporcionada com relação às dimensões do Estado do qual restou capital - e também para os centros industriais do Norte da Boêmia, dirigidos sobretudo pela parcela populacional de língua e cultura alemãs.


Após um período de tentativas de auto-afirmação perante correntes nacionais tchecas, seguiram-se, nos anos 30, a ocupação da região pelos nazistas e a sua integração no "III Império" alemão como terra dos sudetos (Sudetenland). O território, tendo como centro Liberec/Reichenberg, entrou na história como importante ponto de apoio do Nacionalsocialismo; a comunidade judia foi expulsa, deportada e morta em campos de concentração.


Com o término da Segunda Guerra, invertendo-se fundamentalmente o cenário político, a região passou por uma profunda transformação: a população alemã foi expulsa e desapropriada, passando a viver no exílio, o que atingiu também injustamente alemães que não haviam colaborado com os nazistas. Essa experiência traumática, além de anelos de recuperação e reparação, marcou a vida dessas comunidades de exilados na Alemanha. As cidades locais tchecas experimentaram uma reestruturação populacional, para elas sendo transferidos tchecos do interior, eslovacos, repatriados e ciganos, em geral sem maior contato com a história cultural das respectivas urbes e instituições.


Muitas cidades tchecas, apesar de exemplos de sua arquitetura que ainda lembram - se poupadas durante o período socialista - o antigo universo imperial e real da Áustria-Hungria, exigem, assim, uma cuidadosa leitura; esses edifícios mais antigos surgem, por assim dizer, como receptáculos de conteúdo modificado devido à complexidade das reconfigurações populacionais.


Diferenciação nos estudos da imigração


Esse complexo desenvolvimento histórico na Boêmia, aqui naturalmente apenas tratado em linhas gerais e necessariamente imprecisas, não pode deixar de ser considerado nos estudos voltados a questões culturais da história da colonização boêmico-alemã no Brasil e do próprio presente marcado pelo interesse por seu estudo e pela revitalização de expressões culturais.


O Brasil possui consideráveis parcelas populacionais descendentes de imigrantes vindos de regiões da Boêmia, que, em geral, são subsumidos sob a designação genérica de alemães. Já desde o início dos estudos de processos culturais das regiões de imigração constatou-se a necessidade de uma maior diferenciação relativamente às origens dos colonos e aos processos que os levaram à emigração. Esse intento, porém, é acompanhado por consideráveis dificuldades decorrentes da situação das fontes e da complexa história política da Europa Central.


O pesquisador depara-se com dados que lhe parecem ambíguos e que tende a considerar como expressão de insuficiência documental, de falta de cultura ou de falha da memória de seus informantes. Confronta-se, por exemplo, com referências a um antepassado que é lembrado confusamente como sendo proveniente de uma determinada aldeia, que seria na verdade em Reichenberg, nas montanhas de Iser, na Boêmia, na Áustria, que teve um passaporte da Dupla Monarquia, registrado em documentos de entrada no Brasil como austríaco, tendo saído de porto alemão e que era alemão!


O pesquisador, perplexo, pergunta-se se o imigrante era alemão, austríaco ou boêmio, se deve ser estudado no âmbito da história da Áustria, da Alemanha ou mesmo da República Tcheca. Uma vista ao mapa demonstra que a referida cidade já não mais é registrada com esse nome; é Liberec, situando-se na República Tcheca. Teria então o brasileiro descendente desse imigrante raízes a serem estudadas segundo a denominação do país? A identidade cultural de seus antepassados, porém, era alemã, a cidadania austro-húngara, o convívio se dava com outros imigrantes de língua alemã, e praticamente nunca há referências a tradições tchecas.


Essas dificuldades não dizem respeito apenas à pesquisa. Com a revitalização da consciência histórica de grupos de descendentes de primeiros colonos criam-se museus e sociedades de cultivo de tradições da terra de antepassados, designadas também, genericamente, como alemãs. Para aqueles que descendem de imigrantes teuto-boêmios, porém, essa terra natal dos antepassados europeus, cujas tradições procuram conservar e cuja memória procuram manter viva, já não possui hoje, na Europa, população ou características culturais alemãs. Os costumes assim revitalizados, os trajes típicos e as danças praticadas podem surgir, assim, a olhos de jovens alemães provenientes que os presenciam, como estranhamente surpreendentes, desconhecidos, museais ou como exemplos extraordinários de reconstruções idealizadas.


Necessária consideração da situação dos sudetos exilados


Como parceiros europeus dessas comunidades no Brasil surgem sobretudo aquelas comunidades de sudetos do exílio, formadas pelos expulsos de suas cidades e regiões após a Segunda Guerra. Esses expulsos, quando não se dispersaram, constituiram comunidades e mesmo bairros em cidades de outras regiões da Alemanha, entre outras na Turíngia e na Baviera.


Uma complexa história determinada pelas amargas experiências da derrota, da expulsão, de perda de bens, por ressentimentos e sentimentos de tratamento recebido, inclusive por injustiças, agravada por acusações de elos demasiadamente estreitos com o nacionalsocialismo marca a vida e a imagem dos exilados.


Há aqui dimensões políticas a serem consideradas, uma vez que não apenas posições e ideários do passado podem estar sendo eventualmente mantidas, como também podem estar sendo acompanhadas por reinvidicações, pretensões de recuperação de terras e de revisão de limites nacionais. Organizações de sudetos exilados lutaram através das décadas da segunda metade do século XX por revisões, reconhecimentos e recuperação de bens.


Os exilados formaram associações que procuram renovar instituições desaparecidas, retomando, fora do local de origem, linhas de continuidade e reconstruindo formas de expressão com o uso de trajes, revitalização de danças, cantos populares, símbolos e emblemas. Criou-se, assim, uma comunidade definida em termos de identidade cultural extrapolada de sua região de procedência, existente, mas virtual.


Seria certamente incorreto e injusto considerar apenas a existência de tendências demasiadamente conservadoras, passadistas, reacionárias e mesmo de extrema direita em comunidades de sudetos. Nelas nasceram iniciativas de intercâmbio tcheco-alemão de grande significado, voltadas ao futuro, que procuram criar pontes com cidades de origem, acima de ressentimentos e amarguras, e as sociedades culturais desenvolvidas nas várias cidades alemãs participam do movimento cultural em geral, desenvolvendo novas formas de expressão e atualização de repertórios.


Risco de projeções do presente no passado


Os estudos culturais da imigração, no Brasil, desde que digam respeito a descendentes de colonos provenientes de regiões da atual República Tcheca, necessitam considerar essa situação peculiar na própria Europa. Os seus antepassados vieram ao Brasil em época totalmente diversa daquela que marcou a vida dos avós e pais daqueles que, hoje, na Europa, vivem também numa situação também de cunho migratório, ainda que interno europeu e em área cultural determinada pelo mesmo idioma. Os antepassados daqueles brasileiros de ascendência teuto-boêmia não podiam saber do grave desenvolvimento futuro por que passaria as suas cidades, então em florescimento.


Há, assim, o perigo de projeções de situações posteriores no passado. Procedimentos baseados na memória, ainda que de grande importância para os estudos culturais, necessitam ser acompanhados por estudos de processos históricos no seu desenvolvimento temporal.


Essa necessidade do estudo histórico - não apenas retroativo - diz respeito à situação em ambos os lados do oceano. Utilzando-se de uma antiga imagem - lembrada no Forum Rio Grande do Sul em 2002 - poder-se-ia falar que, se ambas possuem a consciência de pertencerem a um mesmo barco; entretanto, para que a viagem possa bem prosseguir, o direcionamento deve ser dirigido para a frente, e não para trás, sendo para isso, porém, necessário considerar-se a rota até então percorrida, analisando-a e, se necessário, corrigindo-a.


A atenção deve ser dirigida aos processos históricos que levaram aos desenvolvimentos posteriores e que, no caso dos boêmios alemães na Europa, foram de graves consequências. Essa análise é necessária também sob a perspectiva do Brasil, uma vez que mecanismos desses processos históricos podem estar ainda vigentes, determinando desenvolvimentos futuros.


Continuidade de processo migratório e colonizador


Em visão panorâmica da história, aquele que a estuda constata um singular caminho migratório e colonizador em ambos os lados, na Europa Central e no Brasil.


A presença alemã na Boêmia foi resultado, na Idade Média, de um movimento colonizador em direção a Leste, sendo a sua história marcada por abertura de caminhos, derrubada das florestas que cobriam grandes partes do território, implantação de povoados, desenvolvimento econômico e, com o aumento de poder, de intensificação da auto-consciência.


Há, assim, um paralelo com a história que focaliza a vinda de boêmios alemães para o Brasil. Também aqui é marcada pela abertura de picadas, por entradas no interior, por subida de serras, por derrubada de florestas, pela implantação de povoados e pelo desenvolvimento agrícola, comercial e industrial, assim como pelo despertar da consciência e dos interesses pelas raízes. Sob essa perspectiva, a história colonial boêmica alemã no Brasil revelaria de forma exemplar a continuidade, em terras americanas, de uma processualidade que continuaria atuante, talvez em novas frontes da expansão no Brasil Central e na Amazônia. O significado de análise das causas da colonização alemã em direção a Leste na Europa torna-se assim evidente, uma vez que pode revelar impulsos intrínsecos que continuariam a agir e cujo reconhecimento representaria pré-condição para procedimentos refletidos na atualidade.


Recatolização da Boêmia e consequências


Uma dimensão que não pode deixar de ser considerada nesses estudos é a religiosa. O movimento migratório e colonizador em direção ao Centro e Leste na Europa foi acompanhado pela missionação, expansão e implantação do Cristianianismo. Foi nessa região de expansão, de encontros com povos e de processos de transformação cultural deles resultantes que se originaram movimentos de Reforma que, na Boêmia, são vinculados sobretudo com o nome de Jan Hus (ca. 1369-1415), queimado no contexto do Concílio de Constança.


O movimento reformatório marcou profundamente a história da região, levando a um confronto com o Catolicismo que foi uma das causas de uma das maiores guerras que a Europa já experimentou e, em consequência, a uma das mais extraordinárias Recatolizações da história cultural. Como a fisionomia de suas cidades demonstra, a Boêmia tornou-se um centro do Barroco.


Também o Brasil teve a sua formação histórica marcada pela cristianização e também o seu patrimônio ficou marcado por expressões do Barroco. Na Boêmia, porém, o Catolicismo que se revitalizou havia sido precedido por uma protestantização e por lutas, adquirindo diferentes conotações daquele do Brasil. Como resultado de um movimento conversional, tornou-se, apesar das formas de expressão, mais acentuado doutrinariamente. Os elos da Áustria dos Habsburgs com a Espanha, cuja severa etiqueta era até mesmo a seguida na Côrte de Viena, permite que se descortinem perspectivas para a compreensão da Europa Central com o mundo ibérico. Essa cultura católica da Boêmia recatolizada foi trazido por missionários boêmicos para as missões indígenas Guarani, sobretudo aquelas do Paraguai.


Quando, assim, se constata, no Brasil, nos registros históricos de colonos vindos da Boêmia - e da Áustria em geral - a indicação do seu catolicismo, diferenciando-os da maioria daqueles que vinham da Prússia, da Pomerânia e de outras regiões protestantes, deve-se ter em mente as características de uma compreensão e prática religiosa marcadas pelo processo recatolizador na Europa Central. Estudos culturais mais pormenorizados poderiam procurar, no caminho transformador da reconversão e nas consequências auto-afirmativas dele resultantes para a identidade católica assumida, razões que expliquem determinadas características da população de língua e cultura alemãs da Boêmia, também relativamente a tendências político-culturais.


Movimento nacional tcheco e suas dimensões


O desenvolvimento da Áustria-Hungria nas décadas que precederam a Primeira Guerra Mundial apresenta aspectos que sugerem uma singular - e preocupante - atualidade. Foi um Estado de grandes dimensões, multicultural e multinacional, de muitos idiomas, marcado por um lado pelo intuito de sua própria manutenção através da integração das várias regiões num todo através de vias, do fomento do comércio e da indústria, do crescimento econômico, na construção de edifícios de afirmação da unidade na diversidade, por outro, pelo movimento de suas partes componentes na afirmação de suas diferenças. Os estudos relacionados com a Boêmia não podem, assim, resumir-se a focalizar apenas os primeiros impulsos, dirigidos à unidade imperial, concentrando-se apenas na população de língua e cultura alemãs na Áustria-Hungria.


O movimento nacional tcheco alcançou ressonância internacional e influenciou o pensamento e a vida cultural em outras nações. A música foi um dos principais veículos de expressão desse movimento e de sua irradiação. Nomes como Bedřich Smetana (1824-1884) e Antonin Dvorák (1841-1904) tornaram-se mundialmente conhecidos e as suas obras forneceram impulsos para o desenvolvimento de movimentos musicais de orientação nacional para muitos países, sobretudo nas Américas.


O tratamento de questões relacionadas com o nacional na música - e o nacionalismo musical - não pode, também no Brasil, deixar de dar atenção especial a esses contextos centro-europeus. Nesse intuito, a consideração da visão interna da pesquisa tcheca surge como pré-condição para a diferenciação refletida dos estudos.


Essa exigência se manifesta de forma particularmente nas diferentes apreciações das posições político-culturais de Smetana e Dvórak e que co-determinaram o modo com que se relacionaram com os valores populares nas suas obras. A consideração desse debate tcheco pode contribuir aos estudos respectivos no Brasil e abrir portas a tratamentos mais distanciados relativamente á questão do nacional na música e nos estudos culturais, em particular no Folclore.


O significado do movimento nacional tcheco na música é tão extraordinário que, quando se dirige a atenção á Boêmia, são nomes tais como os de Smetana e Dvorák que vêm à memória. Praticamente não se considera o desenvolvimento histórico sob a outra perspectiva, ou seja, aquela da população de língua e cultura alemãs que ali predominou à época do império austro-húngaro. Os seus nomes e publicações cairam em geral no esquecimento e necessitam ser recuperadas do silêncio para uma visão de conjunto, uma vez que se interrelacionaram no campo de tensões que marcou a Europa Central.


De ambos os lados, portanto, deve-se evitar projeções anacrônicas do presente no passado. Nem a perspectiva amarga de exílio dos sudetos deveria determinar os estudos histórico-culturais da época da vida dos colonos da Boêmia ao Brasil, nem a perspectiva nacional tcheca deveria levar a um ofuscamento do papel desempenhado pela população de cultura alemã no passado. Somente a consideração do complexo de suas relações pode possibilitar análises de fundamentos, estruturas e mecanismos de fenômenos culturais no seu desenrolar no tempo. 


Antonio Alexandre Bispo



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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "Boêmia e Brasil: entrelaçamentos culturais. Barroco, Romantismo, Teuto-Boêmios e Sudetos no Brasil - império multinacional austro-húngaro e o processo de diferenciação nacional tcheca". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 133/1 (2011:5). http://www.revista.brasil-europa.eu/133/Boemia-Brasil.html




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