Sagas e artes visuais. Bispo, A.A.. Rev. BRASIL-EUROPA 132/8. Academia Brasil-Europa e institutos integrados (ISMPS).





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BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Galeria Nacional da Islândia. Foto A.A.Bispo

Reijkjavik. Islândia. Foto A.A.Bispo

Reijkjavik. Islândia. Foto A.A.Bispo

Fotos A.A.Bispo
©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 132/8 (2011:4)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2011 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2771


A.B.E.


Sagas e artes visuais/Sagas e imagens inerentes
Questões estéticas nos estudos culturais de narrativas


Trabalhos da A.B.E. na Islândia pelos 200 anos de nascimento de Jón Sigurðsson (1811-1887) Listasafn Íslands - Galeria Nacional da Islândia

 

Na discussão de relações entre a história e os estudos culturais, a consideração da Islândia pode oferecer sob muitos aspectos subsídios para o aprofundamento e a a diferenciação das reflexões.  Poucas são as nações que possuem tão valioso patrimônio de narrativas de remotas eras como a Islândia e que constituem não apenas fontes para o estudo do passado, mas sim fundamentos da consciência histórica e da própria auto-imagem islandesa. (Veja outros artigos nesta edição)

Fidelidade às sagas como documentos históricos e criação artística

Em estudo publicado recentemente, procurou-se demonstrar o significado dessa tradição narrativa para a arte visual. (Adalsteinn Ingölfsson, "The saga tradition and visual art", The Manuscripts of Iceland, ed. Gísli Sigurdsson e Vésteinn Ólason, Reykjavik: Árni Magnússon Institute in Iceland, 2004, 157 ss.)

O autor inicia o seu texto mencionando Björn Th. Björnsson (1922-2007), um dos mais renomados historiadores da arte da Islândia. No primeiro volume do seu panorama da arte islandesa, Björn Björnsson lembra que, ao pleitear uma bolsa para a realização de estudos no Exterior, em 1903, o pintor Ásgrímur Jónsson apresentou uma tela baseada na saga de Njal. (Veja a respeito http://www.revista.brasil-europa.eu/132/Centro_de_sagas.html)

Os membros do Parlamento islandês dedicaram particular atenção a pormenores da representação, examinando se havia ou não fidelidade relativamente aos textos das sagas. Não dedicaram tanta atenção à concepção do artista ou às qualidades da obra.

Esse fato serve para exemplificar o quanto a arte visual esteve subordinada à literatura na Islândia, a disciplina que sempre dominou a cultura do país. A arte visual era vista antes no seu sentido ilustrativo, como prestadora de serviços à literatura.

Mesmo nas décadas posteriores, quando correntes estéticas mais avançadas já influenciavam a arte islandesa, ainda prioritariamente voltada a retratos e paisagens, o tratamento de antigas sagas manteve-se preso a critérios de fidelidade e de respeito para com as fontes históricas das narrativas.

Essa falta de liberdade foi uma das razões que levou a uma certa relutância de artistas em considerar temas das antigas narrações.

Assim, na interpretação dos escritos como fontes de dados sobre um passado mais remoto àquele da origem do próprio texto reside um problema que diz respeito à estética e à criação artística.

Interpretação histórica de sagas a serviço de fins político-nacionais

Sigurdur Gudmundsson (1833-1874), grande conhecedor da antiga cultura islandesa, que realizara estudos de história, arqueologia, etnologia e costumes na Dinamarca e que era imbuído de profundo respeito pela tradição da saga, foi, segundo Adalsteinn Ingölfsson, um dos primeiros que percebeu que esta podia ser empregada como símbolo da solidariedade nacional no movimento da emancipação islandesa. Na sua obra, heróis nórdicos são representados como se fossem vultos da Antiguidade Clássica.

Entre os artistas islandeses da geração pioneira, o autor salienta o escultor Einar Jónsson (1874-1954) por ter-se inspirado na tradição das sagas e na mitologia nórdica. Esse artista teria representado não apenas uma fase na história das artes da Islândia, mas sim uma corrente dominante relativamente à compreensão das narrativas e das fontes escritas. (http://www.revista.brasil-europa.eu/132/Einar_Jonsson.html)

Dos artistas da época da Primeira Guerra, a assim-chamada segunda geração, o autor lembra que apenas Nína Saemundsson (1892-1965) considerou a tradição das sagas, criando uma cabeça de Njal em mármore. (http://www.revista.brasil-europa.eu/132/Centro_de_sagas.html)

Assim, segundo Adalsteinn Ingölfsson, Einar Jónsson era à época da intensificação do movimento pela independência nacional a personalidade máxima de artista que correspondia à veneração dos intelectuais e políticos islandeses pelas sagas e foi essa sua orientação quase que sacralizante que trouxe-lhe popularidade, influência e apoio de autoridades. Algumas figuras por êle tratadas plasticamente surgem como heróis, tais como Ingólfur Arnarson (1907) e Porfinnur Karlsefni (1916-18), representados como guerreiros prontos à batalha. Passou a ser visto como o artista mais representativo da Islândia, como um exemplo de criador que procurava dar à arte um caráter islandês, fazendo-a merecedora da atenção de outras nações.

Debate estético-artístico à época dos Milênio do Althing (1930)

Se o alcance da soberania islandesa sob a égide da Coroa da Dinamarca após a Primeira Guerra representou um marco também no debate estético-artístico, uma fase crucial na história das tendências nacionais e nacionalistas deu-se com o início das celebrações pelo milênio do Althing, em 1930.

As expressões artísticas das celebrações deveriam orientar-se segundo modêlos da assim-chamada "idade de ouro" da cultura islandesa, ou seja em estilo "antigo", surgindo obras que hoje surgem para muitos depreciativamente como de cunho decorativo e pouco inovador.

As decorações reproduziam inscrições e motivos de tecidos antigos, os atores passaram a usar trajes históricos, criaram-se moedas, selos, cartões postais e souvenirs com motivos do passado. Essa orientação estética a serviço de concepções nacionais foi representada sobretudo por jovens artistas, amadores, não inseridos nas correntes do desenvolvimento estético-artístico, em geral provenientes de formação artesanal. Como as sagas ofereciam poucas informações a respeito de roupas, armas e edifícios, esses artistas passaram a procurar dados em objetos e documentos conservados m museus, também de outros países nórdicos.

Essa descrição da situação na Islândia dos anos 30 de Adalsteinn Ingölfsson lembra aquela de outros países dessa época, em particular das encenações políticas e das concepções artísticas da Alemanha nacionalsocialista. Também o Brasil conheceu similares tendências, lembrando-se aqui de decorações de publicações dos anos trinta com o uso de motivos inspirados da arte marajoara.

Iluminuras em manuscritos como fontes de inspiração da arte nacionalista

Assim, diferentemente da esfera profissional, a arte dos artistas amadores dessa época passou a orientar-se segundo ornamentos e representações visuais em antigos manuscritos e livros.

Uma dessas ilustrações encontra-se no Flateyjarbók (ca. de 1387), representando a morte do rei Sto. Olavo. O artista das iluminuras, porám, não procurou ser correto historicamente, adaptando a ilustração à sua época. Outras iluminuras de um manuscrito do século XVII revelam um similar procedimento. A atenção é dirigida à expressão e às características reveladoras de caráter; os trajes e outros pormenores da representação, porém, são os da época. O mesmo pode ser observado em ilustrações de manuscritos e livros de séculos posteriores. Como Adalsteinn Ingölfsson salienta, os artistas amadores que se orientaram segundo iluminuras dos antigos manuscritos não as compreenderam no sentido de reflexões sobre conteúdos e imagens, mas sim como ilustrações dos textos, como se fossem extensões redundantes do escrito.

Além dessa leitura superficial das antigas representações, os artistas que trabalharam nas celebrações do Milênio de 1930 teriam sido não apenas influenciados por tendências norueguesas da época quanto à representação de heróis nórdicos e figuras da mitologia, mas também por ilustrações de cunho ilustrativo, até mesmo trivial ou Kitsch. Uma particular menção é dada à tradição do desenho romântico de um Andreas Bloch (1860-1917), ilustrador e desenhista de costumes, de tendências nacionalistas. Quanto a representações da natureza, Bloch baseara-se em fotografias da Islândia, quanto a costumes e armas, em artefatos do Museu Nacional da Noruega. As suas obras foram largamente difundidas na Islândia em ilustrações populares e em reclames.

Segundo Adalsteinn Ingölfsson, se Andreas Bloch foi um dos construtores de uma arte visual de cunho ilustrativo-placativo na tradição do pensamento idealizador e heroicizante das sagas, Halldór Laxness (1902-1998) foi o seu deconstrutor. (http://www.revista.brasil-europa.eu/132/Halldor_Laxness.html)

Para Laxness, o Festival do Milênio de 1930 surgia como uma caricatura da história islandesa e do patrimônio cultural representado pelas antigas sagas. Como Adalsteinn Ingölfsson salienta, Laxness liberou as artes das algemas da história, da topografia e das regulamentações voltadas à preservação da fidelidade aos textos escritos. A sua atitude relativamente à saga era contrária ao movimento nacionalista conservador, sempre atento a sintomas de decadência que via na arte visual contemporânea, considerada como desnacionalizadora e internacionalizadora, desfiguradora da imagem da verdadeira Islândia.

Após a Guerra, na nova edição, em dicção moderna, da saga de Njal, foram convidados artistas que demonstravam que a arte visual não necessitava ser subserviente da literatura e que podia seguir tendências contemporâneas da época, entre elas as do pós-cubismo francês. Embora nada pudesse modificar o nacionalismo de artistas como Gudmundur Einarsson (1895-1963), a maioria dos artistas que se referiram às sagas passaram a seguir essas tendências críticas. Em particular na década de 70, artistas passaram a demonstrar um maior interesse às consequencias trágicas do heroísmo e pela vida do dia-a-dia do povo no passado do que à representação de caracteres de heróis.

O debate islandês sob a perspectiva teórico-cultural

O panorama traçado por Adalsteinn Ingölfsson permite que se reconheça os problemas estético-artisticos resultantes de correntes do pensamento cultural e político-cultural voltado aos documentos escritos das antigas narrativas, de tanta importância para um país como a Islândia.

Tanto a sua consideração como fontes de informações sobre um passado mais remoto, a serviço da sua monumentalização, assim como aquela que passou a dar maior atenção às narrativas como obras da criação literária em si, expressões de seus autores e de sua época, apresentam aspectos questionáveis.

Visões do passado condicionaram visões políticas do presente e determinaram desenvolvimentos. Um redirecionamento teórico-cultural na consideração dos antigos textos possibilita novas perspectivas para as reflexões, abrindo possivelmente novos caminhos para a criação artística.

Essa reorientação implica numa atenção diferenciada do visual e do imagológico nas sagas. Não trajes, costumes e  ornamentos surgem como objetos primordiais de interesse, mas sim as imagens inerentes às narrativas, à sua ordenação, interrelacionamento e sentido.

Nessa análise deve-se considerar o mecanismo inerente ao sistema e que se caracteriza pela representação de imagens tipo a partir da tensão determinada por uma consciência de sua referenciação por imagens antitípicas. (Veja outros artigos a respeito nesta edição).

Na discussão relativa à interpretação das narrativas das sagas não se tem considerado suficientemente as dimensões do fato de terem sido elas produtos já de fase cristã da Islândia. Reconscientizar-se desse fato não significa necessariamente revitalizar visões cristãs, mas sim reconhecer o complexo campo de forças e tensões internas do edifício de imagens, muito provavelmente já existente antes de sua referenciação histórica segundo a as Escrituras.

Antonio Alexandre Bispo



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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "Sagas e artes visuais/Sagas e imagens inerentes. Questões estéticas nos estudos culturais de narrativas". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 132/8 (2011:4). http://www.revista.brasil-europa.eu/132/Sagas_e_Arte_Visual.html





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