Bispo, A.A..Barroco na Índia entre Padroado e Propaganda. Rev. BRASIL-EUROPA 131/18. Academia Brasil-Europa e ISMPS
Revista
BRASIL-EUROPA
Correspondência Euro-Brasileira©
Bispo, A.A..Barroco na Índia entre Padroado e Propaganda. Rev. BRASIL-EUROPA 131/18. Academia Brasil-Europa e ISMPS
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BRASIL-EUROPA
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Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 131/18 (2011:3)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência
e institutos integrados
© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2010 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
Doc. N° 2757
O Barroco na Índia no campo de tensões entre o Padroado Português e a Propaganda Fide
- recepção religioso-cultural romana em Goa e o clero nativo dos Teatinos -
Trabalhos da A.B.E. por motivo dos 500 anos da "reconquista" de Goa. 30 anos do Simpósio Internacional "Música Sacra e Cultura Brasileira" e 20 anos de sessão acadêmica na Universidade Urbaniana em Roma. Igreja de São Caetano e Instituto Pio X de Formação Pastoral.
Fotos A.A.Bispo
©Arquivo A.B.E.
Nos estudos voltados ao mundo marcado pela ação dos portugueses do passado colonial, a arquitetura e outras expressões artísticas do Barroco ocupam posição privilegiada. Nas considerações estilísticas e interpretações histórico-culturais tem-se salientado, justificadamente, os seus elos com a Contra-Reforma.
Empresta-se, sob este aspecto, particular atenção ao papel desempenhado pelos jesuítas, uma focalização histórico-cultural fundamentada e compreensível devido ao significado da Sociedade de Jesus na história missionária das regiões extra-européias e de recatolização de regiões européias.
Entretanto, a atuação de outras ordens e entidades eclesiásticas não pode ser esquecida, nem muito menos os fundamentais vínculos dos intuitos contra-reformistas com o ímpeto de reforma interna do próprio Catolicismo.
Somente a consideração das diferentes inserções culturais das várias congregações envolvidas, de seus distintos pressupostos e história, das suas relações, afinidades e diferenças é que permite que se trate adequadamente os processos de Reforma e Contra-Reforma nas suas dimensões globais, nas quais a Europa e países extra-europeus se relacionam.
Esse aprofundamento e diferenciação de perspectivas surgem como necessários para pesquisas teóricas que se dedicam a exames de processos culturais nos seus elos com rêdes sociais e, sobretudo, que se preocupam com a procedimentos refletidos e esclarecedores dos próprios estudos.
O apelo aliciante de expressões propagandísticas da retórica do passado e a magnificência do Barroco não deixam de manter ainda hoje a sua vigência, fascinando e conquistando observadores e mesmo estudiosos.
Na procura da necessária distância de envolvimento emocional nas análises, o olhar dirigido a contextos políticos e político-eclesiásticos pode muito contribuir. No caso do mundo colonial português do passado, os ímpetos da Reforma do Catolicismo relacionam-se de forma complexa com a história das tensões entre o Padroado Português e a política centralizadora de Roma, que teve a sua expressão institucional na criação da Congregação Propaganda Fide, em 1622.
Foi discutida, entre outros, em conferências realizadas em Roma, a partir de 1976, salientando-se a sessão acadêmica de 1991 na Universidade Urbaniana, sob a presidência do então Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, hoje Pontífice.
Pela passagem dos 20 anos dessa sessão, a A.B.E. retomou reflexões sobre a atualidade de questões concernentes às relações entre o Padroado Português e a Propaganda Fide sob perspectivas mais recentes dos estudos teórico-culturais. Escolheu-se, para isso, um dos locais mais significativos para os estudos memoriais desse conflito: o convento e a igreja de São Caetano, em Goa.
O edifício do convento, que com a extinção das ordens religiosas no século XIX (1835) foi transformado em residência governamental, tendo abrigado o Museu da Índia Portuguesa, é sede, hoje, do Instituto Pio X para a formação pastoral de sacerdotes. Possui, nesta sua função, significativo elo de coerência com o escopo dos fundadores do convento, os teatinos. Surge como local adequado para a atualização de questões relativas à história de preocupações relativas à formação sacerdotal e suas influências na história cultural, tematizadas pela primeira vez no Simpósio Internacional "Música Sacra e Cultura Brasileira", realizado há 30 anos em São Paulo.
Leitura da igreja de São Caetano: presença de Roma
A igreja de Nossa Senhora da Divina Providência de Goa, conhecida vulgarmente pela designação de São Caetano, devido ao fato de ter sido Caetano de Thiene o fundador da Ordem dos Teatinos, responsável pela sua ereção, é uma obra arquitetônica que nem sempre tem sido suficientemente considerada e estado presente nos estudos da história das artes.
Foi projeto de italianos, o Pe.Francesco Maria Milazzo e o Ir.Carlo Ferrarini, tendo como construtor Manuel Pereira e, como escultor, um Mestre Inácio. Apesar de suas extraordinárias qualidades estéticas e construtivas, que dela fazem um dos mais magníficos e representativos dos edifícios da antiga Goa, somente uma história da arte e da arquitetura de orientação teórico-cultural pode apreciá-la adequadamente no seu significado mais profundo e abrangente.
As primeiras impressões de sua arquitetura, salientada pela sua localização em ampla área aberta e ajardinada, são marcadas pela sua suntuosa monumentalidade. O observador, vindo da Sé de Goa, que apesar das suas dimensões transmite um espírito de nobre singeleza e reserva (Veja artigo nesta edição), é surpreendido pelo contraste oferecido.
Perante a sua muito mais intensa força de representatividade, pergunta-se qual é a razão que justifica a existência de uma igreja que expressa maior autoridade do que a própria Sé, e qual a ordem que teve a auto-consciência de estabelecer um tal confronto.
O observador percebe, mesmo sem ter conhecimentos do seu vir-a-ser histórico, que a igreja de São Caetano adquire um significado declaratório de posicionamento, presença e afirmação. Poucos contextos poderiam ser mais adequados para reflexões a respeito das tensões entre o Padroado Português e a política romana relacionada com a Propaganda Fide.
Procurando dar maior precisão a essas primeiras sensações, o observador percebe, com um olhar mais atento à fachada da igreja, que a sua representatividade muito deve às associações que desperta com a Basílica de São Pedro, em Roma, ou seja, com a própria Sé Pontifícia. Os construtores da igreja tiveram, assim, a ousadia de levantar quase que defronte à Sé de Goa um edifício que continuamente traz à lembrança Roma como centro do Catolicismo e da autoridade papal.
A fachada é marcada pelas grandes colunas e pilastras de capitéis coríntios que emolduram portas e janelas. Horizontalmente, a fachada é estruturada por uma série de janelas redondas e pela balustrada perante as portas do pavimento superior. Dando para a área fronteiriça, refletem um pensamento arquitetônico que procura corresponder a atos de autoridade hierárquica e suzerania próprios a pronunciamentos, oferecimentos de benções e recepções de ovações.
Essa singularidade tem sido vista como referência à tradição portuguesa, criando uma singular interferência de sugestões estilísticas e simbólicas.
Entretanto, essa suposição é relativada ao lembrar-se que outra das importantes igrejas dos teatinos, a de S. Caetano em Munique, uma das maiores expressões do Barroco tardio na Europa, também apresenta torres laterais. A interpretação das torres da São Caetano de Goa como representativas de um vínculo com a arquitetura portuguesa também não seria coerente com os intuitos de inspiração romana de seus criadores.
Justificativas para a moldura torreal do corpo central da fachada deve ser procurada antes no próprio desenvolvimento da linguagem arquitetônica no contexto da história da Ordem.
Ao entrar no templo, aquele que o contempla se surpreende pela grandiosidade da cúpula sobre o transepto, mas, ao mesmo tempo, pela limitado tamanho da nave central, sobretudo sob a impressão que associa o edifício com a Basílica de São Pedro. O edifício apresenta, assim, um plano fortemente centralizado.
O seu corpo é estruturado em três naves, divididas por pilares em duas ordens, tendo as naves laterais respectivamente apenas três capelas. Verticalmente, o corpo da igreja é marcado pelas tribunas com balaustrada de madeira trabalhada, que, em número de quatro, abrem-se a espaços localizados acima das abóbadas das capelas.
Pode-se supor, aqui, que uma nave extensa, ou melhor, uma extensão maior do braço da cruz não teria correspondido às necessidades locais, mas a cúpula, essa sim, por razões antes teológicas e de representação, teria merecido toda a atenção. Tendo o cimbório apoiado sobre quatro arcos, com ornamentos em relêvo, apresenta um tambor iluminado por grandes janelas e um teto abobadado. A cúpula se eleva sôbre uma plataforma quadrangular, sob a qual se encontra uma fonte, cujo sentido ainda não se encontra esclarecido. Segundo alguns, teria sido o tanque de um antigo tanque hindu, tendo sido a igreja levantada em antiga área sacralizada.
Aurum et argentum non est mihi. A confiança na Providência
O programa teológico da igreja pode ser analisado a partir das imagens veneradas e dos textos bíblicos registrados. Já na entrada, a tradição oratoriana é lembrada com a definição da igreja como casa da oração: Domus mea domus orationis.
Palavras-chave para a compreensão da espiritualidade teatina são aquelas do Evangelho de S. Mateus inscritas na cúpula: Quaerite primum regnum Dei et haec omnia adjicientur vobis. Essas palavras fundamentavam o credo básico dos teatinos na ajuda da Providência a todos aqueles que almejam o reino de Deus, o que deve estar em primeiro lugar.
Pelas características de sua Ordem, os teatinos não podiam ter rendas de qualquer origem, dependendo assim de doações e da caridade. Aqui se explica também a veneração a Maria como Nossa Senhora da Divina Providência. Para a sua manutenção, para a construção do convento e sua igreja, assim como para o seu culto, tinham fé na Providência.
Correspondentemente, o altar principal é consagrado a Nossa Senhora da Divina Providência, denominação mariana equivalente àquela da padroeira dos teatinos. Aos pés de Maria, sentada, com um cálice e uma hóstia, lê-se o texto Comedite panem et bibite vinum quod miscui vobis. Dominando a parte central da parede do altar, suntuosamente ornado, que pode ser considerado uma das mais importantes obras da plástica barroca no mundo português, a imagem surge acima do altar, tendo por cima grande coroa, e, sobretudo, o cimbório para a Exposição e que constitui o ponto culminante do olhar dirigido ao alto.
Significativamente, os anjos que, em grandes dimensões, flanqueiam o altar, apresentam nos seus escudos palavras do hino das laudes do Santíssimo Sacramento, atribuído a São Tomás de Aquino: Se nascens dedit socium, Convescens in edulium, Se moriens in pretium, Se regnans dat in proemium.
Essas palavras indicam as concepções fundamentais que orientou a construção, as associações que despertavam e marcavam a vida e a atuação dos teatinos. Trata-se de uma Cristologia baseada na interpretação de que Cristo, no mistério da incarnação, tornou-se sócio, oferece-se, na Eucaristia, como alimento, surge, na cruz, como resgate e, na glória eterna, como prêmio.
O pensamento simbólico se manifesta também na veneração da Sagrada Família como "Trindade humana", representada em capela lateral da parte do Evangelho, ao lado das capelas devotadas a S. Gregorio Magno e a Nossa Senhora das Dores. Da parte da Epístola, correspondem às capelas dedicadas a Santa Catarina e àqueles mais diretamente vinculados à Ordem, ou seja, S. Caetano e S. Carlos Borromeu. Os apóstolos S. Pedro e S. Paulo, os evangelistas S. João e Mateus estão representados com imagens de granito.
Elos com Sant'Andrea della Valle: possível elucidação do tanque em S. Caetano
A leitura da arquitetura de São Caetano de Goa, porém, não pode limitar-se às suas associações com a Basílica de São Pedro, uma vez que são por demais evidentes os seus elos com a igreja de Sant'Andrea della Valle, em Roma, a igreja-mãe dos teatinos. Famosa pela sua cúpula no cruzeiro, nas suas dimensões em segundo lugar após a da igreja de São Pedro, explica também a presença da cúpula em São Caetano de Goa.
A configuração dessa cúpula, de Giovanni Lanfranco (1621-1625), com janelas de ático, indica, nos seus elementos principais, o modêlo do Il Gesù, dos jesuítas. Essas relações são explicáveis não apenas arquitetônicamente, mas também pela inserção dos teatinos nas correntes de reforma da vida religiosa e sacerdotal.
Iniciada entre 1586 e 1591, teve a sua construção marcada pelo arquiteto Carlo Maderno, sendo completada em 1622, ano da fundação da Propaganda Fide. A sua fachada, porém, foi finalizada mais tarde, entre 1656 e 1666, com modificações, por Carlo Rainaldi.
As características numinosas do local onde se levanta Sant'Andrea della Valle - um vale como local aquoso - podem talvez explicar a enigmática ocorrência do tanque no pavimento sob a cúpula de São Caetano de Goa Ter-se-ia procurado, aqui uma situação equivalente à romana, trazendo associações relativas a um levantamento de regiões húmidas às alturas, próprias a imagens marianas.
Gaetano di Tiene, nascido em Vicenza, é um santo da época dos Descobrimentos. De origem aristocrática, estudou jurisprudência na Universidade de Pádua, onde alcançou o doutorado, em 1505. Foi nomeado Protonotário Apostólico pelo Papa Júlio II (1443-1513).
Apesar - e justamente - por viver em época marcada pela proximidade da Igreja à vida profana do Renascimento, criticada por muitos como sintoma de decadência, as suas aspirações passaram a ser definidas por tendências de reforma do clero. Assim, após ter sido ordenado, em 1516, tornou-se membro do Oratório do Amor Divino, instituição que manifestava intuitos de reforma da vida religiosa então vigentes em determinados círculos do clero romano.
Ao retornar a Vicenza, em 1518, instituiu um asilo para doentes incuráveis, entrando para uma irmandade que se dedicava ao amparo de pobres e doentes e que se guiava pela veneração de S. Jerônimo. Continuou, também, até 1521, a atuar para o Oratório, em Veneza e em Roma. Desenvolveu, aqui, o plano de criação de uma nova ordem, expressamente dedicada ao combate de abusos e irregularidades na vida do clero. Foi apoiado, neste intento, pelo bispo Giampietro Caraffa von Theate (Chieti), fundando, em 1524, a Ordem dos Clérigos Regulares (Ordo Clericorum Regularium), denominada popularmente segundo a cidade de Tiene: os teatinos. Sob o aspecto dessa sua constituição por clérigos regulares, precedeu à Companhia de Jesus.
A veneração de Gaetano di Tiene desenvolveu-se no século XVII; foi beatificado pelo Papa Urbano VIII (1568-1644), em 1629, e santificado pelo Papa Clemente X (1590-1676), em 1671. O seu culto, centralizado na igreja que guarda as suas relíquias, em Nápoles, expandiu-se sobretudo em regiões que tornaram-se marcadas pela Contra-Reforma. A sua veneração marcou a Europa Central de língua alemã. Em 1662 edificou-se a igreja dos Teatinos em Munique e, em 1672, foi elevado a padroeiro da Alta Baviera.
Urbano VIII enviou, em 1639, padres teatinos ao reino de Golconda. Ali não podendo atuar, e sob a direção de Pedro de Avitabili, retiraram-se para Goa, onde se estabeleceram em casa particular. Após várias mudanças, arrendaram casas pertencentes à Misericórdia para nelas estabelecerem um hospício, correspondendo assim à tradição da ordem de assistência a doentes.
Entretanto, por serem estrangeiros e sacerdotes que haviam sido originalmente enviados pelo Papa, ainda que para um reino não submetido sob a administração portuguesa, o Vice-Rei intimou-os em 1643 a suspender as obras. O próprio rei, informado dos intuitos dos teatinos, ordenou que saíssem de Goa.
Pedro de Avitabili, porém, dirigindo-se a Lisboa e oferecendo a cooperação dos sacerdotes ao clero português relativamente à cultura espiritual no trabalho missionário, alcançou a autorização para a fundação do hospício e para a prática dos exercícios espirituais próprios à Ordem. Depois de alguns anos, em 1655, permitiu-se a construção de convento e igreja, assim como a da participação nas missões orientais.
Fidelidade ao Padroado como condição. Repercussão na Europa
Esses beneplácitos foram concedidos, porém, sob a condição que os teatinos se submetessem em fidelidade ao Padroado Português. Sob essas condições, os teatinos construiram o seu convento, inicialmente de pequenas dimensões. Ao lado das atividades no hospício, a atuação dos teatinos, seguindo o uso europeu, era marcada pela pregação do Evangelho e pela administração dos sacramentos.
O empreendimento dos teatinos na Índia foi acompanhado na Europa, uma vez que representava o florescimento de um ideal reformador em longínqua região. Um exemplo dessa atenção pode ser vista na obra do Cardeal Francesco Maria Banditi (1706-1796), desde 1723 membro da Ordem dos Teatinos e residente no Convento de Sto. Antonio de Pádua de Rimini, tendo-se tornado, a partir de 1768, Superior Geral. Nessa qualidade, publicou uma carta circular a todas as casas da ordem informando-as das atividades missionárias dos teatinos em Goa.
A permissão para o estabelecimento dos teatinos chamou à Índia outros membros da Ordem, italianos, com poucas exceções. Tem-se notícia que 56 professos e 3 noviços para ali se dirigiram, embora apenas 34 ali chegassem. A Ordem possuia também missões, com igrejas e hospícios, em outras regiões da Índia e de outras partes do Oriente, entre elas nas ilhas de Borneo e Sumatra.
A vinda desses membros da Ordem da Europa, trouxe, naturalmente, problemas relativamente à fidelidade garantida ao Padroado Português pelos fundadores. Estando os clérigos regulares estreitamente vinculados à Propaganda Fide, a submissão à jurisdição do Padroado não podia ser aceita. Isso levou a uma situação conflitante, uma vez que os portugueses se sentiram enganados, tendo agora, no seu próprio território, representantes de uma congregação que agia independentemente dos direitos portugueses e cujos deveres tinham custado tanto dispêndio de forças e de meios ao país.
A Propaganda Fide, por sua vez, determinou que a condição colocada por Portugal não podia ser aceita. Nesse conflito, por ordem das autoridades vice-reais, até mesmo um dos prefeitos da Ordem, D. Hipolito Visconte, chegou a ser detido e retirado à fortaleza de Corjuém.
Nesse contexto, compreende-se a linguagem arquitetônica da igreja de São Caetano de Goa. Ela foi um manifesto vivo, corajoso, até mesmo desafiador, mas aos olhos dos portugueses necessariamente insolente, testemunho de quebra de acordo e promessa de fidelidade. Representou, por assim dizer, um "cavalo de Troia" no seio da Roma do Oriente.
O posicionamento da Propaganda Fide levou a que os portugueses proibissem a entrada de clérigos regulares teatinos no seu território. Com o convento entregue apenas a alguns clérigos, já de avançada idade, os seus responsáveis sentiram a necessidade de solicitar permissão para que pudessem nele admitir nativos.
Chegou-se, assim, à situação singular da presença de ca. de 20 indianos na história de instituição profundamente marcada por desenvolvimentos religiosos e eclesiásticos italianos, avessa, nos seus vínculos com a Propaganda, aos direitos e interesses do Padroado Português.
A grande maioria desses indianos eram brâmanes, provenientes, assim, de esferas sociais de maior prestígio da sociedade. Apenas no fim da história conventual em Goa é que se admitiu, em 1831, um membro de casta inferior.
Correspondendo a mecanismos conhecidos em processos de transformação cultural e integração social, esses clérigos nativos procuraram demonstrar a sua capacidade e identificação, tornando-se mais teatinos dos que os teatinos. Um deles, D. Agostinho Barreto, natural de Rachol, chegou a ser prefeito. Outro, D. Sebastião do Rego, de Neurá, onde já pertencia à Congregação do Oratório, tornou-se grande orador, chegando a ser cognominado de "Vieira goano" (Saldanha, Manoel José Gabriel, História de Goa: política e arqueologica, 1898, 2a.ed.1925, 112-114).
A igreja de São Caetano de Goa chama a atenção do pesquisador à necessidade de uma consideração mais ampla do movimento de reforma interna da Igreja sob o aspecto cultural. Além do mais, indica a intensidade da presença italiana na Índia portuguesa dos séculos XVII e XVIII. Se o mausoléu de São Francisco Xavier representa a arte florentina em Goa, através de obra de um dos seus maiores escultures (Veja artigo a respeito), a igreja dos teatinos testemunha os elos com Roma, em particular com a Propaganda Fide.
Todos os direitos relativos a texto e imagens reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do editor.
Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "O Barroco na Índia no campo de tensões entre o Padroado Português e a Propaganda Fide: recepção religioso-cultural romana em Goa e o clero nativo dos Teatinos. " Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 131/18 (2011:3). http://www.revista.brasil-europa.eu/131/Goa-Sao_Caetano.html
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