Bispo, A.A..Cristãos de São Tomé sírio-jacobitas do Malabar. Revista BRASIL-EUROPA 131/8. Academia Brasil-Europa e ISMPS




Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 
Cheriapally. Paravur. India. Foto A.A.Bispo

Por motivo da passagem dos 500 anos da conquista de Goa, a A.B.E. decidiu retomar trabalhos da década de 80 relativos aos "Cristãos de São Tomé" com observações e contatos in loco, na região que representa um dos principais centros desses cristãos em Paravur, localidade do distrito de Ernakulam, em Kerala.


Situado há poucos quilômentros ao sul do antigo porto de Cranganor/Kodungallor, não distante de Angamale, a região foi há séculos habitada por cristãos e possui, até hoje, considerável parcela populacional cristã, em geral sírio-ortodoxa e católico-romana. É, em ambos os casos, um dos maiores centros de peregrinação de "cristãos de São Tomé" do Malabar. Em relativa proximidade, pode-se visitar duas de suas mais representativas igrejas, com as suas respectivas instituições de estudos: a católica de Kottakavu Ferona (Veja artigo a respeito) e a ortodoxa sírio-jacobita de Kizhakke Pally ou Cheriapally.


Cheriapally. Paravur. India. Foto A.A.Bispo


Igreja de São Tomé, em Paravur (Kizhakke Pally ou Cheriapally)


Sob o aspecto arquitetônico, a igreja constitui um edifício relativamente grande, manifestando influências de construções ocidentais. Distingue-se pelo seu campanário, com quatro pavimentos, único exemplo nas igrejas sírias da Índia, assim como pelos seus alpendres laterais. No seu interior, destaca-se o seu altar principal, de madeira entalhada, assim como pinturas seculares de episódios bíblicos nas paredes do santuário. A pia batismal, feita de uma só pedra de granito, doada por um fiel, data de 1625.


Cheriapally. Paravur. India. Foto A.A.Bispo

Centros de estudos e de formação em artes e ciências


Ao lado da igreja sírio-jacobita de São Tomé de Paravur localiza-se a Mar Gregorios E.M. School,  que iniciou as suas atividades em 1999, tendo experimentado, desde então, surpreendente desenvolvimento. De seus alunos e professores, vários têm-se destacado como acadêmicos, cantores, artistas, bailarinos e esportistas. O Mar Gregorius Abdul Jaleel Arts and Science College, destina-se à formação superior e técnica, dando especial atenção aos círculos minoritários da população com base religiosa. É mantido pela St. Thomas Educational and Charitable Society, afiliada à igreja sírio-jacobita do Norte de Paravur. É associado à Mahathma Gandhi University.


Cheriapally. Paravur. India. Foto A.A.Bispo

Cheriapally. Paravur. India. Foto A.A.Bispo

Testemunho da vitalidade da cultura cristã de "São Tomé" no século XVI


As origens da igreja sírio-jacobita de São Tomé em Paravur podem ser vistas como testemunhos da vitalidade da cultura cristã indiana remontante à ação do apóstolo no século XVI, anterior, portanto, à intensificação dos esforços de unificação empreendidos sobretudo pelos jesuitas portugueses.


Segundo a tradição, um grupo de fiéis da antiga comunidade local, sob a liderança de um dos seus, mercador, procuraram a autoridade hindú de Paravur para pedir permissão para a construção de uma nova igreja. Com o apoio dessa autoridade, que doou área e concedeu isenção de taxas, elevou-se a igreja sob a direção de Mor Joseph, sendo esta dedicada a São Tomé e consagrada no dia 29 de novembro de 1566. Esse fato foi inscrito em texto versado em antigo tamilo, até hoje conservado em pedra de granito na parede em frente à porta de entrada da igreja.


A autoridade de Paravur doou também uma grande luminária a óleo, mantida por doações perpétuas, e até hoje utilizada. Esses atos podem ser vistos como testemunhos da liberalidade e da política de tolerância de hindús do passado, que procuravam dar, nos seus domínios, possibilidades de exercício às diferentes religiões. Assim, a igreja situa-se próxima ao templo Kannankulangara Sree Krishna e a uma sinagoga.


Revitalização ortodoxa e retomada de referenciais orientais


As grandes comemorações festivas da igreja testemunham o seu significado como centro religioso representativo do desenvolvimento histórico da ortodoxia na Índia nas suas relações com movimentos de reação às pressões de latinização.


Esse significado é fundamentado na tumba de St. Gregorios Abdul'Galeel, Arcebispo sírio-ortodoxo de Jerusalem, cujas festas, que duram três dias, e se realizam anualmente, a partir de 25 de abril, constituem os maiores eventos dessa região ao lado das festas de São Tomé, celebradas no dia 3 de julho, com grande concentração popular.


A importância desse patriarca é justificada pelo fato de ter restaurado a ortodoxia sírio-jacobita em Kerala, superando o longo período marcado por tendências romanizadoras. Mantém-se viva, na comunidade, a memória dos esforços feitos para a sua sobrevivência e para a recuperação de suas características próprias em oposição aos católicos romanos representados ou apoiados pelos portugueses.


A igreja transforma-se, assim, numa expressão silenciosa de denúncia dessa opressão unificadora do século XVI e, ao mesmo tempo, de manifestação de auto-consciência cultural. Vendo-se como uma das causas do enfraquecimento dos "cristãos de São Tomé" na Índia a ausência de um episcopado no passado anterior à época da chegada dos europeus, procura-se salientar e venerar as autoridades da história eclesiástica.


Venera-se o nome do patriarca Mor Gregorios (†1681) pelo fato de ter ordenado dois metropolitanos e restabelecido a liturgia e os ritos antigos, comparando-se esta sua ação com aquela de St. Ya'qub Burd'one que, muitos séculos antes, protegera a igreja sírio-ortodoxa dos inimigos. Em 2000, o Patriarca da Antioquia proclamou a santidade de Mor Gregorios.


Aspectos da discussão


O fato dos portugueses terem encontrado cristãos na Índia quando ali chegaram nem sempre tem estado suficientemente presente nos estudos da época dos Descobrimentos, da formação do mundo colonial português e dos países que dele resultaram.


Por essa razão, não raro se constata uma visão histórica incorreta segundo a qual o Cristianismo teria sido introduzido na Índia pelos portugueses. Essa noção errônea e mesmo a acentuação do vínculo entre o Cristianismo e a ação européia na Índia, e, portanto, com o Colonialismo, vêm sendo sentidas há décadas como um grave problema por teólogos, missiólogos e pesquisadores em geral (Veja artigo a respeito do All Missions Seminary em Pilar, Goa, nesta edição).


Os esforços de diferenciação surgem porém como díspares, dependentes que são de indícios históricos insuficientemente comprovados de origens e desenvolvimentos, tradições escritas e orais e mesmo de inserções dos respectivos pensadores em determinados contextos religiosos e confessionais.


O panorama geral das várias igrejas, denominações, correntes e tradições cristãs da Índia surge como altamente complexo, marcado por posicionamentos antagônicos e afirmações contraditórias, causando perplexidade e desorientação aos pesquisadores. Apenas uma maior emancipação dos estudos culturais das respectivas tradições religiosas e vínculos eclesiásticos, uma consideração do Cristianismo no Oriente sob questionamentos e enfoques mais especificamente teórico-culturais prometem reorientações no tratamento de problemas.


A relevância de questões relacionadas com o Cristianismo na Índia para os estudos referentes a processos culturais manifesta-se sob o ponto de vista da memória cristã no Ocidente e no Oriente, de identidades e diferenciações. Os europeus possuiam noções, ainda que imprecisas, da existência de comunidades cristãs no Oriente, derivadas de uma remota difusão do Cristianismo à época apostólica. Também os cristãos no Índico, que mantinham a memória de remotas origens da ação do apóstolo São Tomé na Índia, possuiam noções do Cristianismo ocidental.


O encontro dos cristãos ocidentais com os do Índico foi marcado não apenas pelo reconhecimento de afinidades, mas sim também pela constatação de diferenças, por mal-entendidos sob diferentes aspectos, quanto a questões teológicas e disciplinares, mas sobretudo quanto a ritos, costumes, usos e expressões.Tratou-se não apenas de questões propriamente teológicas, mas sim de problemas culturais, uma situação totalmente distinta daquele que se colocava no confronto entre cristãos e muçulmanos, ou mesmo entre cristãos e hindús.


Não só as relações entre os "cristãos da terra" e os demais grupos religioso-culturais representam tarefas para os estudos culturais, mas sim também aquelas com os portugueses, marcadas por aproximações e tensões, acentuações de elementos comuns e de expressões diferenciadoras, tentativas de imposição de outros referenciais histórico-culturais e de defesa e acentuação da própria identidade. Os "cristãos de São Tomé", ainda que não se considerando, de princípio, como independentes de Roma, mantinham a sua fidelidade aos antigos ritos.


O exame dessas relações entre comunidades cristãs na Índia e aquele dos europeus, em particular dos portugueses, apenas pode ser realizado considerando-se a sequência histórica dos acontecimentos no contexto global dos processos colocados em vigência com os descobrimentos. Nesse sentido, realizaram-se, desde a década de 80, no âmbito de instituições relacionadas com a A.B.E., encontros e seminários voltados ao tratado de questões relativas ao encontro de culturas católicas do Ocidente com tradições cristãs no Oriente de remotas origens à época dos Descobrimentos, justamente em séculos em que a Europa se confrontava, ela própria, com impulsos reformadores.


Os "cristãos da Índia" depararam-se inicialmente com cristãos ocidentais imbuídos da síndrome de combate aos mouros da Reconquista, e, a seguir, com cristãos cada vez mais impregnados de intuitos de auto-reforma e de contra-reforma, explicáveis apenas a partir de contextos histórico-culturais da própria Europa. Pode-se compreender, assim, a partir da consideração desses pressupostos, os esforços europeus no sentido de acentuar a unidade para além da diversidade, da Catolicidade sob o primado papal. Os "cristãos da Índia" foram também confrontados não apenas com uma multiplicidade de ordens, congregações de diferentes inserções históricas e expressões culturais do Ocidente, como também com tendências voltadas à manutenção e reafirmação de elos determinados do Padroado Português ou à afirmação mais clara da orientação romana da ação propagadora.


Confrontos de afirmação de identidade de diferentes lados marcam a história das relações entre cristãos na Índia no século XVI. A acentuação dos elos com a tradição caldeia sob o Patriarca caldeu J. Sullaqa, a partir de 1553, contrariava aos impulsos de afirmação dos direitos e privilégios do Padroado, levando ao aprisionamento de Mar Abraham (+1597), arcebispo de Angamala. Os seus sucessores passaram a ser autoridades nomeadas por Roma, sendo Angamala inicialmente subordinada a Goa e, após a sua elevação a Arquidiocese, dirigida por jesuítas.


Nome de particular significado na história desse desenvolvimento em direção a uma unidade sob a perspectiva ocidental foi a do Arcebispo de Goa, Alexius de Menezes, cuja memória é até hoje lembrada em inscrição na Igreja do Bom Jesus da Companhia de Jesus em Goa. Foi o responsável pelo Sínodo de Diamper, realizado no ano de 1599, que, apesar de expressar, na sua forma de expressões "unidade na diversidade", selou um processo de latinização.


Marco no movimento reativo dos cristãos de São Tomé foi aquele da cruz de Mattancherry, de 1653 (Veja artigo a respeito). Nessa revolta, sobretudo de resistência aos jesuítas, assumiu a liderança o arquidiácono Thomas, assumindo o título de Mar Thoma, inaugurando uma linha que chegou a Mar Thoma IX, em 1816. A pedido, o bispo jacobita Mar Gregorios de Jerusalem veio à Índia, em 1664, consagrando Mar Thoma I como chefe da ortodoxia na Índia, fundamentando-se assim o relacionamento com a Igreja sírio-jacobita.


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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. (ed.). "Os "cristãos de São Tomé" sírio-jacobitas do Malabar e a revitalização da ortodoxia como afirmação de orientalidade perante a militância cristã ocidental". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 131/8 (2011:3). http://www.revista.brasil-europa.eu/131/Cochim-Sirio-Jacobitas_do_Malabar.html


  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa: http://www.brasil-europa.eu


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  3. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações, academias de letras ou outras páginas da Internet que passaram a empregar designações similares.




 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 131/8 (2011:3)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2010 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2747


Cheriapally. Paravur. India. Foto A.A.Bispo


Os "cristãos de São Tomé" sírio-jacobitas do Malabar
e a revitalização da ortodoxia como afirmação de orientalidade
perante a militância cristã ocidental


Trabalhos da A.B.E. pelos 500 anos da conquista de Goa por Afonso de Albuquerque. 30 anos do Simpósio Internacional "Música Sacra e Cultura Brasileira" e 20 anos de sessão acadêmica na Universidade Urbaniana em Roma.
Sessão na igreja sírio-jacobita de São Tomé Cheriapally, Norte de Paravur (Kottaikavu) Mar Gregorius Abdul Jaleel Arts and Science College

 









Fotos A.A.Bispo
©Arquivo A.B.E.

 

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