S. Bartolomeu e os alemães em Portugal. Revista BRASIL-EUROPA 130/2, Bispo, A.A. (Ed.). Academia Brasil-Europa. Organização de estudos culturais em relações internacionais





Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 
Frankfurt a.M. Foto A.A.Bispo
Enquanto a edição anterior desta revista focalizou a cidade de Nova York, o presente número dirige a sua atenção sobretudo a Frankfurt am Main, a "Nova York" da Europa. Com isso, a A.B.E. retomou trabalhos relacionados com Frankfurt a.M., inaugurados em 1975.

Significado de Frankfurt a.M. para os estudos culturais no contexto da A.B.E.

A cidade de Frankfurt am Main, a metrópole financeira da Alemanha, sede da quarta maior bolsa de ações do globo, distingue-se de outras cidades alemãs e mesmo da Europa pela sua silhueta de arranha-céus. É a cidade que apresenta os mais altos edifícios da Europa. Em estatísticas, surge em décimo quinto lugar entre as 25 cidades com os arranha-céus de maior número de andares do globo.

Frankfurt a.M. Foto A.A.Bispo
Poucas cidades européias transformaram nas últimas décadas a sua fisionomia de tal forma como Frankfurt a. M.. Quem conheceu a cidade ainda no início da década de 70, dificilmente reconhece algumas de suas ruas e praças. A silhueta de Frankfurt, até então marcada sobretudo pela torre do Kaiserdom, com 96 metros de altura, é hoje caracterizada por edifícios de bancos e de empresas.

Essa transformação urbana de Frankfurt não foi por todos bem vista. Significou um afastamento relativamente à configuração urbana e à silhueta de outras cidades européias, americanizando-a, segundo muitos. Passou até mesmo a ser designada como "Mainhattan" da Europa, em jogo de palavras que relaciona Manhattan com o rio Main.

Frankfurt a.M. Foto A.A.Bispo
Hoje, o skyline de Frankfurt é em geral decantado como imagem da potência financeira da cidade. Procura-se salientar que Frankfurt continua a ter os seus antigos edifícios históricos, tendo até mesmo reconstruído partes centrais destruídas durante a guerra, oferecendo assim um exemplo da harmonização do patrimônio arquitetônico histórico com a cidade das torres bancárias. Esse patrimônio, porém, apresenta-se em moldura modificada, o que se reflete na percepção de suas dimensões, proporções e significados. A leitura da cidade torna-se mais complexa, exigindo maior atenção analítica.

A internacionalidade de Frankfurt a.M. é também frequentemente decantada pela alta porcentagem de estrangeiros que ali exercem atividades e residem. Surge como uma das cidades alemãs que mais se caracterizam por situações multiculturais particularmente vitais. Destaca-se também por possuir não apenas um grande número de instituições bancárias estrangeiras, mas sim também de associações dedicadas ao comércio, ao turismo, a idiomas e a expressões culturais de diferentes povos, inclusive da América Latina.

Frankfurt a.M. Foto A.A.Bispo

Essa situação justifica não que Frankfurt am Main seja considerada como capital cultural da Europa, por se achar no seu "coração" geográfico, como por vezes mencionado, mas sim como objeto privilegido de estudos culturais como vendo sendo salientado pela A.B.E..

Assim, Frankfurt a.M. foi repetidamente considerado em seminários que relacionaram arquitetura, desenvolvimento urbano, música e outras expressões culturais realizados em cooperação com as universidades de Bonn e Colonia. Uma oportunidade para a retomada dessas reflexões foi possibilitada pela exposição "Wenn Architekten träumen dürfen", realizada em Frankfurt a.M., em setembro/outubro de 2010.

Para além do significado de suas instituições científicas e culturais, de seus teatros, de sua vida musical e artística, de seus museus, de seus monumentos e dos muitos nomes de pensadores e artistas que ali nasceram ou viveram, a cidade oferece diversificadas possibilidades de análise de transformações de imagens e significados. Desempenhou significado central em várias épocas da história político-cultural alemã nos seus elos internos e continentais. Desempenhou papel simbólico de centro da idéia antico-medieval do Império, nela se procedendo à eleição e à coroação de imperadores, e tornou-se emblema da unidade nacional.

Inúmeras são as possibilidades que Frankfurt a.M. oferece para a realização de estudos histórico-culturais. Elos com o os países de língua portuguesa podem ser considerados sob diversos aspectos, concernentes a várias esferas dos conhecimentos e das artes, e em diferentes épocas.

O direcionamento teórico da A.B.E. vem possibilitando que se revelem horizontes mais amplos para o tratamento de processos culturais em contextos internacionais, em particular daqueles relacionados com Portugal e o Brasil. Assim como o observador de hoje necessita esforçar-se para detectar e reconstruir fisionomias históricas da urbe por detrás de sua configuração mais recente de arranha-céus, também necessita, para estudos mais aprofundados de imagens e sentidos em processos culturais. penetrar em universos quase que submersos na metrópole marcada pelo economia e finanças. Um dos caminhos que aqui se abrem é indicado pela torre do Kaiserdom e que hoje é suplantada na sua dominância e sentido referencial pelas torres bancárias.

Frankfurt a.M. Foto A.A.Bispo

Local de reflexões: Kaiserdom São Bartolomeu


A igreja de São Bartolomeu em Frankfurt a.M., edificada em local de antiga capela palatina e igreja conventual, foi, através dos séculos, um dos monumentos da arquitetura religiosa alemã de maior significado simbólico nacional e mesmo europeu. Tendo sido o local da escolha e da coroação dos imperadores romano-germânicos, foi o símbolo arquitetônico da idéia do Império Romano-Germânico, ou melhor, do Sacro Império Romano de Nação Alemã. Assumiu, assim, uma posição de singular relevância na história cultural da arquitetura em contextos globais e que o diferencia de outras construções sacrais da Europa. Não sendo uma catedral, difere no seu significado das grandes sedes episcopais que marcaram cidades européias, adquirindo um significado simbólico e político-cultural sui-generis e que merece particular atenção nos estudos culturais.


Frankfurt a.M. Foto A.A.Bispo

Como igreja de coroação de imperadores, o Kaiserdom de Frankfurt assumiu um papel inicialmente desempenhado pela própria Basílica de São Pedro, em Roma, onde o Pontífice procedia à coroação imperial. Desde 936, a coroação a rei romano, que precedia àquela de imperador, passou a ser realizada na capela palatina de Aix-la-Chapelle (Aachen), por ali abrigar o túmulo de Carlos Magno. Definida como local para a escolha real pela Bula de Ouro de Carlos IV, em 1356, as coroações imperiais, que a elas se seguiam, marcaram a vida de Frankfurt a.M. de 1562 até o término do Sacro Império Romano-Germânico.




As relíquias de São Bartolomeu em Frankfurt a.M.


Se as relíquias dos Três Reis Magos representam o âmago das relações entre culto e cultura de Colonia, veneradas na sua catedral, as de São Bartolomeu o são para Frankfurt a.M..


São Bartolomeu já era considerado padroeiro da cidade em 1239. Entretanto, não se tem presente, em geral, o significado que a posse dessas relíquias representou para o universo católico medieval. A Reformação, a secularização e o fim do Sacro Império Romano Germânico levaram ao obscurecimento do significado do culto a São Bartolomeu. Pode-se avaliar a sua importância a partir do fato de tratar-se nada menos do que de relíquias de um dos doze apóstolos. Bastaria aqui lembrar do significado do apóstolo São Tiago Maior para Compostela, o mundo hispânico e os complexos culturais relacionados com a Reconquista para salientar-se a necessidade de estudos hermenêuticos mais aprofundados das concepções vinculadas com o apóstolo que teve as suas relíquias transferidas para Frankfurt a.M..


A vinda das relíquias de Bartolomeu para a Alemanha é relacionada com a história do imperador Otto III (980-1002), rei romano a partir de 983 e imperador a partir de 996. Esse soberano alemão tem colocado dificuldades à apreciação histórica, pelo fato de ter sido as suas atividades marcadas por viagens e mesmo por um deslocamento da ação real e imperial romano-germânica para fora da Alemanha. Deveria ser aqui levado em consideração que não apenas circunstâncias históricas e exigências políticas mas sim concepções e impulsos intrínsecos à ordenação simbólica da cultura podem ter determinado tal "saída" da Alemanha e direcionamento à Roma. Assim, tem-se salientado, em sequência a elucidações do medievalista Percy Ernst Schramms (1894-1970) que Otto III era conduzido pela idéia da renovação do Império Romano.


Segundo a tradição, Otto III trouxe para o novo convento de San Bartolomeo all'Isola no rio Tiber as relíquias do apóstolo, que tinham vindo por mar da Armênia a Benevento, passando por ilha do Mediterrâneo. O imperador tinha a intenção de transferi-las, também por mar (!), à Alemanha. Foram trazidas apenas após à sua morte, sendo o seu culto local documentado históricamente no ano de 1215.




Concepções relacionadas com S. Bartolomeu


Para os estudos culturais em contextos globais, São Bartolomeu adquire particular significado por ter sido um daqueles apóstolos mais vinculados com o mundo extra-europeu. Segundo a tradição, foi missionário "na Índia", termo que pode ser compreendido no sentido amplo e mesmo figurado do termo, uma vez que é São Tomé que assim permaneceu na tradição indiana.


Bartolomeu tornou-se, mais especificamente, o missionário da Armênia. Segundo a tradição, foi agente da conversão do país por ter curado a filha do rei, então possessa por maus espíritos, libertando-a. Por esse motivo, foi perseguido pelos cultores dos antigos deuses, sendo martirizado: foi-lhe tirada a pele e decapitado.


A ação de Bartolomeu refere-se, assim, à cura daqueles que são presos por forças espirituais à matéria, aqueles que são "possessos" no sentido de adquirir bens, que se voltam à terra, que se deixam escravizar ao trabalho e ao gozo de bens materiais. Como tratado em outros números desta revista, em diferentes contextos, tem-se aqui uma configuração simbólica de antigas origens, cujas bases tipológicas se encontram no Velho Testamento. Somente a consideração desses fundamentos possibilitam o entendimento da linguagem visual apesar das diferenças de expressões que assumiu nos vários contextos. (Veja: http://www.revista.brasil-europa.eu/128/Imigrantes-irlandeses.html)


A salvação de um povo dos maus espíritos que o prendem à terra e suas riquezas equivale ao salvamento de sua submersão e morte nas águas da existência temporal. Compreende-se, assim, entre outros aspectos, a imagem tipológica velho-testamentária do arco-íris que surge com o abaixamento das águas do dilúvio, assim como a da serpente na narrativa da ultrapassagem do Mar Vermelho. Bartolomeu, dominando os espíritos de possessos, representa, em sentido figurado e anti-tipológico, a força espiritual intrínseca ao mundo que tem o controle sobre as águas.


Essas análises de sentido permitem que se compreenda o significado do culto a São Bartolomeu em situações marcadas por comércio e trabalho na procura de enriquecimento material, pelo dinheiro, por riscos de escravização à terra. O seu culto traz à consciência os riscos derivados dessa submersão nas águas da existência, cujos tipos foram, entre outros, a humanidade anti-diluviana e a escravização do povo eleito no Egito.


Essa consideração da linguagem imagológica do culto a São Bartolomeu poderia abrir novos caminhos para a interpretação dos feitos de Otto III, de sua saída da terra, do seu viajar, da sua ida a Roma, do seu empenho pelas relíquias do apóstolo. Ter-se-ia aqui a vigência, atualizada em determinadas circunstâncias históricas, de uma imagem de guia que conduz um império para fora das algemas e dos riscos causados pelo direcionamento do homem predominantemente ao alcance de bens materiais.


São Bartolomeu e a comunidade alemã de Lisboa


Sob o pano de fundo desse singular significado do culto a São Bartolomeu no contexto do Sacro Império Romano-Germânico pode-se entender a veneração do apóstolo por comerciantes alemães que se estabeleceram em Portugal em fins do século XIII e que deu origem a uma irmandade que marcou por séculos a vida e a identidade da comunidade alemã de Lisboa.


A memória dessa instituição, documentada tardiamente em fonte de 1671, narrava que um comerciante alemão de nome Overstedt, em fins do século XIII, estabelecera um depósito de madeira à margem do Tejo, cercando o terreno com um muro, dentro do qual edificou uma capela dedicada a São Bartolomeu. O rei D. Dinis (1261-1325), vulto exponencial da história portuguesa no fomento da agricultura, do comércio, da economia, das artes e das ciências, integrou essa capela na igreja dedicada a São Julião. Os direitos seculares dessa irmandade, concedidos em eternidade, continuaram a vigorar à época da Reformação, nela encontrando proteção os alemães de Lisboa, independentemente de elos confessionais. A irmandade auxiliara hospitais e escolas alemãs, apoiando alemães caídos em necessidade.


É compreensível, assim, que esses fatos tenham sido relembrados por uma autora que tratou das relações culturais entre a Alemanha e Portugal em época de sua intensificação nos anos 30 do século XX: Elisa von Hopfgarten (Veja artigo a respeito nesta edição). Salientando que a irmandade de São Bartolomeu representara através dos séculos o sustentáculo moral da colonia alemã de Lisboa, registra que a ela pertencer significava uma honra para os alemães ainda no século XX.


A irmandade de São Bartolomeu constituiu um elo contínuo de relações sociais e culturais entre a Alemanha e Portugal. Foram os seus direitos seculares que haviam possibilitado à devolução de bens da colonia alemã confiscados durante a Primeira Guerra ou a indenizações por parte do Govêrno português.


Elisa von Hopfgarten, no seu artigo, publicado em órgão nacionalsocialista ("Deutsch-Portugiesische Kulturbeziehungen", Geistige Arbeit, 1935) , chega mesmo a localizar na Irmandade de São Bartolomeu a origem do "Deutschtum" em Portugal, ou seja, de uma alemanidade compreendida no sentido de consciência e cultura de "essência alemã" segundo os conceitos "povísticos" ("völkisch").


Esse contexto levanta, hoje, questões que apresentam como de grande relevância para os estudos culturais e que mereceriam estudos mais aprofundados. Ter-se-ia, na secularização de concepções relacionadas com o culto a São Bartolomeu, ou seja, na perda de suas dimensões espirituais, anti-tipológicas, a reativação de estruturas imagológicas típicas que explicariam idéias e atitudes concernentes a relações entre Economia e Anschauung na política cultural da época totalitária?





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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.."Mercado e finanças nas suas relações com Anschauungen. Questões imagológicas: São Bartolomeu no Sacro Império Romano-Germânico e na história das relações entre a Alemanha e Portugal". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 130/2 (2011:2). http://www.revista.brasil-europa.eu/130/Sao_Bartolomeu_na_Alemanha_e_em_Portugal.html


  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa: http://www.brasil-europa.eu


  2. Brasil-Europa é organização exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias e não considera nos seus textos dados divulgados por agências de notícias e emissoras. É, na sua orientação culturológica, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. Foi registrada em 1968, sendo continuamente atualizada. A A.B.E. insere-se em antiga tradição que remonta ao século XIX.


  3. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações, academias de letras ou outras páginas da Internet que passaram a empregar designações similares.




 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 130/2 (2011:2)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2010 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2716




Mercado e finanças nas suas relações com Anschauungen
Questões imagológicas:
São Bartolomeu no Sacro Império Romano Germânico
e na história das relações entre a Alemanha e Portugal


Ciclo de estudos Portugal-África-Alemanha-Brasil em Frankfurt a.M. e outras cidades pelos
10 anos do colóquio internacional "Dimensões européias de Portugal" da A.B.E. Reflexões no Kaiserdom São Bartolomeu, Frankfurt a.M.
por ocasião da exposição "Wenn Architekten träumen dürfen", setembro/outubro de 2010

 

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Fotos A.A.Bispo 2010, arquivo da A.B.E.