Portugal-África-Alemanha-Brasil. Revista BRASIL-EUROPA 130/1, Bispo, A.A. (Ed.). Academia Brasil-Europa. Organização de estudos culturais em relações internacionais





Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 
O tema desta edição da Revista Brasil-Europa/Correspondência Euro-Brasileira deve ser entendido sob o pano de fundo dos assuntos tratados no seu número anterior. Considerou-se, então, elos entre desenvolvimentos econômicos e culturais em século que foi marcado por duas guerras mundiais sob a perspectiva dos países vencedores, em particular dos Estados Unidos e de suas relações com o Brasil. (http://www.revista.brasil-europa.eu/129/Brasil-EUA.html)


Neste número, o enfoque é dirigido ao país que foi um dos principais vencidos nos dois conflitos, a Alemanha. Essa focalização surge como de particular relevância para os estudos culturais referentes aos países de língua portuguesa, uma vez que esse ramo de estudos teve a sua história marcada de forma particularmente intensa por desenvolvimentos alemães e luso-alemães.


A necessidade de reexames do passado para a análise do presente em função de procedimentos refletidos no futuro não dizem respeito apenas aos estudos específicos de relações Alemanha/Brasil, mas à própria área disciplinar. Pelo fato de ter sido marcada por nomes, situações e concepções do período nacional-socialista, tem o seu passado encoberto por sombras, uma vez que autores, obras e acontecimentos foram silenciados e publicações retiradas de bibliotecas após a Segunda Guerra. Redescobrir e considerar contextualizadamente nomes e fatos são, porém, pré-condição para a história disciplinar e para procedimentos conscientes.


O significado dos estudos referentes a Portugal e ao mundo de língua portuguesa na Alemanha de entre-guerras, em particular dos anos trinta, apenas pode ser compreendido pelas afinidades de concepções e estruturas políticas em países marcados por sistemas ditatoriais do nacionalsocialismo, do facismo e do autoritarismo corporativista português. O significado de questões coloniais para a Alemanha e Portugal explica o papel relevante desempenhado pela África nos empreendimentos da época.


Se para a Alemanha tratava-se antes de pretensões revisionistas quanto a colonias perdidas pelo desfecho da Primeira Guerra, para Portugal tratava-se da conservação de um dos maiores patrimônios coloniais ainda existentes.


Do antigo império português, de dimensões mundiais, que havia há muito perdido a sua parte mais rica, - o Brasil -, restavam sobretudo os grandes territórios africanos, em particular, pela sua importância econômica, Angola. A questão da "reconstrução colonial" lusa dizia respeito, assim, sobretudo à África, e as relações Portugal-África assumiram, necessariamente, uma dimensão que extrapolava a dos próprios interesses portugueses. Compreende-se, assim, o significado de início surpreendente que se constata pela África portuguesa nos discursos coloniais e colonialistas da Alemanha dos anos trinta.


Frankfurt a.M. Foto A.A.Bispo


Portugal-África e a renovação dos estudos euro-brasileiros


Desde os primeiros anos da entidade que hoje constitui a organização Brasil-Europa, na segunda metade da década de sessenta, reconheceu-se que uma atualização teórica dos estudos culturais referentes ao Brasil necessitaria ser também acompanhada por reexames de perspectivas nos estudos relativos à África.


Um dos principais anelos desse movimento era o de superar categorizações de objetos de estudo segundo esferas culturais e respectivas áreas disciplinares, dirigindo a atenção a processos. Entre esses, também deveriam ser considerados processos de difusão de conhecimentos, de pensamentos, de idéias, de hipóteses e modêlos interpretativos através de publicações e de rêdes de pesquisadores. Para esse fim, tornava-se necessário não apenas considerar a literatura existente como fontes de informações, mas sim também analisá-la quanto à orientação de seus autores, as suas inserções em determinadas correntes, as suas concepções, visões e objetivos que influenciavam a seleção de temas, o seu tratamento e as suas conclusões.


Paralelamente aos exames da literatura de autores brasileiros referentes a assuntos africano-brasileiros, procedeu-se ao levantamento e ao estudo de publicações de autores estrangeiros, em particular portugueses referentes à África, especialmente à então África portuguesa.


Esse intuito possuia então particular atualidade devido aos movimentos de emancipação política das antigas colonias portuguesa e que davam motivo a diferentes enfoques dos acontecimentos, a posicionamentos e interpretações divergentes.


O principal nome a ser aqui lembrado é o do compositor português Jorge Peixinho, que em encontros e conferências em Curitiba e em São Paulo salientou com veemência e convicção político-cultural a necessidade de uma mudança de enfoques em época de tão graves transformações nos países africanos e mesmo em Portugal. Em sessão realizada na Casa de Portugal, de São Paulo, há 40 anos, defendeu uma revisão radical da literatura marcada por posições coloniais e concepções do estado nacional autoritário que continuava a influênciar os estudos de expressões culturais, em particular do folclore.


Levantamento e reexame de fontes


Esses intuitos de exames de textos foram acompanhados necessariamente pelo levantamento de fontes. Um caminho que se ofereceu na procura de materiais foi o das publicações missionárias. Em bibliotecas de ordens religiosas e museus especializados deparou-se com periódicos e publicações pouco conhecidos no âmbito dos estudos culturais, de interesse não apenas para estudos históricos do passado mais remoto mas também para o conhecimento de ocorrências e tendências mais recentes. Um dos resultados dessa consideração de fontes menos usuais da literatura referente à África serviu como subsídio a simpósio internacional dedicado a questões africanas levado a efeito no Centro de Ciências de Bonn, em 1980 (A.A.Bispo, "Zur Kirchenmusik in Zaire nach den Darstellungen un der missions-und musikwissenschaftlichen Literatur", Musices Aptatio 1980, Roma: Polyglotta Vaticana, 365-383).


Para os estudos relativos às inserções político-culturais da literatura referente mais especialmente aos países africanos de passado português, mais profícuos foram trabalhos desenvolvidos com materiais conservados da própria tradição da A.B.E.. Esses documentos testemunhavam relações - nem sempre de afinidade - de membros do círculo constituído em 1919 com personalidades e tendências da história dos estudos luso-teuto-brasileiros até a deflagração da Segunda Guerra. Esse material, conservado no Brasil, comprova os estreitos elos existentes entre os estudos voltados ao mundo de língua portuguesa e a Alemanha, um passado institucional e de intercâmbios acadêmicos esquecido, até mesmo silenciado.


Esse material, enriquecido com o levantamento de fontes de difícil acesso, possibilitou tentativas de reconstrução gradual de contextos e rêdes.


Nesses esforços, constatou-se o aparentemente singular papel desempenhado pela África, em particular a das antigas colonias portuguesas, no vir-a-ser e no desenvolvimento institucional da área de estudos portugueses e brasileiros e, ainda mais, dos estreitos elos, até então inimaginados, existentes entre a política colonial portuguesa e a do revisionismo colonial sob o regime nacionalsocialista. Tornou-se claro que também a história dos estudos concernentes ao Brasil não poderia ser desenvolvida independentemente daquela dos estudos referentes à África.


Exigências da integração européia


Com o movimento de aproximação dos países europeus entre si, manifestados no desenvolvimento de instituições da comunidade européia, e em correspondência aos intuitos expressos na própria designação da A.B.E., passou-se a discutir, em simpósios e seminários, que as relações Portugal-África necessitariam ser antes inseridas em contextos mais abrangentes de um complexo Europa-África.


Em programa dedicado especificamente ao tratamento de questões em contextos Europa-África-América, discutiu-se, por diversas vezes a impropriedade de consideração de uma literatura referente às antigas colonias na África sob perspectivas particulares das antigas metrópoles coloniais: os próprios textos inseriram-se em contextos globais e em correntes políticas e político-culturais que transpassavam fronteiras.


Riscos de retomada irrefletida de perspectivas quanto ao binômio Portugal-África


A apropriação, sob o enfoque particular de ex-nações coloniais, de uma literatura que necessita ser examinada nas suas inserções em processos mais amplos traz em si o risco de recapitulações insuficientemente refletidas de correntes político-culturais do passado.


Os anos trinta foram marcados, na Alemanha e em Portugal, por uma intensificação de interesses por questões coloniais, o que se manifestou em empreendimentos vários, em viagens de contatos e de intercâmbios, em fundações de órgãos e instituições, no fomento de pesquisas e da divulgação de conhecimentos. Pelas características dos sistemas políticos, esses empreendimentos serviram a concepções, visões e ideários. A propaganda não atuava apenas de forma manifesta, explícita, mas através de recursos literários, jornalísticos e, sobretudo, fotojornalísticos. (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/124/Literatura_de_viagens.html)


Por mais interesse que despertem os dados contidos e os materiais visuais oferecidos nas publicações dessa época, seria inadequado considerá-las irrefletidamente apenas como repositórios de informações para a reconstrução da história de países africanos da primeira metade do século XX. Elas são antes, como resultados de propaganda nacional, dirigidas aos próprios leitores europeus, ou seja, à formação de sua visão do mundo ("Weltanschauung").


Problemas do conceito de "Memória da África"


Um dos conceitos mais questionáveis neste contexto é o da "memória". De uso largamente difundido também no Brasil para a designação de eventos, empreendimentos e instituições, o termo "memória", se considerado com maior cuidado, não deixa de colocar problemas teóricos significativos.


Como discutido em vários eventos da A.B.E., pode ser examinado, entre outros aspectos, nas suas relações com a historiografia, com a compreensão do tempo histórico, com procedimentos cronológicos ou retroativos, "do passado ao presente" ou "de hoje para o passado". O complexo de questões relacionado com a "Memória" nos estudos culturais do mundo de língua portuguesa foi alvo de sessão especial da A.B.E. no âmbito do Congresso Internacional de encerramento do triênio pelos 500 anos do Brasil, realizada em Parati, em 2002.


Nada seria mais superficial e teoricamente questionável do que a utilização de materiais textuais e sobretudo de imagens fotográficas de países africanos da literatura propagandística do passado de forma descontextualizada e nostálgica para uma "Memória da África".


Esses materiais podem servir antes a uma "Memória da Europa" quanto ao uso da África em imagens transmitidas a leitores europeus. Elas são "Memória da África" se entendidas como recordações de viajantes europeus que por lá passaram e fixaram em textos e fotos o que vivenciaram, transmitindo-os no espírito propagandístico de sua época.


Significado de leitura teórico-cultural refletida de publicações e materiais visuais


O significado dessa literatura - e do material fotográfico que frequentemente inclui - revela-se antes sob uma perspectiva do estudos de processos culturais em contextos internacionais.


Como propugnado pela A.B.E., esses estudos culturais devem ser conduzidos em estreito relacionamento com aqueles da própria ciência, ou seja, com exames dos pressupostos da produção e da difusão do conhecimentos e das rêdes do trabalho científico.


Essa literatura marcada pela Propaganda dos anos 30 não pertence simplesmente à "História da Ciência", devendo ser considerada sob o aspecto exclusivamente historiográfico. A perspectiva teórico-cultural, interdisciplinar, é que permitirá examiná-la de forma mais diferenciada, talvez até mesmo aguçando a sensibilidade para possíveis continuidades de concepções e que mereceriam ser questionadas e refletidas.


"Portugal-África" foi um dos complexos teóricos retomados por ocasião do Colóquio Internacional da A.B.E. dedicado ao tema "Dimensões Européias de Portugal", quando da nomeação do Porto como Capital Européia da Cultura em 2001. Nessa ocasião, foram expostos, no centro de estudos da A.B.E., documentos de seus acervos relativos  ao passado das relações entre Portugal e a Alemanha nos anos 30, dos quais alguns foram agora reconsiderados.


Frankfurt a.M. Foto A.A.Bispo


Todos os direitos relativos a texto e imagens reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do editor.



Indicação bibliográfica para citações e referências:

Bispo, A. A., "Economia e concepções político-culturais nos estudos do mundo de língua portuguesa. Revendo relações entre colonialismo e propaganda no nacionalismo autoritário: Portugal-África-Alemanha-Brasil". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 130/1 (2011:2). http://www.revista.brasil-europa.eu/130/Portugal-Africa-Alemanha-Brasil.html

  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa: http://www.brasil-europa.eu


  2. Brasil-Europa é organização exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias e não considera nos seus textos dados divulgados por agências de notícias e emissoras. É, na sua orientação culturológica, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. Foi registrada em 1968, sendo continuamente atualizada. A A.B.E. insere-se em antiga tradição que remonta ao século XIX.


  3. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações, academias de letras ou outras páginas da Internet que passaram a empregar designações similares.




 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 130/1 (2011:2)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2010 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2715




Tema em debate

Economia e concepções político-culturais nos estudos do mundo de língua portuguesa
Revendo relações entre colonialismo e propaganda no nacionalismo autoritário
- Portugal-África-Alemanha-Brasil -

Ciclo de estudos pelos
10 anos do colóquio internacional "Dimensões européias de Portugal" da A.B.E. em Frankfurt a.M. e outras cidades. Escolha de Frankfurt pelos 10 anos da placa de lembrança crítica da queima de livros pelos nacionalsocialistas, em 1933: "quem queima livros, queima por fim homens"

 

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Imagens de Frankfurt a.M.
Fotos A.A.Bispo, 2010, arquivo da A.B.E.
Artigo de jornal:
Börsenzeitung, outubro de 1935. Sessão do  colóquio intenacional "Dimensões Européias de Portugal" da A.B.E.