H.F.Blunck e O.Th. von Hoyningen-Huene: política da escrita nacionalsocialista. Revista BRASIL-EUROPA 130/9, Bispo, A.A. (Ed.). Academia Brasil-Europa. Organização de estudos culturais em relações internacionais





Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

Para o desenvolvimento consciente de estudos culturais em relações globais é condição necessária considerar-se a história da própria pesquisa. Complexos temáticos, linhas de pensamento, rêdes de contatos entre estudiosos, institucionalizações de ramos de estudos inseriram-se em determinados contextos culturais e político-culturais, necessitando ser continuamente reexaminados.

Essa exigência impõe-se em particular no âmbito dos estudos voltados a relações entre a Europa e o Brasil e entre a Europa e a África, assim como entre a Europa e outras regiões do mundo marcadas historicamente pelos portugueses.

Esses estudos foram por demais determinados, no seu desenvolvimento e institucionalização, pelo interesse que despertaram em período político marcado por sistemas totalitários, em particular o Nacionalsocialismo alemão e o Estado autoritário português.

Essa situação traz particulares dificuldades para o reexame de correntes de pensamento e da própria história disciplinar nos seus elos com desenvolvimentos político-culturais globais. Após a Guerra, nomes, publicações, instituições foram silenciados ou tiveram partes de seu passado sufocadas. Obras foram excluídas de bibliotecas públicas. O pesquisador, hoje, surpreende-se em muitos casos ao redescobrir nomes, textos e contextos muitas vezes desconhecidos, e a procura de fontes para a reconstrução refletida desse passado, ainda que relativamente recente, nem sempre é fácil.

Hans Friedrich Blunck - papel influente nos anos trinta

Nesse esforço inqueridor, em estado ainda insuficiente de conhecimentos, um dos nomes que surge é o de Hans Friedrich Blunck. O fato do ano 2011 marcar os 50 anos do seu falecimento pode ser mais uma justificativa para essa consideração.

O mal-estar que o pesquisador possa sentir em tratar de um escritor que assumiu cargos de particular relevância no regime nacionalsocialista e que, após a Guerra, ao lado de sua atividade sobretudo como autor de sagas e lendas, pertenceu à "Obra Cultural Alemã de Espírito Europeu" (Deutsches Kulturwerk Europäischen Geistes), considerada como de extrema direita, não o isenta da necessidade de se ocupar com o papel que desempenhou no passado, sobretudo pela sua função na política cultural dirigida a alemães no Exterior.

Nascido em Altona, Hamburg, estudou jurisprudência em Kiel e Heidelberg. Indícios da sua inserção em esferas caracterizadas por sentimentos nacionais da Alemanha podem ser vistos no fato de ter participado ativamente de corporações estudantís, da Teutonia, em Kiel, e da Allemannia, em Heidelberg. A sua vida foi marcada pela participação, como oficial, na Primeira Guerra Mundial. Como membro da administração alemã da Bélgica, dedicou-se à Bélgica e à questão baixo-alemã". Com o fim da Guerra, foi obrigado a fugir para os Países Baixos. Na década de vinte, ocupou cargos relevantes governamentais e universitários, tornando-se, a partir de 1925, Síndico da Universidade de Hamburgo.

Esses traços gerais dessa fase de sua vida permitem que se compreenda o contexto histórico-cultural em que se inseriu. Pode-se perceber uma trajetória marcada por sentimentos nórdicos, nacionais da época império alemão, da experiência da Guerra, da amarga derrota e de ressentimentos devido ao tratamento concedido à Alemanha pelos vencedores.

Correspondendo à sua origem, dedicou-se a temas nórdicos e da história da Hansa, ou seja, do comércio e das relações histórico-culturais marcadas pelas atividades de Hamburgo e de outros portos alemães. Interessou-se pelo estudo da mitologia nórdica transmitida em sagas, contos e narrativas em dialetos populares.

Essas suas tendências, que levavam à valorização de sentimentos nacionais a partir de cultura popular , da história e da mitologia nórdica vieram de encontro à ideologia nacionalsocialista do "povismo"(völkisch) na literatura, nas artes e no pensamento.

Logo após a tomada de poder dos nacionalsocialistas, em 1933, Blunck assumiu importante cargo na vida cultural da Alemanha. Foi nomeado, a 7 de junho, a segundo presidente da seção de literatura da Academia Prussiana das Artes, ao lado de Hans Johst (1890-1978), membro da "Liga de Combate pela Cultura Alemã", militante no combate a uma "influência judaica na vida cultural".

Blunck foi um dos autores que assinou, nesse ano, compromisso de fidelidade a Adolf Hitler. Foi nomeado a Presidente da Câmara responsável pela palavra escrita do império, a quem cabia o controle, a censura e a difusão da produção literária (Reichsschrifttumskammer RSK). Essa Câmara constituía um dos sete departamentos da Câmara de Cultura do império, fundada por Joseph Goebbels (1897-1945), em 1933. A sua instituição fora precedida pela queima de Livros, realizada a 10 de maio daquele ano.

Após o seu afastamento do cargo, continuou a atuar em grupos de orientação nacionalsocialista, como o Círculo de Literatos de Eutin. Criou a Stiftung Deutsches Auslandswerk; um dos seus objetivos era a promoção de uma imagem favorável do país no Exterior, coordenando atividades de socidades alemãs no Estrangeiro.

Hans Friedrich Blunck a convite oficial em Portugal, em 1935

O Secretariado da Propaganda Nacional português convidou-o a vir à Portugal como representante do Reichsverband Deutscher Schriftssteller. Esse órgão era vinculado à Reichsschrifttumskammer, que presidia. O convite era para que assistisse às Festas da Cidade de Lisboa, que seriam realizadas nesse ano com particular brilho. Nas suas funções, Blunck representava corporativamente os escritores alemães, obrigados que eram a ser membros da Câmara. Para isso precisavam comprovar ser arianos.

Dados a respeito da estadia de Blunck em Portugal oferece o Diário da Manhã, de 9 de junho de 1935. Esse jornal registra que o Presidente da "Academia dos Escritores Alemães" chegara a Lisboa no dia 8 de junho. Fora aguardado na estação do Rossio por várias personalidades, sendo dali levado ao Avenida Palace Hotel, onde estava hospedado.

Entre os presentes na estação, encontravam-se Antonio Ferro (1895-1956) e o Dr. João Ameal (1902-1982), além do Dr. Antonio de Meneses e Guilherme Pereira de Carvalho, respectivamente diretor e funcionários do Secretariado da Propaganda Nacional. Blunck foi recebido também pela legação alemã em Portugal, encabeçada pelo Barão Von Huene. Presentes estavam também vários jornalistas e escritores.

Oswald Theodor Barão von Hoyningen-Huene (1885-1963)

Os estudos histórico-culturais das relações entre a Alemanha e Portugal nos anos trinta não podem ser  desenvolvidos sem a consideração do Barão von Hoyningen-Huene, diplomata que representou a Alemanha em Portugal até 1944. Von Huene gozava já há muito de uma particular proximidade com o centro do poder na Alemanha, pois era, desde 1925, representante do Ministério do Exterior junto ao Presidente Paul von Hindenburg (1847-1934).

Nessa função, tinha o dever de manter-se particularmente bem informado quanto a desenvolvimentos internacionais. Foi nomeado a embaixador da Alemanha em Portugal antes do falecimento de von Hindenburg, fato concretizado por Adolf Hitler, em 1934. Von Hoyningen-Huene criou elos particularmente estreitos de amizade com os principais representantes do Govêrno autoritário português.

No discurso que pronunciou por ocasião da entrega, ao Chefe do Estado Português, da carta que o acreditou como Ministro plenipotenciário alemão junto a Portugal, em 1934, afirmara expressamente o já antigo interesse da Alemanha pelo país e a sua intenção de contribuir ao intercâmbio econômico e cultural entre as duas nações.

"É para mim uma alta distinção poder representar a Alemanha neste país que tem uma existência tão longa e uma história tão gloriosa e que tão importante parte tomou no descobrimento do mundo. O falecido Presidente do Reich, marechal von Hindemburgo, junto de quem tive a honra de trabalhar por mais de seis anos, muitas vezes na minha presença manifestou o seu vivo interesse por este belo país, com cujo Chefe de Estado se sentia ligado em camaradagem de soldado. (...)Será a minha mais nobre missão contribuir para firmar e profundar as relações entre a Alemanha e Portugal. Espero, antes de tudo, conseguir intensificar essas relações no campo económico e cultural. Não esqueço as dificuldades existentes actualmente no campo económico em tôda a parte, mas a confiança mútua entre os nossos dois países e a convicção de que não faltam condições naturais para um activo trabalho económico e comum dão-me a certeza de que, em virtude da boa vontade de ambas as partes, esses esfôrço será coroado de êxito". (O Século, 25 de Outubro de 1934)

Hildesheim. Foto A.A.Bispo


"Renovação" na Alemanha e em Portugal

Com o convite a Blunck, Portugal mostrava ao representante da "renovação mental" alemã no sentido do nacionalsocialismo, a "renovação" que ali ocorria. Demonstrava explicitamente estar ao lado da política cultural oficial da Alemanha, uma manifestação de posicionamento de que apenas pode ser avaliada no seu significado considerando-se que, após a ação da queima de livros de 1933, escritores alemães emigrados haviam fundado, em Paris, uma sociedade de proteção aos escritores alemães no Estrangeiro (Schutzverband deutscher Schriftsteller im Ausland).

Para Blunck e os demais convidados do Exterior, as autoridades do Secretariado de Propaganda Nacional realizaram um vasto programa de recepções, encontros e excursões. Os visitantes percorreram as ruas da cidade, apreciando os seus pontos mais pitorescos e historicamente relevantes. Após o almoço, reuniram-se no Avenida Palace Hotel, dando início então a uma excursão que os levou ao Museu dos Coches, à Torre de Belém e ao Mosteiro dos Jerônimos. Nesse passeio, foram acompanhados por António Eça de Queiróz (1891-1968), além de Guilherme Pereira de Carvalho e António Lopes Ribeiro, do Secretariado da Propaganda Nacional.

Evento de conteúdo simbólico para a demonstração da "renovação espiritual" de Portugal foi a realização de um Torneio Medieval, no claustro dos Jerônimos. A visita foi pormenorizadamente registrada pela imprensa (Diário da Manhã, 9 de junho de 1935)

Para esse encontro em Portugal, o Secretariado convidou escritores de vários países. Ao lado de Blunck, a Alemanha estava representada pelo ensaista e crítico Robert-Ernst Curdins. A poetisa chilena Gabriela Mistral (1889-1957) já se encontrava em Lisboa. Da Espanha, estiveram presentes Miguel Unamuno (1864-1936), Ramiro de Maezin e o cronista Wenceslau Fernández Flórez (1885-1964). Da França, salientavam-se Jacques Maritain (1882-1973), François Muriac (1885-1970), da Academia Francesa, os escritores Émile Vuillermoz (1878-1960) e Fernand Gregh (1873-1960). Da Bélgica, estavam presentes os escritores Maurice Maeterlinck (1862-1949) e Pierre Daye (1892-1960), assim como Paul Crockaer, este conhecido como particular amigo de Portugal.

Participaram também Jerôme Tharand, enviado especial do Paris Soir e o celebrado dramaturgo italiano Maximo Bontempelli 81878-1960). O jornal Daily Mail enviou um operador cinematogáfico.

Os visitantes permaneceram alguns dias em Lisboa, fazendo depois uma grande excursão cultural por Portugal. Visitaram a Batalha, Alcobaça, Coimbra, Porto, Braga, Viana do Castelo, Guimarães, Buçaco, Curia e outras localidades.

Após as festas, esperava-se a vinda a Lisboa de Henry Bordeaux (1870-1963), André Maurois (1885-1969), Jacques Bamville (1879-1936), do conde Vladimir d'Ormesson (1888-1973) e de Daniel Halevy (1872-1962). Os escritores Georges Duhamel (1884-1966) e Jules Romain (1885-1972) realizaram conferências na sede do Secretariado de Propaganda Nacional.

Deposição de coroa e da suástica no túmulo de Camões

No dia 10 de junho, Hans Friedrich Blunck, acompanhado por Antonio de Meneses Roth, secretário do Grêmio Luso-Alemão, dirigiu-se aos Jerônimos para depor uma coroa com fitas nas cores alemãs e da suástica no túmulo de Camões. Nesse ato, Blunck pronunciou um breve discurso, afirmando que prestava aquela homenagem em nome dos escritores alemães. Trazia as saudaçnoes de "um país renascido ao poeta cuja obra era uma das maiores glórias da humanidade. Lembrou o tempo longínquo em que germanos e lusitanos caminharam a par, lutando contra os mouros, batendo-se juntamente e juntamente morrendo. Referiu-se ao intercâmbio intelectual entre Portugal e a Alemanha, dois povos que mais fundamentalmente vivem da saudade e que agora eram chamados a gozar juntos a sua renascença cultural.

Por ser dia feriado, os navios de guerra presentes no porto estavam embandeirados e, às 12 horas, a fragata D. Fernando e o Bartolomeu Dias deram salvas. (O Século, 11 de junho de 1935)

Recepção de Hans Friedrich Blunck por Oliveira Salazar

Na Alemanha, uma particular ressonância obteve a audiência concedida a Hans Friedrich Blunck por Oliveira Salazar ("Empfang Bluncks in Portugal", Berliner Tagblatt, de 16 de junho de 1935). Nessa recepção, Salazar teria sido informado pormenorizadamente a respeito do programa editorial da "Nova Alemanha", demonstrando grande interesse pelo trabalho de "construção cultural" do III Reich.


A questão do descobrimento luso-nórdico da Terra Nova

À época de sua ida a Portugal, Blunck ocupava-se com a questão do descobrimento da Terra Nova, no Canadá, procurando relacionar empreendimentos nórdicos e lusos. Compartilhava, assim, das preocupações de outros pesquisadores da época, em particular daquelas de Egmont Zechlin e de Hedwig Fitzler. Zechlin havia tratado da questão de um pré-descobrimento luso-teuto-dinamarquês da América em publicação de 1933 ("Zur Frage einer deutsch-dänisch-portugiesischen Vorentdeckung Amerikas", Forschungen und Fortschritt, Berlin, 10 de maio de 1933) (Veja artigos sobre Fitzler e Zechlin nesta edição).

Poucas semanas antes havia publicado, no órgão nacionalsocialista Völkischer Beobachter, um estudo a respeito dos documentos históricos relativos à viagem de Diderick Pining, em 1472. Desde a tomada de poder dos nacionalsocialistas, em 1933, Blunck tornara-se assíduo colaborador dessa folha, nela publicando, até o fim da Guerra, numerosos artigos. (Hans Friedrich Blunck, "Geschichtliche Unterlagen der Fahrt Pinings nach Neufundland 1472", Völkischer Beobachter, 7 de março de 1935)

A releitura desse artigo permite não apenas que se reconstrua o tipo de preocupações de Blunck à época do seu encontro em Lisboa. A consideração da sua inserção no contexto político da época possibilita aguçar a sensibilidade para um significado político-cultural de questões que, numa primeira aproximação, não teriam maior atualidade.

Questões de julgamento da História e mudança de concepções historiográficas

Blunck inicia o seu artigo salientando que não se avaliava adequadamente a profundidade da transformação interna que a Alemanha passava e iria passar, consciente e inconscientemente, no julgamento da História e da Pré-História.

Os alemães tinham por natureza desconfiança quanto a exagêros e a suposições levianas a respeito da participação alemã em grandes ocorrências da história do mundo. Tendiam, segundo êle, a examinar rigorosamente concepções laudatórias do próprio papel que exerceram. Essa desconfiança teria sido geral quando se tomou conhecimento da tese de Sofus Larsen, diretor da Biblioteca da Universidade de Kopenhagen, que não teria sido Colombo, mas sim portugueses e teuto-dinamarqueses que haviam descoberto a América do Norte.

O próprio Blunck, ao ler as primeiras notícias publicadas em jornais a respeito da obra de Larsen, julgou tratar-se de fantasia. Somente o contato mais cuidadoso com o quase que desconhecido aventureiro alemão Diderik Pining despertou-lhe o interesse e levou-o a um exame mais cuidadoso da tese.

Uma experiência pessoal contribuiu para que se ocupasse mais de perto com o assunto. Preparando-se para escrever um romance sobre a história do rei Geiserich, estudara obras mais antigas, dos anos 40 do século XIX. Essas publicações, apesar de terem sido elaboradas com grande cuidado científico, estavam impregnadas de ressentimentos contra os bárbaros alemães.  Demoravam-se tanto na descrição da selvageria desses "povos rudes e sem cultura" que o leitor era levado a considerar seriamente a questão se os alemães não precisariam libertar-se de tal atitude problemática perante a sua própria história. Essa auto-depreciação histórica deveria ser imputada á ciência de meados do século XIX.

Dessa sentida necessidade de superação de visões auto-depreciativas, Blunck tirava consequências teóricas: a pesquisa alemã incorrera no êrro de emprestar pêso demais às fontes históricas. Assim, segundo as fontes, Roma teria sido repetidamente destruida pelos bárbaros, fato tido como verdade inquestionável; entretanto, a pesquisa mais recente havia constatado que a cidade foi na verdade destruída no contexto das lutas do Império Romano do Oriente contra os godos. Dever-se-ia assim ter uma desconfiança no tratamento das fontes e compreender que existiu uma propaganda de denegrimento da Alemanha que teria atravessado os séculos. Ainda no presente os alemães assumiam essa perspectiva dos seus inimigos.

Segundo Blunck, dever-se-ia assim assumir uma distância quanto a documentos, considerando a situação a partir da situação global cultural e militar, a partir de um motor interno das decorrências históricas, de uma tensão interna e da "essência" das épocas.

Crítica à crítica de Larsen: a questão do relacionamento de dados

Blunck afirma, no seu estudo, que segundo o estado dos conhecimentos poder-se-ia dizer que os portugueses haviam estado necessariamente no continente americano - na Terra Nova/Terra do Labrador - uma vez que os mapas apresentavam esse nome, alcunha de Vaz Corte Real. Por esse feito, foi até mesmo recompensado com a Madeira. (Veja a respeito número sobre o Canadá desta revista).

Tratando dos argumentos dos opositores da teoria de Sofus Larsen, Blunck salienta que esses supunham que os filhos de Vaz apenas teriam navegado à Terra do Labrador vinte anos mais tarde, e que apenas a posteriori teriam anotado nos mapas a designação que eternizava a alcunha de seu pai.

Para Blunck, havia aqui um grande êrro na argumentação. Dos três filhos de Vaz, os dois mais velhos teriam saído de Portugal um após o outro para redescobrir a terra do seu pai, não retornando, porém. O terceiro, por ordem do rei, havia permanecido em Portugal. O mapa português da Terra do Labrador, conhecido na época, podia, assim, apenas basear-se na primeira viagem de Vaz, realizada ao redor de 1472. Refletia conhecimentos que os portugueses guardavam para si, procurando encobrir dos espanhóis o fato de terem descoberto terras ao Ocidente.

Os argumentos de pesquisadores alemães contra as teses de Sofus Larsen a respeito de uma viagem de Diderik Pining e de Vaz ao Ocidente não negavam que as duas expedições tivessem ocorrido, mas colocavam apenas em dúvida a existência de um vínculo entre ambas. Para esses oponentes, os dados existentes a respeito de ambas as expedições não deveriam ser relacionados entre si.

Argumento de Blunck: dependência dos Portugueses da navegação nórdica

É nesse contexto que Blunck procura aplicar a sua concepção historiográfica,+ desenvolvida a partir da visão alemã de que as fontes históricas haviam sido escritas por vencedores e que a pesquisa devia partir de outros critérios, considerando contextos, tensões, correntes e "essência" de épocas.

Assim, na argumentação destinada a provar o vínculo entre viagens de descobrimento nórdicas e portuguesas, Blunck pedia ao leitor para abandonar as formas convencionais de pesquisa histórica e seguí-lo em outro caminho na resposta às seguintes questões: quem tinha em mãos, ao redor de 1470, os caminhos marítimos dos mares do Norte? Quem tinha conhecimentos das antigas viagens à América do Norte, a dos empreendimentos dos Wikings dos séculos X e XI? Quem possuia um interesse político de realizar viagens ao Ocidente ou de impedi-las? Onde havia homens ousados que tentavam realizar tais viagens à terra ocidental por vontade de fazer descobrimentos?

Era seguro que, ao redor de 1472/73, o português Vaz Corte Real havia procurado encontrar uma passagem ao Norte como enviado do rei português. Blunck salientava não haver motivos para duvidar que Vaz Corte Real tivesse chegado à Terra do Labrador. Aqueles que o negassem deveriam provar o contrário e demonstrar que a grande recompensa que tivera - a Madeira - representara apenas um capricho do rei. Deviam provar que o mapa de Vaz Corte Real não era dele, mas sim de um outro autor.

Essa discussão, porém, devia ser deixada de lado. O mais importante, segundo a nova perspectiva historiográfica, seria a de perguntar onde estavam os primeiros navegadores que, ousados, se dirigiram ao Norte, quem eram aqueles que tinham interesse na navegação dos mares nórdicos e que possuiam a técnica para tal feito.

Alemães, dinamarqueses e islandeses: Diderik Pining

A figura principal de toda a argumentação de Larsen/Blunck é o alemão Diderik Pining, originário de Hildesheim, que tornou-se representante do rei dinamarquês nas águas nórdicas, sediado em Vardöhus. Proveniente de círculos de pirataria, ganhando grande experiência em trabalhos para a Hansa, tornara-se admiral do rei da Dinamarca e estabelecera segurança no Norte. Além do mais, atuara na reforma social, implantando novas idéias a respeito de auxílio aos trabalhadores e da obrigação ao trabalho.

Pining não fora apenas um reformador social, sendo por isso lembrando na designação de leis na Islândia. Tornara-se conhecido por ter criado um regulamento revolucionário que protegia os portos da ilha do comércio proibido de navios estrangeiros. Tornara-se, assim, apesar de seus vínculos com o rei dinamarquês, representante da independência islandesa perante a Dinamarca.

Para poder exercer tal papel, Pining precisou levar em conta conflitos com a Corte de Kopenhagen e, no caso de insucesso de seus planos, ter em mente possibilidades de fuga ou de expansão da sua área de ação em terras desconhecidas. Não apenas a antiga vontade de achar novas terras, também conjecturas militares teriam levado a Pining à exploração de terras para além do Norte e do Ocidente.

Para isso, Diderik Pining e a seu capitão Hans Patorist gozavam de uma situação altamente favorável. Na Islândia havia a tradição das antigas viagens do século XI, das viagens à Terra Nova, chamada então de Virginia. Blunck pergunta-se, assim, como é que um governador como Pining não podia ter tido conhecimento dessas tradições. Para êle, a resposta era clara: Pining era um dos homens que tinham em mãos as chaves para o Ocidente. Ele sabia das viagens anteriores do povo islandês dos relatos dos mais velhos. Ele sabia que, dentro de alguns dias de viagem para além da Groenlândia, existia uma terra que não era desconhecida dos seus antepassados. Ainda em meados do século XIII, na Noruega, um navio fora levado para a terra do Ocidente, denominada então de Winland. Quem é que poderia deixar de pensar na possibilidade de que um navio ou outro no século XV tivesse ido ao Ocidente? Quem poderia não considerar a possibilidade de que a política ousada e independente de Pining contra Kopenhagen não se baseava na certeza prática de uma terra ocidental?

Blunck afirma que era certo que Colombo estivera em países nórdicos, fosse a Frísia ou a Islândia. Teria obtido aqui informações a respeito da existência de terra ao Ocidente. Certamente não fizera a sua viagem ao acaso na forma que é descrita em compêndios escolares.

Assim, no Norte da Europa sabia-se das antigas viagens ao Ocidente e apenas o esgotamento causado pela eterna guerra civil entre o dinamarqueses, ingleses e baixo-alemães tinham levado a que esses povos se limitassem ao Velho Mundo.

1470 como data decisiva nos elos luso-nórdicos

Para Blunck, o ano de 1470 surge como data decisiva na justificativa dos elos entre as tradições nórdicas das navegações e Portugal. Nesse ano, as cortes de Portugal e Kopenhagen uniram-se por laços sanguíneos e de amizade. Portugal procurava o caminho marítimo para as Índia através de regiões polares do Norte. Portugal, porém, não poderia vencer as águas do Norte sem a ajuda de navegantes nórdicos. Como a Inglaterra não vinha em questão, o enviado do rei português, Vaz Corte Real, precisava informar-se a respeito do caminho e da navegação junto ao rei dinamarquês, e este, necessáriamente, passou o assunto ao governador da Islândia.

Se Corte Real chegou assim à Terra Nova, apenas poderia ter viajado em navios de Pining. Não haveria razão de duvidar da informação do prefeito de Kiel, segundo o qual Pinging, no ano de 1472 ou 73, partira em viagem por mares desconhecidos.

Relacionamento de contextos e a imagem de Pining

Blunck procurava demonstrar, assim, que ambos os contextos dos Descobrimentos necessariamente se relacionavam, o português e o alemão/nórdico. Seria impensável que os detentores de poder do Norte, que haviam aberto os mares, dando essa honra à Islândia - não à Hansa ou à Inglaterra - tivessem permitido que um navegador estrangeiro se dirigisse à terra ocidental sem ser acompanhado.

Blunck era da opinião que Pining seguira ordens e agira a pedido do rei, ajudando um enviado português, soberando de país amigo. Ele tinha conhecimento, dos islandeses, que precisava apenas viajar alguns dias para além da Groenlândia para alcançar terra. Essa êle não concedia a estrangeiros, apenas permitindo que esses para lá navegassem por mera cortesa de elos entre nações amigas.

Este era a imagem que Blunck transmite de Pining: um forte e ousado, um homem que tinha a herança dos antigos Vikings. Essa era imagem que havia sido traçada por Sofus Larsen, e este era um representante da ciência nórdica.

A ciência alemã, que, com razão exigia seriedade científica na justificação de novas hipóteses, e que havia primeiramente recebido negativamente as informações a respeito da viagem de Pining, precisava rever posições. O achado, em arquivos de Hildesheim, de um documento que comprovava a origem de Pining, representava um passo importante nessa nova visão da história.

Blunck justificava, assim, a importância da questão do descobrimento nórdico-português em folha destinada à formação nacionalsocialista no sentido "povístico" (völkisch). Somente uma outra perspectiva historiográfica, não aquela baseada exclusivamente em fontes, permitia traçar tal contexto. Exames mais pormenorizados e soluções para muitas questões ainda em aberto apenas podiam ser considerados em publicações especializadas, de cunho científico.

Razões políticas da relativação do significado de Colombo

O leitor atual surpreende-se pelo interesse de escritores alemães desses primeiros anos da época nacionalsocialista em relativar o significado de Colombo, dirigindo a sua atenção a pré-descobrimentos.(Veja outros artigos nesta edição). Para além de todas as razões históricas e de coerência de argumentos, deve-se compreender esse singular interesse de historiadores a partir do contexto político-cultural em que se inseriram. Os vínculos estreitos entre a Alemanha e Portugal eram em grande parte derivados da proximidade de sistemas políticos autoritários e de suas concepções. Ao contrário da Espanha, marcada ainda por movimentos revolucionários, a Alemanha nacionalsocialista não constatava oposições relevantes sob a ditadura portuguesa, uma situação constatada nada menos do que pelo próprio Adolf Hitler (Veja artigo nesta edição).

Essas circunstâncias políticas permitem que se compreenda uma singular harmonização de perspectivas históricas de cunho nacional dos dois países. Tensões e ressentimentos lusos para com a Espanha e que necessitariam ser compreendidos no seu contexto ibérico uniram-se aqui a tensões e ressentimentos alemães. A concatenação de contextos e a harmonização de enfoques portugueses àqueles do nacionalismo germânico tornam-se compreensíveis sob o pano de fundo de uma situação política ibérica que se modificaria com o golpe de 1936 na Espanha. Nessa época, porém, já estavam colocadas bases de edifícios historiográficos e visões de acontecimentos. Torna-se claro, aqui, a necessidade de exames do vir-a-ser histórico do ramo de estudos portugueses e brasileiros marcado por esses contextos político-culturais para o seu próprio desenvolvimento refletido.





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Indicação bibliográfica para citações e referências:

Bispo, A.A.."Hans Friedrich Blunck (1888-1961) e Oswald Theodor Barão von Hoyningen-Huene (1885-1963) - política da escrita nacionalsocialista nas suas relações com os estudos do mundo de língua portuguesa. Encontro internacional em Lisboa (1935) e homenagem no túmulo de Camões. Da questão de elos luso-nórdicos num pré-descobrimento da América". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 130/9 (2011:2). http://www.revista.brasil-europa.eu/130/Hans_Friedrich_Blunck.html


  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa: http://www.brasil-europa.eu


  2. Brasil-Europa é organização exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias e não considera nos seus textos dados divulgados por agências de notícias e emissoras. É, na sua orientação culturológica, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. Foi registrada em 1968, sendo continuamente atualizada. A A.B.E. insere-se em antiga tradição que remonta ao século XIX.


  3. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações, academias de letras ou outras páginas da Internet que passaram a empregar designações similares.





 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 130/9 (2011:2)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2010 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2723




Hans Friedrich Blunck (1888-1961) e Oswald Theodor Barão von Hoyningen-Huene (1885-1963)
política da escrita nacionalsocialista
nas suas relações com os estudos do mundo de língua portuguesa

Encontro internacional em Lisboa (1935) e homenagem no túmulo de Camões
Da questão de elos luso-nórdicos num pré-descobrimento da América


Ciclo de estudos Portugal-África-Alemanha-Brasil em Frankfurt a.M. e outras cidades pelos
10 anos do colóquio internacional "Dimensões européias de Portugal" da A.B.E.. Hildesheim

 

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Título: Placa de rememoração crítica da queima de livros em 1933, Frankfurt a.M.. Coluna: Imagens de Hildesheim, cidade relacionada com Pining.
Fotos A.A.Bispo, arquivo da A.B.E.