L.F.Kaltner: O guerreiro indígena na épica de Anchieta. Revista BRASIL-EUROPA 130/23, Bispo, A.A. (Ed.). Academia Brasil-Europa. Organização de estudos culturais em relações internacionais





Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

Prof. Dr. Leonardo Ferreira Kaltner,
Universidade Federal Fluminense


Introdução


O De Gestis Mendi de Saa é a primeira obra literária do Nouus Mundus, o primeiro livro escrito no continente americano a ser publicado. No ano de 1563, em Coimbra, por ordens de Francisco de Sá, filho de Mem de Sá, o tipógrafo-régio João Álvaro tipografou um pequeno volume em oitavo, com quarenta e nove folhas impressas em ambos os lados, que contam noventa e oito páginas, em cujo frontispício lê-se: Excellentissimo Singularisque Fidei Ac Pietatis Viro Mendo de Saa, Australis Seu Brasillicae Indiae Praesidi Praestantissimo. Este livro de 1563 contém o texto do poema epicum de José de Anchieta sobre os feitos do primeiro triênio de atuação do Governador-Geral Mem de Sá, no Brasil. Esta edição de 1563III, que é a principal fonte do poema épico de Anchieta sobre os feitos de Mem de Sá, tornou-se consagrada em sua reedição do século XX, por Pe. Armando Cardoso, SJ, com o título De Gestis Mendi de SaaIV.


Analisaremos alguns fatores estruturais para a análise e leitura do poema, a partir de uma descrição acerca do espaço-tempo da narrativa em articulação com os seus personagens. Ainda que seja um poema contextualizado em fatos históricos, com os quais dialoga, temos que a independência de seu universo ficcional em relação ao simples evento histórico surge na medida em que o poeta exercita na narrativa toda a sua estética de inspiração clássica renascentista, ao vincular a estética do poema à épica clássica, sobretudo à épica vergiliana. O fato de o poema ter sido todo ele escrito em um aprimorado latim caracteriza sua estética dentro de uma escola e tradição literária que é o Humanismo renascentista portuguêsV, do qual é um fruto indireto, ao inaugurar a prática literária no Brasil, a partir da apropriação da cultura clássica em uma perspectiva renascentista.


Ao mesmo tempo, o poema De Gestis Mendi de Saa, pela natureza de seu tema, acerca da fundação da civilização brasileira, torna-se o poema inaugural da Literatura Brasileira, em um momento incipiente, em que a Língua Portuguesa ainda não estava de todo arraigada à população do Brasil, inicialmente no século XVIVI. Neste aspecto, o fato de ter sido escrito o poema em latim renascentista antes contribui para a formação de uma identidade autóctone brasileira neolatina, do que faria caso fosse, por exemplo, a sua expressão em Língua Portuguesa.


Neste aspecto a obra de José de Anchieta reflete o multilinguismo inicial do Brasil quinhentista. Anchieta escreveu em quatro línguas, o latim, o espanhol, o português e o tupi, que seriam as línguas de maior expressão no Brasil do século XVI, sendo o latim língua de cultura no continente europeu, na época da RenascençaVII. Em latim, além do poema épico De Gestis Mendi de Saa, Anchieta escreveu o De Beata Virgine Dei Matre MariaVIII, uma série de poemas líricos eucarísticos, algumas cartas, dentre as quais se destaca a Epistola quamplurimarum rerum naturalium quae S. Vincentii (nunc S. Paulii) Prouinciam incolunt, impressa em 1799 por Diogo de ToledoIX.



Mem de Sá: herói épico do De Gestis Mendi de Saa


Mem de Sá, o terceiro Governador-Geral do Brasil colônia, era jurista por formação, oriundo da Universidade de Salamanca. Foi Governador-Geral do Brasil entre 1557 e 1572, tendo nascido em Coimbra e falecido na Bahia. Entretanto, fora nomeado para um mandato de três anos no Brasil, e o poema de Anchieta, que descreve apenas este mandato inicial de três anos, apresenta-se como uma espécie de homenagem e possível despedida ao Governador. O mandato duraria, efetivamente, de 1558 até 1560, todavia, o sucesso da missão de Mem de Sá fez com que seu mandato fosse prolongado por mais onze anos, totalizando assim quatorze anos como Governador-Geral do Brasil colônia. Apenas a morte o afastaria do cargo.


O De Gestis Mendi de Saa relata os principais eventos dos anos de 1558 até 1560, no mandato trienal de Mem deI Sá, que contava, provavelmente, quase sessenta anos de idade ao se empossar no cargo de Governador-Geral do Brasil colôniaXII. Devemos notar que o poema de Anchieta, ao se refererir apenas ao primeiro triênio do mandato de Mem de Sá, não apresenta feitos como a fundação da cidade de São Seabastião do Rio de Janeiro, e o combate contra os tamoios em 1567, que marcaram o período do Governo de Mem de SáXIII. Entretanto, os feitos iniciais do primeiro triênio formam uma unidade em si, que caracterizam bem a narrativa do poema, e não sabemos a que ponto este clima épico do poema favoreceu ou refletiu as atitudes tomadas por Mem de Sá no Brasil colôniaXI a partir do ano de 1563XIV.


Para melhor compreensão dos temas e dos fatos históricos que são narrados no poema, convém traçarmos, cronologicamente, o conteúdo narrativo do De Gestis Mendi de Saa, observando quais são os feitos eternizados em verso por Anchieta. O Pe. Armando Cardoso, SJ dividiu em quatro livros a principal edição moderna do De Gestis Mendi de SaaXV, que atingiu mais de três mil versos latinos, contando-se a Epistola Nuncupatoria em dísticos elegíacos, sendo os demais versos, da epopeia propriamente dita, todos versificados em hexâmetros dactílicos, seguindo o padrão estético vergilianoXVI.



Os fatos históricos do poema: perspectiva cronólogicaXVII


Analisemos, pois, cronologicamente, quais são os eventos narrados no De Gestis Mendi de Saa, tendo em vista que estes eventos, em sua quase totalidade, ocorreram entre os anos de 1558 e 1560, excluindo-se, obviamente, a narrativa da morte do Bispo D. Pedro Fernandes Sardinha (1497 – 1556), devorado, ritualmente, por índios Caetés, após a sucessão de  um naufrágioXVIII. A polêmica questão com o primeiro Bispo do Brasil aconteceu durante o Governo-Geral de Duarte da Costa, estando José de Anchieta já presente no Brasil, todavia, a expedição que partiria para procurar os culpados pela morte do Bispo, seria conduzida já pelo Governador Mem de Sá, então empossado no cargo a partir de 1558.


Os fatos históricos, que ocorrem no Espírito Santo, na Bahia e no Rio de Janeiro, narrados no poema são os seguintesXIX:


1)Chegada de Mem de Sá ao Brasil, na Bahia: ocorreu em Dezembro de 1557.

2)Combate de Fernão de SáXX, filho de Mem de Sá na capitania do Espírito Santo, às margens do rio Cricaré, contra os índios Tamoios, com a posterior morte de Fernão de Sá: primeiro quadrimestre de 1558.

3)Episódio com o chefe Cururupeba: Março de 1558, na Bahia.

4)Fundação e organização das primeiras aldeias da Bahia, de 1558 até 1559.

5)Combate contra indígenas Tupiniquins, em Ilhéus: Junho a Julho de 1559.

6)Combate do Paraguaçu, em busca dos assassinos de quatro pescadores mortos em Itaparica: de Agosto a Setembro de 1559.

7)Preparativos para guerra contra os índios Caetés, em busca dos assassinos do Bispo D. Fernandes Sardinha, ocorrida em 1556: Novembro de 1559. Todavia, esta guerra não se conclui, pela chegada da armada que Mem de Sá comandará rumo ao Rio de Janeiro para expugnar o Forte Coligny.

8)Combate no Rio de Janeiro contra as forças da França Antártica, comandadas por Bois-le-Comte, com a tomada de Villegagnon e do Forte Coligny: Março de 1560.


Todos os combates apresentados no De Gestis Mendi de Saa, coordenados e empreendidos por Mem de Sá, são narrados por Anchieta de acordo com a estética épica clássica, são hiperbolicamente tratados como os combates das obras clássicas, tendo por modelo a Ilias homérica e a Aeneis vergiliana, o que de certa forma era o ideal artístico da RenascençaXXI, sobretudo do Humanismo renascentista português. Caso tentemos compreender, contemporaneamente, o texto literário do De Gestis Mendi de Saa sob uma perspectiva exclusivamente histórica, ao analisar o poema como um documento que retrata incondicionalmente a realidade do Brasil colônia, não encontraremos parâmetros documentais que deem sustentação à realidade ficcional da grandiosidade dos combates apresentada no poemaXXII.


Uma leitura superficial da poesia de Anchieta, facilmente, poderia confundir o leitor contemporâneo, ao se chocarem os valores estéticos da poesia épica clássica, utilizados por Anchieta, com as atuais políticas públicas em relação às populações indígenas, por exemploXXIII. Ao mesmo tempo, o universo épico, repleto de combates, não condiz com a realidade colonial, esta que foi expressa, sobretudo, nas cartas e na literatura de viagem do século XVI. O De Gestis Mendi de Saa é um poema épico, e como tal, prende-se ao seu projeto estético ficcional, longe da necessidade de expressar propriamente a realidade colonial, por ser um registro literário.


Um dos maiores enganos que uma leitura superficial do poema anchietano pode causar ao leitor contemporâneo é confundir-se o indígena do século XVI com o indígena do século XXIXXIV, descontextualizando o poema. Por outro lado, o costume contemporâneo de descrever e tratar todos os grupamentos indígenas como se fossem um só grupamento humano é roubar-lhes também o seu direito à identidade individual e cultural, seu direito de existir enquanto etnia. Na colonização do Brasil, por exemplo, nem todos os povos indígenas foram aliados aos portugueses, nem todos aos franceses, e da mesma forma que a civilização europeia divide-se em populações e nações singulares, com línguas e costumes próprios, no Brasil, tanto do século XVI, quanto do século XXI, a civilização ameríndia dividia-se também em grupamentos distintos antagônicos e complementares.


A criação do índio latinizado no imaginário literário brasileiro se inicia no período do Romantismo, no século XIX, sobretudo a partir das obras de José de Alencar, inspiradas em Ferdinand Denis e em Jean Jacques RousseauXXV. Neste mesmo período, também se plasmou uma identidade literária genérica também latinizada para o africano, que, compulsoriamente, representado somente a partir de sua perspectiva como escravoXXVI, perdeu, desta forma, no imaginário literário brasileiro, o vínculo com sua origem, sua civilização e sua cultura. Somente a cultura popular resguardaria as singularidades das populações marginalizadas no Brasil, a partir de então.


Esta marginalização, no imaginário literário brasileiro do século XIX, do índio e do africano latinizados, tornou-se comum, e conformou-se como um padrão para algumas releituras acadêmicas feitas no século XX dos documentos históricos e literários da época da origem do BrasilXXVII. Todavia, para compreendermos o poema De Gestis Mendi de Saa, devemos antes de tudo pensar que este complexo texto literário se remete não só à realidade brasileira, do Brasil quinhentista, mas sobretudo à estética épica clássica homérica e vergiliana. Sem analisarmos o poema por esta ótica, vinculado à estética épica clássica, praticamente torna-se um poema incompreensível e até mesmo desagradável de ser lido e interpretado, através de nossos valores contemporâneos.


Vejamos com um exemplo do poema a descrição do guerreiro tamoio do Espírito Santo, com o qual combateu Fernão de Sá, às margens do rio Cricaré. Notemos que a descrição se estrutura em uma perspectiva estética clássica renascentista.



Texto latino: o guerreiro tamoio do Espírito Santo (versos 318 – 340)XXVIII


Huc omnis iuuenumXXIX legio, quibus acrior intus

Sanguinis ardor erat bellique cupido nefandi,

Contulit arma ferox, arcus celeresque sagittas          320

Lignaque picta auiumXXX pennis, quae barbara ferro

Spumiferique dolat peracuto dente politque

Dextra suis, gestatque feros crudelis in usus;

Et direpta ferarum immania tergora costis,

Durata ad solem, scuta horrida et inuiaXXXI telis.

Omnes uestitiXXXII patrio robusta colore

Membra: genas illi et frontem mediasque rubenti

Turparunt suras; hi nigro corpora sulco

Pingentes totos diuersisXXXIII nexibus artus,

Et pictos ueras imitantes corpore uestesXXXIV;          330

Vt quas artificis pulchra solet arte MineruaeXXXV

Pingere acu tunicas solertis dextera, uelXXXVI quae

Retia multiplici texti subtilia filo.

Pectora centum alii uariarum ac terga uolucrumXXXVII

Nudarunt pinnis, quas infecere colore

Diuerso, aptantes uiscoXXXVIII lita corpora circum;

Plurima pendentes pexo redimicula crine;

Ornarunt alis auiumXXXIX capita ardua multi,

Atque alios aliosque habitus per nuda dedere

Membra feri, horribiles uisu, uultuqueXL minaces.          340



Tradução


  1. Aqui toda legião dos jovens, aos quais era mais acre, em seu interior,

  2. O ardor do sangue e a paixão da guerra nefanda,

  3. Compartilhou feroz as armas, arcos e flechas velozes          320

  4. E lanças ornadas com penas de aves, que a destreza

  5. Bárbara costuma confeccionar com ferro faiscante,

  6. E pole com um dente afiado de anta, e cruel fabrica para usos ferozes;

  7. Também couraças terríveis, retalhadas das costas de feras,

  8. Endurecidas ao sol, como escudos hórridos que bloqueiam até projéteis.

  9. Todos se vestiram em seus robustos membros com a cor de sua

  10. Nação, uns mancham tanto as bochechas e a fronte,

  11. Quanto o meio das canelas com cor rubra, outros os corpos com negro

  12. Sulco, pintando todas as articulações em diversos entrelaçamentos,

  13. Que até imitam pelo corpo pintado verdadeiras vestes, como          330

  14. As túnicas que o artífice costuma bordar pela bela arte

  15. Da solerte Minerva, com a habilidosa agulha, ou as redes

  16. Que tece, delgadas com múltiplos fios.

  17. Outros desnudaram de penas os peitos e os dorsos

  18. De várias centenas de aves, que tingem com coloração diversa,

  19. Fixando-as em volta dos corpos untados com visco;

  20. Muitos ornam as cabeças altivas com asas de aves,

  21. Pendendo muitíssimos laços em uma crina bem penteada;

  22. E aspectos ferozes deram por seus nus membros, a uns e outros,

  23. Horríveis de se ver, e ameaçantes pelo vulto.          340



Conclusão


O poema narra combates hiperbólicos contra violentos inimigos, quando contrariamente, por leitura das cartas, vemos que, na realidade, alguns destes combates envolveram apenas pequenos grupos soldados, escolhidos entre os homens mais fortes das vilas, como no episódio de Cururupeba, em que foram selcionados cerca de vinte soldados para ir à aldeia. No caso do combate com os Tupiniquins, houve uma aliança após a batalhaXLI. Por outro lado, o combate mais importante narrado no poema, o episódio do Rio de Janeiro, foi uma luta que durou apenas dois dias, envolvendo alguns poucos navios de guerra, navios que foram aguardados com muita ansiedade, em uma batalha em que os franceses fugiram ao serem sitiados e terem sua cisterna tomadaXLII. Os combates no século XVI não possuíam a mesma tecnologia da atualidade, as lutas eram praticamente corporais, com armas de curto alcance, por fim, o objetivo, tanto de indígenas e colonizadores, era o de capturar seus prisioneiros de guerra vivos, uns para os rituais de antropofagia, outros para a escravização de seus prisioneirosXLIII.


O mérito da descrição hiperbólica dos confrontos e combates narrados no De Gestis Mendi de Saa, devemos à capacidade artística de José de Anchieta, seu pleno domínio do latim e conhecimento profundo da épica clássica. Desta forma, o maior valor do poema é cultural, por demonstrar-nos que o Brasil colônia se originou de uma sólida base intercultural, e que a colonização do Brasil não foi uma empresa meramente econômica para a exploração metropolitana da coroa de Portugal. Ao contrário, a maior resultante da colonização do Brasil não foi o enriquecimento da côrte de sua metrópole, mas o desenvolvimento de uma civilização continental e autônomaXLIV, com a criação de uma elite local que efetivamente colonizaria o território, do litoral para o sertão, ao longo dos séculos seguintes.


A própria rivalidade interna entre diferentes etnias e civilizações europeias e indígenas, no século XVI, delimitou o rumo da colonização do Brasil, que surgiu em seus primórdios de uma matriz luso-tupi, de uma aliança calcada pela miscigenação no século XVI, que se opunha diretamente ao grupamento franco-tamoio da França Antártica, como é narrado no De Gestis Mendi de Saa. Os projetos civilizatórios de ocupação do território se desenvolvem plenamente ao longo do século XVII e XVIII, fatos que não ocupam mais a produção literária de José de Anchieta.



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I. Originalmente, comunicação apresentada, sob o título de As fontes do De Gestis Mendi de Saa: a edição de 1563,  na VII Jornada Nacional de Filologia, organizada pelo Círculo Fluminense de Estudos de Filologia e Linguística (Cifefil), em 4 abril de 2011, no Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense.

II. Cf. ANCHIETA, 1997, p. 9 e seguintes.

III. A edição de 1563 é a principal fonte do De Gestis Mendi de Saa, a fonte secundária do texto é o manuscrito de Algorta, provavelmente do século XVII, cf. ANCHIETA, 1970, p. 62 e seguintes. No ano de 1643, Simão de Vasconcelos encarregou-se da publicação das poesias novilatinas de José de Anchieta, mas não reeditou o De Gestis Mendi de Saa.

IV. O poema não possui um título definido por Anchieta. Entretanto, Simão de Vasconcelos propõe: De rebus gestis Mem de Sá, tendo sido consagrada a forma De Gestis Mendi de Saa por Armando Cardoso. O nome Mem é latinizado por Mendus, como nome de segunda declinação, conforme costume registrado no latim medieval. Cf. ANCHIETA, 1970, p. 7 e seguintes.

V. O Humanismo renascentista português foi um movimento cultural e espiritual que se iniciou com a chegada de Cataldo Parísio Sículo em 1485 a Portugal, se desenvolveu com a reforma da Universidade de Coimbra por D. João III e, por fim, sofreu uma descontinuidade em 1580, após o desastre de Alcácer-Quibir, com o recrudescimento da Inquisição, cedendo espaço à estética barroca. Cf. TANNUS, 2007, p. 13 e seguintes.

VI. A Língua Portuguesa só passa, efetivamente, a ser adotada na Literatura Brasileira, após o período de Independência, em 1822, com o surgimento do Romantismo. Todavia, diversos autores se valeram no Brasil da língua portuguesa a partir do século XVII, e mesmo Anchieta escreveu uma extensa lírica em português. Temos então, segundo o Prof. Gladstone de Mello (Cf. MELLO, 1967, p. 134): “Nos primeiros tempos, e até o século XVIII em alguns lugares, falou-se mais tupi que português, sendo esta a língua oficial, a das cidades maiores, a língua da administração ou do comércio, e o tupi a língua caseira, transmitida principalmente de mães a filhos, instrumento de comunicação do cotidiano”.

VII. Cf. MANACORDA, 2006, p. 168 e seguintes.

VIII. Cf. ANCHIETA, 1991.

IX. Cf. ANCHIETA, 1799, p. 1 e seguintes.

X. As datações sobre o nascimento de Mem de Sá ainda são hipotéticas, estima-se que nasceu após o ano de 1499. Sabemos que o poeta Francisco de Sá de Miranda, um de seus irmãos, nasceu em Coimbra a 27 de Outubro de 1495 (Cf. COSTA E SILVA, 1851, v. 2, p. 8).

XI. Cf. REBELLO, 1829, p. 144.

XII. Cf. ANCHIETA, 1970, p. 92 – 94, versos 164 – 177.

XIII. A batalha de 20 de Janeiro de 1567, para a efetiva ocupação do Rio de Janeiro, entre portugueses, auxiliados por Tupiniquins, e franceses, auxiliados por Tupinambás, que marcou a total desagregação da França Antártica, não chegou a ser relatada por Anchieta, cuja obra épica foi escrita entre 1560 e 1562, provavelmente. Para o apoio indígena à colonização portuguesa, cf. COUTINHO, 1828, p. 62.

XIV. Uma das principais questões que dizem respeito à Crítica Genética do poema é a indagação de sua motivação. A amizade e as afinidades entre o Pe. Manuel da Nóbrega e Mem de Sá, provavelmente, motivaram esta homenagem poética e literária ao Governador-Geral. Mem de Sá e o Pe. Manuel da Nóbrega possuíam muitas afinidades, ambos eram oriundos da Universidade de Salamanca, viveram anos em Coimbra e foram nomeados para cargos no Brasil (Cf. NÓBREGA, 1955, p. 12, para uma biografia resumida de Nóbrega). José de Anchieta teria sido incentivado a escrever o poema por intermédio de Nóbrega, utilizando nele todas as técnicas literárias que aprendeu no Real Colégio das Artes de Coimbra, para posterior publicação na Tipografia de Coimbra em 1563. Este vínculo com a tradição do Humanismo renascentista que se desenvolveu na Universidade de Coimbra no século XVI caracteriza o poema esteticamente.

XV. Cf. ANCHIETA, 1970, p. 36 e seguintes.

XVI. Publius Maro Vergilius, principal poeta épico da tradição latina, serviu de modelo para Anchieta. Para a estética do hexâmetro, ver: RAMSAY, 1859, p. 155.

XVII. Baseamos esta análise dos fatos a partir também da edição de Armando Cardoso, cf. ANCHIETA, 1970, p.31 e seguintes.

XVIII. Cf. NÓBREGA, 1955, 17 e seguintes, passim.

XIX. A estrutura da narrativa se orienta, segundo Armando Cardoso (Cf. ANCHIETA, 1970, p. 7 – 8), em dois planos de ação: primeiramente, a pacificação e cristianização do indígena da Bahia, que formaria as primeiras alianças com o português, com o estabelecimento das primeiras missões jesuíticas, e, em segundo lugar, o combate contra os franceses da França Antártica, instalados no Rio de Janeiro e em Cabo Frio. Todavia, poderíamos ressaltar que o processo de cristianização do indígena, antes seria um processo intercultural de latinização do que propriamente a cristianização, tendo em vista a dissonância entre o ideal jesuítico e as práticas da população, no Brasil do século XVI.

XX. Cf. RAMALHO, 1988, v. 3, p. 203 – 205. Francisco de Sá, filho de Mem de Sá, editou em Coimbra o De Gestis Mendi de Saa, por provável rivalidade com seu irmão Fernão de Sá, Francisco cortou todos os versos do poema escrito por Anchieta acerca do combate do irmão no Espírito Santo, combate este no qual Fernão de Sá perdera a vida. A edição de 1563 possui cerca de setecentos versos a menos do que a versão do manuscrito de Algorta. Toda a ação relativa a Fernão de Sá foi omitida na edição de 1563, acredita-se que a rivalidade entre os irmãos possa ter ocasionado o corte do poema.

XXI. Cf. MANACORDA, 2006, p. 175 e seguintes. As Humanae Litterae, a partir do século XV, influenciaram toda a educação humanística da época da Renascença, Vergílio tornou-se um dos principais autores lidos neste período histórico.

XXII. Cf. ANCHIETA, 1970, p. 44: “Exemplo típico é o da guerra do Ilhéus (vv. 1479 – 86), em que os inimigos foram tomados de surpresa, e a descrição do ataque daria a entender um morticínio enorme. A expressão de Mem de Sá, “matei todos os que quiseram resisitir”, reduz-se no testemunho de Nóbrega a “três ou quatro, porque os mais fugiram.”

XXIII. No Brasil atual, a questão indígena soma-se contemporaneamente à questão ambiental. Integrados à natureza autóctone, as reservas indígenas são, hodiernamente, a base da cultura indígena. O modus uiuendi da população descendente dos povos autóctones do Brasil é um exemplo de tomada de consciência para as necessidades mais recentes das regiões urbanas e rurais, que sofrem cada vez mais com as alterações climáticas da natureza. O uso sustentável dos recursos naturais e o atual pensamento ecológico só poderão se desenvolver no Brasil, no momento em que esta população, marginalizada no Brasil por séculos, conquistar o espaço definitivo para reafirmar a sua identidade. Segundo a FUNAI, estima-se, atualmente, no Brasil, que haja cerca de 460 mil índios, distribuídos em 225 sociedades, em sua maioria no estado do Amazonas, e cerca de 200 mil índios que não vivem em aldeias, ainda há grupos em isolamento, cf. FUNAI Povos Indígenas, 2011.

XIV. Descrever, culturalmente, o desenvolvimento da civilização brasileira requer o esforço de compreender que há uma distinção político-ideológica e cultural entre as várias fases do Brasil. Fases estas que se caracterizaram por momentos históricos diversos, de colônia à província, de 1500 até 1808, de Império independente à República, de 1822 até 1889, e de República à Democracia autônoma, de 1889 até 1989, efetivamente, permanecendo a Democracia republicana autônoma de 1989 até os dias atuais. O conceito Brasil, dos Regna Brasillia do poema de Anchieta, que veio a lume em 1563, até a atual República Federativa do Brasil da Constituição de 1989, percorreu séculos e se transformou, assim como a população que ocupou o território transfigurando-se intensamente, consolidando-o como uma unidade contemporânea nacional. Os Regna Brasillia de Anchieta já apresentavam os pressupostos de uma unidade civilizatória brasileira, todavia, não com os desdobramentos ideológicos da Democracia do século XXI, mas sim com os ideais da cultura clássica em uma perspectiva estética renascentista e cristã do século XVI, e sob esta ótica podemos interpretar o poema escrito e contextualizado no Brasil quinhentista.

XXV. Cf. CANDIDO, 2004, p. 18 e seguintes.

XXVI. Cf. CANDIDO, 2004, p. 67 e seguintes. A escravidão no Brasil, que, efetivamente, esteve em vigor do século XVI até 1888, foi a principal causa da origem da desigualdade social do Brasil contemporâneo. Esta instituição desumanizadora possuiu ao longo de quase quatro séculos uma estrutura social extremamente complexa, diversificando-se na sociedade, envolvendo diversos grupamentos humanos de um contexto transcontinental e multicultural: a África, na transladação de milhões de jovens, saídos de suas cidades, vilas e aldeias na condição de escravos. A investigação acerca da questão da escravidão no Brasil revela-nos, mais do que modelos de exploração econômica, uma das bases da formação intercultural do Brasil contemporâneo, e em certa parte como o conceito de Liberdade é interpretado na sociedade brasileira até os dias atuais. Notadamente, uma ausência de estudos das tradições afro-brasileiras e ameríndias no currículo da Educação Básica brasileira contemporânea impede uma maior reflexão da realidade e da origem transcultural identitária do Brasil por grande maioria da população. Isto, de certa forma, incita ao preconceito, em relação às matrizes culturais africanas e ameríndias, e a um distanciamento de grande parte da população do interesse pelo estudo e pela leitura, por não se identificar pela visão de mundo de Língua e Literatura proposta na escola e na educação básica, sobretudo no ensino médio. Há de se notar a necessidade de uma maior inserção de questões desta natureza para que o estudo de Língua Portuguesa, Cultura Brasileira e Literatura Brasileira se identifiquem de forma mais incisiva com o Brasil contemporâneo democrático, sobretudo na Escola Pública.

XXVII. A generalização do índio, até mesmo com a adoção irrestrita do termo índio para a população autóctone do Brasil e seus descendentes, é um dos costumes mais antigos, servindo mais o termo índio como uma categoria de exclusão do que como um referencial cultural. No século XX, os próprios descendentes das populações autóctones do Brasil adotaram o termo índio para si, termo este que remonta à Cultura Latina, expressando inicialmente a população da Índia, e que foi, posteriormente, adotado na Era das Navegações e dos Descobrimentos, durante os séculos XV e XVI. Esta generalização do índio latinizado condicionou a cultura autóctone do Brasil ao longo dos séculos a se padronizar, a se pausterizar. Em muitos casos, as representações desta população autóctone, adotadas atualmente, se orientam a partir desta perspectiva generalizada do índio latinizado, que encontramos literariamente, por exemplo, nos romances de José de Alencar, como em sua obra prima O Guarani de 1857, em que o herói indígena Peri, um índio Guarani latinizado, auxilia os portugueses contra os índios Aymoré. Cf. ALENCAR, 1992, p. 86 e seguintes.

XXVIII. Cf. ANCHIETA, 1970, p. 100, versos 318 – 340, o texto latino, utilizado no presente artigo, foi estabelecido na edição de 1970 do De Gestis Mendi de Saa, pelo Pe. Armando Cardoso, SJ, pelo fato de que esta passagem não se encontra na edição de 1563, somente no Manuscrito de Algorta. Algumas alterações didáticas de cunho ortográfico foram feitas ao longo do texto e citadas em notas de rodapé, para a padronização do texto, a partir de pressupostos da pronúncia recontituída do latim, pronúncia esta utilizada em nossos cursos de graduação no Brasil e baseada, sobretudo, na obra Fonética Histórica do Latim de Ernesto Faria, supracitada na Bibliografia.

XXIX. Na lição de Cardoso: iuvenum.

XXX. Na lição de Cardoso: avium.

XXXI. Na lição de Cardoso: inviam.

XXXII. Na lição de Cardoso: vestiti.

XXXIII. Na lição de Cardoso: diversis.

XXXIV. Na lição de Cardoso: veras ... vestes.

XXXV. Na lição de Cardoso: Ut ... Minervae.

XXXVI. Na lição de Cardoso: val. Houve um pequeno erro de digitação na edição de 1970.

XXXVII. Na lição de Cardoso: variarum ... volucrum.

XXXVIII. Na lição de Cardoso: visco.

XXXIX. Na lição de Cardoso: avium.

XL. Na lição de Cardoso: visu, vultuque.

XLI. Os Tupiniquins foram grandes aliados dos portugueses, cf. SOUZA, 1851, p. 68.

XLII. Cf. ANCHIETA, 1970, p. 206 – 209, versos 2604 – 2631.

XLIII. No século XVI, o pior combate que se travou foi no campo biótico. As doenças trazidas da Europa depauperaram a população indígena, assim como as doenças do Nouus Mundus atacariam os colonizadores não imunizados. Doenças como tuberculose e varíola dizimaram missões jesuíticas inteiras. Darcy Ribeiro cita a primeira epidemia de varíola no Recôncavo da Bahia em uma missão jesuítica, epidemia esta que vitimou uma missão de cerca de 40 mil índios, dos quais restaram apenas 3 mil totalmente debilitados (Cf. RIBEIRO, 2002, p. 52). Por outro lado a sífilis, com o incremento da miscigenação, se alastrava na população indígena, este tópico foi profundamente analisado por Gilberto Freyre na obra Casa Grande e Senzala. Já a malária foi uma das doenças que surpreendeu os colonizadores, atacando, sobretudo, os sertanistas no século XVII.

XLIV. Cf. RIBEIRO, 2002, p. 19 e seguintes. Um dos fatos que demonstra a autonomia do Brasil colônia é a União Ibérica em 1580, com o falecimento do Cardeal D. Henrique e o advento de Felipe II. Ainda que a metrópole em questão tenha mudado, a colonização do Brasil manteve-se estável, como se não fosse dependente do contexto ultramarino. A maior mudança deste período diz repeito ao comércio com a Holanda, então em guerra com a Espanha, em um momento em que a economia açucareira se desenvolvia na Capitania de Pernambuco com capitais holandeses. Este contexto redundaria na viagem do humanista Maurício de Nassau para a ocupação de Pernambuco, no século XVII. Cf. FAUSTO, 2006, p. 28.


Ferreira Kaltner, Leonardo. "O guerreiro indígena na épica de Anchieta".Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 130/23 (2011:2). http://www.revista.brasil-europa.eu/130/Epica_de_Anchieta.html

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 130/23 (2011:2)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

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Doc. N° 2739


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O guerreiro indígena na épica de AnchietaI

 

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