Egmont Zechlin: Descobrimentos e debate historiográfico alemão. Revista BRASIL-EUROPA 130/6, Bispo, A.A. (Ed.). Academia Brasil-Europa. Organização de estudos culturais em relações internacionais





Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

Os estudos concernentes às relações Portugal-África, Portugal-Alemanha e Brasil-Alemanha necessitam ser acompanhados por exames da própria história da pesquisa. Como a Academia Brasil-Europa vêem salientando nos seus trabalhos, as novas condições de aproximação entre os países europeus exigem a procura de perspectivas mais amplas que superem delimitações de enfoques nacionais.


Esse intento não leva apenas ao descobrimento ou a uma maior consideração de autores de países não-lusófonos que se ocuparam com questões relativas aos Descobrimentos e à história colonial. Exige que esses próprios autores sejam analisados a partir de seus pressupostos culturais e político-culturais e em função de perspectivas determinadas pelos seus contextos.


Zechlin e o debate histórico na Alemanha: "controvérsia Fischer"


O nome do historiador alemão e professor universitário Egmont Zechlin, embora hoje relativamente pouco presente no âmbito dos estudos brasileiros, é lembrado em círculos mais amplos de leitores na Alemanha sobretudo no contexto de uma polêmica referente à interpretação das causas e do papel da Alemanha na Primeira Guerra Mundial.


Trata-se da assim-chamada "Controvérsia Fischer", designada segundo o historiador de Hamburgo Fritz Fischer (1908-1999). Esse historiador, em 1961, com um livro sobre os objetivos políticos de Guerra do antigo Império Alemão, desencadeou uma polêmica que marcou o debate historiográfico da Alemanha Ocidental do período posterior à Guerra. (Griff nach der Weltmacht: Die Kriegszielpoltik des kaiserlichen Deutschland 1914-1918, Düsseldorf: Droste 1961).


A compreensão dessa discussão é dificultada pela mudança de orientação político-cultural que Fritz Fischer parece ter vivenciado. No seu passado, constata-se uma proximidade ao nacionalsocialismo. Estudou com professores de tendências nacionalsocialistas, esteve ao lado dos "Cristãos Alemães" e do movimento de criação de uma "Igreja do Reich" sobre bases "povistas" ("völkisch"); fêz a sua carreira universitária sob o regime, sendo nomeado a professor extraordinário em Hamburgo em 1942. Pronunciou até mesmo conferências sobre assuntos conformes com as concepções políticas da época, tratando, entre outros, de questões como a da "intromissão do judaísmo na cultura e na política". Entretanto, após a Guerra, tomou um direcionamento distinto, sendo antes, em geral, posicionado entre pensadores de tendências do liberalismo de esquerda.


O seu livro contribuiu para a definição de duas posições contrárias na apreciação do papel desempenhado pela Alemanha - e sua culpa - na eclosão da Primeira Guerra. Para êle, intuitos de alcance de poder mundial de cunho imperialista do antigo Império Alemão teriam levado a uma situação na qual toda a guerra localizada que houvesse na Europa traria o perigo em si de uma eclosão bélica geral. À medida que apoiou a guerra entre a Áustria e a Sérbia, assumiu o risco da entrada na guerra da França e da Rússia, cabendo, assim, à Alemanha, grande parte da responsabilidade pela deflagração da Guerra.


Os oponentes a essa interpretação das decorrências históricas defendiam a opinião de que o Império Alemão agiu a partir de elos de lealdade assumidos e de uma situação de defesa, não podendo ser a êle dado o principal pêso na questão da culpa pela hecatombe. A atenção devia ser aqui dirigida a situações internacionais de poder.


Entre esses opositores de Fischer encontrava-se sobretudo Egmont Zechlin, mas também outros renomados historiadores. Esses, antes conservadores, viam a época monárquica sobretudo positivamente, acentuando a injustiça que foi o Tratado de Versailles e as reparações exigidas da Alemanha. Essa injustiça teria sido uma das razões do incremento e da tomada de poder do Nacionalsocialismo.


Esse debate teve atualidade política em função da importância da questão da recuperação de um estado nacional alemão em país então ainda dividido em consequência à Segunda Guerra Mundial. A posição de tendência liberal de esquerda ou de esquerda liberal, salientando a culpa da Alemanha na Primeira Guerra, apontava os perigos de uma sobrevivência de atitudes mentais, de sentimentos e hábitos próprios de um estado autoritário.


Esse debate assumiu uma dimensão téorico-metodológica de importância para a historiografia alemã. Um desses pontos dizia respeito à questão se pesquisa da política alemã anterior à Primeira Guerra deveria ser interpretada sob a perspectiva da ação de determinados vultos ou daquela do Estado Nacional que, na época do Imperialismo, surgia como um Todo para o Exterior, ainda que, internamente, apresentava deficiências estruturais de coesão.


Zechlin, como um dos principais opositores de Fischer, salientou as estruturas e mecanismos político-culturais globais que explicam fatos históricos, suas causas e consequências.


Sem poder-se aqui entrar em exame mais aprofundado dessa discussão, cumpre apenas salientar o papel singular que ela adquire para os estudos relativos ao mundo de língua portuguesa, uma vez que Zechlin foi especialista em assuntos relativos aos Descobrimentos e às viagens marítimas, tendo estado essa área de estudos necessariamente vinculada às suas concepções e visões interpretativas de processos históricos.


Zechlin como especialista em viagens marítimas e História Colonial


Zechlin, de família de pastores protestantes, e tendo servido na Primeira Guerra, atuando também como correspondente de Guerra, apresenta uma história de vida que parece explicar as suas interpretações e a veemência com que as defendeu.


A sua inserção na história do pensamento nacional e conservador alemão manifesta-se no seu particular interesse por questões relacionadas com a fundação do Império Alemão, em 1871, e com o Otto von Bismarck (1815-1898). Após os seus estudos de História, em Berlim, a partir de 1919, doutorou-se em Heidelberg, em 1922, com um trabalho sobre "A posição de Bismarck relativamente ao Parlamentarismo à fundação da Liga Norte-alemã". No seu trabalho de agregação universitária, ocupou-se com "os planos de golpe de estado de Bismarck e Guilherme II" em 1890/1894, assim com a política exterior e colonial do Império alemão. Publicou artigos de divulgação sobre Bismarck e sua época (Egmont Zechlingn, "Bismarck-der Gegenrevolutionär", Velhagen & Klasings Monatshefte 46/7, 1932,43-44).


A sensibilidade despertada pelo debate historiográfico alemão dos anos 60 para a necessidade de um exame dos pressupostos culturais do pensamento e da visão histórica de Zechlin suscita, assim,  releituras de seus textos concernentes à história das viagens marítimas. Não se pode esquecer que Zechlin foi um dos principais representantes desse ramo dos estudos históricos, sendo até mesmo considerado por alguns como o fundador da área de estudos na sua acepção ampla, ou seja, a partir da história das viagens desde a Antiguidade e das concepções do mundo a ela relacionadas.


De pesquisador da política exterior e colonial do Império alemão, Zechlin passou a especializar-se em questões concernentes às relações da Europa com o mundo não-europeu.


História das relações entre os povos a partir de visão global


As experiências adquiridas por Zechlin durante visitas aos Estados Unidos e à Ásia, com bolsa Rockefeller, em 1931 e 1932, acentuaram a sua convicção de que a história ampla das relações entre os povos deveria superar perspectivações convencionais, marcadas por visões nacionais de países da Europa, devendo ser conduzida segundo uma visão global.


Essa concepção que surge como singularmente atual de Zechlin parece consistuir à primeira vista um paradoxal contraste com aquela do seu posicionamento relativo a questões da história do Império Alemão e apenas um exame mais diferenciado permite que se compreenda a coerência do seu pensamento.


Surge à primeira vista paradoxal uma compreensão por tendências nacionais, até mesmo um entendimento de anelos expansionistas e, ao mesmo tempo, a consciência da necessidade de se considerar os outros povos não somente como objetos da expansão européia, mas também a partir "de sua vida própria".


Para os atuais estudos culturais em contextos globais não é, assim, sem significado a relevância que o exame diferenciado dessas concepções nacionais e, ao mesmo tempo de estruturas e processos globais assume para a condução refletida de estudos portugueses e brasileiros - e aqueles relativos à Portugal-África.


Significado de Zechln à época da institucionalização dos estudos portugueses e brasileiros


Esse exame torna-se necessário, uma vez que Zechlin desempenhou papel relevante em época de institucionalização dos estudos portugueses e brasileiros, de interesse pelas relações Portugal/África e de recrudescimento de interesses por questões coloniais na Alemanha e em Portugal.


Após atividades docentes na Universidade de Marburg, em 1934, atuou em Hamburg, a partir de 1936, e mesmo em Lisboa, em 1937. Em 1939, foi nomeado nada menos do que a catedrático de História Colonial e do Ultramar no Instituto de Ciências do Exterior da Universidade de Berlim. Dirigiu um grupo de especialistas em História Colonial no Departamento de Ciências Coloniais do Conselho de Pesquisa Nacionalsocialista. 


Após a Guerra, lecionou em Hamburgo, colaborando na reestruturação do Seminário de História e na fundação do Instituto Hans Bredow para Rádio e Televisão.


Ainda que o seu campo de estudos - a história ultramarina - permitisse que atuasse em contextos sem imediato sentido político, ocupou uma posição de exponência político-cultural em período nacionalsocialista e de Guerra. A pelo menos conformidade externa de Zechlin com o sistema, e o fato de ter realizado a sua carreira sob o regime levanta questões e suscita leituras particularmente diferenciadas de seus textos.


Ambos os contraentes da "controvérsia" dos anos sessenta, portanto, defensores de posições contrárias na interpretação das decorrências históricas que levaram à Primeira Guerra, tiveram posições e desempenharam papel de relevância no período nacionalsocialista. A diferença de opiniões e visões, portanto, deve ser considerada mais a fundo, o que exigiria análises mais cuidadosas da obra e do pensamento desses historiadores no passado, o que não é fácil de serem conduzida, uma vez que publicações mais antigas são de difícil alcance.


Zechlin e os 500 Anos da "Política Colonial Ultramarina" em 1934


Uma atenção especial merece o papel exercido por Zechlin ao salientar o ano de 1934 como marco na história marítima e dos Descobrimentos


O significado do ano de 1934 para a História da Política Colonial no seu todo, ou seja, na sua inserção na História da Humanidade, foi vista, por Zechlin, pelo fato de marcar os cinco séculos da passagem do Cabo Bojador por Gil Eanes. Zechlin emprestou, assim, um significado transcendente a esse fato, nele vendo uma importância crucial nas decorrências históricas em dimensões globais. Uma pesquisa que se oriente sobretudo por esse acontecimento e que continue a comemorar o nome de Gil Eanes não pode deixar, assim, de refletir sobre as concepções de Zechlin, as fontes portuguesas em que se baseou e sobre o significado que tal visão assumiu no período nacionalsocialista alemão. Essa problemática, que merece particular cuidado diferenciador e reflexões teóricas aprofundadas, foi levantada e discutida em encontros empreendidos nos anos 90 do século findo pela Academia Brasil-Europa com representantes do Centro de Estudos Gil Eanes da Comissão Municipal dos Descobrimentos de Lagos, Portugal.


Zechlin tratou do significado da viagem pelo "mar tenebroso" como início da Política Colonial ultramarina em artigo publicado pelo jornal Deutsche Allgemeine Zeitung ("Die Fahrt durch das 'Dunkelmeer: Der Beginn überseeischer Kolonialpolitik vor 500 Jahren'", Deutsche Allgemeine Zeitung, 1934). O tema de Zechlin, embora não tendo claras implicações políticas, inseria-se, com o seu subtítulo referente à Política Colonial no contexto de um renovado interesse por questões coloniais nessa fase política e político-cultural da Alemanha. Foi, assim, não apenas um texto de grande atualidade, tanto sob a perspectiva alemã, como da portuguesa, uma vez que se tratava da época da Primeira Exposição Colonial.


Assim, Zechlin iniciou o seu artigo salientando o significado do ano de 1934 para a história dos Descobrimentos. Lembrou, de início, que, em 1892, festejara-se os 400 anos da chegada de Colombo em Guanahani e que, em 1898, haviam sido celebrados os 400 anos da viagem de Vasco da Gama à Índia. O mundo devia lembrar-se, porém, que em 1934 dava-se a passagem dos 500 anos de um ato que havia sido decisivo para a época das Descobertas: a passagem, por Gil Eanes, do Cabo Bojador na costa noroeste da África, não longe das Ilhas Canárias. (op.cit.)


Visão dirigida a configurações e decorrências globais


Ainda que Zechlin mencione, de início, o vulto do Infante D. Henrique, o Navegador, que salienta ter sido o fundador do império marítimo português, a sua exposição dos fatos dirige a atenção aos mecanismos globais que justificaram as viagens anuais de navios para o conhecimento da costa ocidental da África a partir de 1418/21.


Esses mecanismos teriam sido justificados pelo fato de ter-se levado para o Norte da África da luta contra os mouros que havia dominado durante tanto tempo a península ibérica. Tratava-se, assim, na lógica dessa visão, de um problema que havia sido interno à Península Ibérica, o da expulsão de elementos populacionais estranhos para fora de seus limites, onde continuavam a ser combatidos, o que equivalia também a uma expansão. Nessa situação norte-africana, porém, os portugueses teriam corrigo o perigo de serem atacados pelos inféis por detrás, ou seja, por via marítima, através da costa norte-africana. Necessitavam, assim, explorar essas costas, sobretudo também com a expectativa de estabelecerem contato com um estado cristão que pudesse ser aliado nessa luta, cercando estrategicamente o inimigo. Desde a época das Cruzadas corria a notícia da existência do império cristão do "Preste João", que se imaginara inicialmente existir na Ásia Central e que, então, se supunha estar localizado na Abissínia. Esse país cristão não podia ser alcançado pelo Egito, por ali dominar o sultão mameluco.


Para o leitor atual, sabendo das decorrências histórias de poucos anos mais tarde na Alemanha, essa interpretação dos fatos adquire um significado inesperado, até agora pouco considerado e mesmo misterioso e assustador. Também a Alemanha foi marcada por uma luta interna contra uma parcela étnica da sua população considerada como estranha, os judeus, pela sua expulsão, e pelo prosseguimento do seu combate fora dos seus limites, no Leste. Essa aproximação parece indicar que a incompreensível veemência e o terror do holocausto deveriam não apenas ser analisados a partir da existência histórica de sentimentos anti-semitas, mas sim, talvez, de interações entre esses ressentimentos anti-judaicos com estruturas simbólicas inerentes à própria visão do mundo e do homem, de antiga procedência, não refletidas, representadas, na Península Ibérica, na luta entre cristãos e mouros. Os problemas de impróprias interpretações de configurações simbólicas de fundamentação bíblica na Alemanha já foram tratadas no exemplo da figura dos "Davidbündler" em número anterior desta revista (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/127/Grimma-Theodor-Uhlig.html).


Concepções simbólico-antropológicas relativas à África: homens com cabeça de animais


O próprio Zechlin salienta, no seu texto, o significado de concepções antropológicas para a história das Descobertas na África. Descreveu como os navios portugueses, que avançavam pela costa atlântica do Marrocos em direção sul, encontravam ali um limite natural: o cabo Nao.


O Cabo Nao, que Zechlin traduz para o alemão como "cabo Nein", salientando o "não", seria a grande marca negativa para o homem: ali, segundo a tradição mitológica, Hércules teria colocado uma coluna com os dizeres "Quia navigat ultra caput de Non, reveratur aut non". Essa advertência ao não retorno daqueles que para além dele navegassem teria, para Zechlin uma justificativa natural. Ali, no Cabo Bojador, encontrava-se sob as águas um banco de areia, com recifes e trechos rasos, vagas altas e correntezas perigosas. Ao mesmo tempo, vindo do Nordeste, soprava o vento do deserto, formando, no encontro com as correntes frias, uma atmosfera nebulosa que surgia como um muro intranspassável. Era o "Mar tenebroso" do qual os marinheiros contavam com pavor. Mais adiante, como ouviam dos árabes, que também evitavam essas costas, as massas aparentemente pedregosas das costas se soltavam de forma serpentuosa. O que o mar ou essas serpentes não devorassem, seria atacado e lançado ao mar a partir do Ocidente por homens com cabeças de animais. Assim, após o Cabo Bojador se encontraria o fim do mundo, ou, como se lia em mapas medievais, a cabeça do fim da África e do Ocidente (Caput finis Africae et terme Occidentalis).


Com esse panorama, expressivamente traçado, Zechlin dirige a atenção à continuidade de antigas concepções medievais à época dos Descobrimentos. Lembra que se supunha que, mais ao sul, onde o sol lançava os seus raios bem próximo ao mar, o calor era tão forte que nada crescia na areia escaldante, não havendo vegetação e muito menos gente, transformando-se o mar numa massa viscosa que impedia a navegação. Tentar ultrapassar essa zona significaria tentar a Deus. Ali se encontraria o inferno, e o mínimo que os europeus teriam que suportar seria tornarem-se pretos com sol.


Noções de uma divisão do mundo em três zonas e sua superação


Demonstrando a sua preocupação em procurar fundamentos de concepções na Antiguidade, Zechlin lembra a idéia da divisão do mundo em três zonas, procedente de remotas concepções filosóficas e histórico-geográficas. Mencionando Aristóteles, Ptolomeu e Estrabo, salienta que se imaginava uma tripartição do mundo: haveria uma zona central, habitável pelo homem, uma zona ártica uma outra tropical, respectivamente de excessivo frio e calor. Assim, para Zechlin, concepções filosóficas e filosófico-científicas do passado uniam-se a lendas e narrativas de marujos, assim como às suas constatações dos perigos reais da navegação pelo Cabo Bojador. Era compreensível, assim, que o povo português considerasse de início como inúteis e perigosos os empreendimentos do Infante.


Mesmo o holandês Gil Eanes, enviado em 1433, deixou-se primeiramente influenciar pelo terror que emanava do "mar escuro" e seus mistérios. Foi, por isso, admoestado pelo Infante: não deveria crer no que quatro marujos haviam narrado, que, vindo de Flandres ou de outros portos, não sabendo usar da bússola e dos mapas, apenas transmitiam lugares comuns e vagos. Para Zechlin, o Infante teria reconhecido aqui o cerne do problema. Apesar da orientação por mestres genoveses, os portugueses não ousavam ainda se lançar ao mar alto, preferindo manter-se ao longo da costa. Quem quisesse porém ultrapassar o Cabo, precisaria fazer um arco maior.


Assim, em nova tentativa, em 1434, Gil Eanes conseguiu passar o Cabo. Zechlin dá particular ênfase na descrição na surprêsa que foi o de se constatar que a terra após o Cabo mostrava-se totalmente diferente da que se esperara. Não se encontraram homens com cabeças de animais e, como prova de que ali também havia vegetação, Gil Eanes colheu algumas flores, similares às "rosas de Santa Maria" de Portugal.


Em 1445, no Cabo que se chamava de Verde, os navegantes depararam com os cimos das palmeiras tropicais e com a floresta africana. Constatou-se, assim, que, ao contrário do mundo sêco dos trópicos, tinha-se ali uma região que podia ser ainda mais frutífera do que a da zona média; ali viviam, em numerosas tribos, "mouros pretos" (ao contrário dos "mouros brancos", os bérberes e outros).


Para Zechlin, portanto, o grande mérito dos portugueses teria sido o da superação de uma visão tripartida do mundo e de todas as concepções com ela relacionadas.


Entretanto, o que o historiador alemão não considerou, é que essa divisão tripartida do mundo correspondia a uma visão tripartida do homem, de significado fundamental na linguagem simbólica e que permite que se compreenda a imagem figurada de "homens com cabeça de animais". O não reconhecimento desse relacionamento entre a visão tripartida do mundo com a da tripartição do homem pode ser até mesmo visto como de graves consequências, pois mantiveram-se com isso concepções simbólico-antropológicas independentemente de seus elos geográficos, o que dificultou o seu esclarecimento e manutenção de preconceitos éticos e noções obscurantistas e discriminatórias.


O sucesso como fator de mudança de opinião pública


Nesse seu artigo que salienta o significado dos 500 anos da passagem do Cabo Bojador, Zechlin lembra que também foi esse empreendimento que marcou uma mudança fundamental na opinião pública com relação à política expansionista.


O historiador descreve como, no prosseguimento das viagens, os portugueses, indo cada vez mais longe, alcançaram, a 50 milhas ao sul do Cabo, rastros de homens e camelos. Em 1436, 70 milhas mais à frente, chegaram a descer à terra e ocorreu um combate com nativos armados. Apenas em 1441, porém, conseguiu-se aprisionar alguns deles.


Esses fatos levaram, segundo Zechlin, a transformações culturais sensíveis em Portugal. Não apenas a mesa do Infante pôde enriquecer-se com iguarias africanas, mas deu-se início a um processo transformatório que determinou profundas mudanças na sociedade. Lagos, no ponto extremo a sudoeste de Portugal e, portanto, da Europa, transformou-se em mercado do globo.


Zechlin, assim, estabelece, sem mencionar expressamente, uma ponte entre o estado de espírito que teria reinado em Lagos com aquele da Alemanha no ano de publicação de seu artigo.


Salienta, sobretudo, que o sucesso dos feitos e a linguagem dos fatos levaram a uma mudança da opinião pública perante o Infante. Aquilo que havia sido considerado apenas como um desperdício de forças e de meios, de sacrifício de vidas, passou a ser visto positivamente, despertando entusiasmo e levando a uma união de forças e vontades.


O leitor atual não pode, aqui, deixar de resistir à tentativa de estabelecer um elo com a época de publicação desse artigo de Zechlin, quando a opinião pública da Alemanha mudara-se com o sucesso obtido pelo plebiscito do Sarre, causando uma atmosfera de triunfo pelo país. Surge, assim, ainda que absurda, uma aproximação entre o Infante e o "Führer", o que apenas permite aproximações à percepção do estado de espírito em que se processou a recepção do artigo de Zechlin.


O início do desenvolvimento: força de trabalho e o comércio de escravos


Para Zechlin, o desenvolvimento econômico real teria tido início com o emprêgo de mão de obra forçada, ou seja, com o comércio de escravos.


Referindo-se à primeira dessas caçadas humanas, de 1444, considera que esses empreendimentos serviam a objetivos econômicos, ainda que justificados pelos portugueses por referências a concepções superiores, em espírito de Cruzada.


Zechlin transmite aos leitores alemães, em poucas palavras, o procedimento usado nesse primeiro empreendimento escravocrata: os portugueses haviam maltratado um nativo até forçá-lo a dizer a localização do seu povoado; sob a invocação de Santiago Maior, São Jorge e Portugal, haviam atacado então a aldeia, aprisionando todos que não foram mortos; quando os navios entraram no porto de Lagos, esses 235 prisioneiros foram trazidos à terra em numerosos botes e conduzidos em triunfo; os melhores foram dados à Igreja; alguns recebeu o Papa; este, em troca, concedeu a Portugal o direito de Descobrimento para a África Ocidental; o Infante, que apareceu a cavalo ao atracadouro, escolheu para si um quinto, ou seja, 46 escravos.


Zechlin transcreve, baseando-se na fonte, o "espetáculo maravilhoso" que os portugueses vivenciaram: entre os escravizados haviam alguns quase brancos e de boa e bela aparência; outros eram menos brancos, pareciam mulatos; outros, eram pretos como etíopes e feios quanto a corpo e a atitudes.


Fazendo-se justiça ao historiador, deve-se salientar que essa passagem do seu texto não deixa de transmitir, de forma expressiva, não apenas críticas à Igreja, mas sim também as dimensões humanas trágicas da escravização de nativos. Nisso, Zechlin nada mais faz do que seguir expressões de compaixão já expressas pela própria fonte, por Rui de Pina. Assim, o historiador alemão lembra que o cronista, que escreveu para o louvor do Infante a mandado oficial, chegou mesmo a sentir pena dos aprisionados. Reproduz palavras do cronista quando descreveu que alguns dos escravizados mantinham as suas cabeças abaixadas, com os olhos molhados de lágrimas, outros soluçavam de forma a pedir misericórdia, olhando e gritando aos céus, como se pedissem auxílio ao Criador. Outros, batiam-se com ramos de palmas nas faces e se jogavam ao chão; alguns entoavam um canto de lamento monótoco, no qual, mesmo se os portugueses não entendessem as palavras, podiam perceber a dor das harmonias. Na distribuição, um filho, separado do seu velho pai, queria para êle retornar; em outro grupo, a mãe procurava manter os seus filhos nos braços, atirando-se ao chão, não dando atenção às machucaduras que assim fazia.


Zechlin lembra, porém, que não os sentimentos de compaixão, mas o motivo superior foi o decisivo. Os portugueses estavam convencidos que os escravizados logo esqueceriam a dor quando experimentassem as beatitudes do Cristianismo. A Providência Divina havia dado aos portugueses não apenas o lucro, mas sim a bela alegria que os fazia triunfar sobre todas as infelicidades dos escravizados, ou seja, aquela resultante de poderem contribuir à salvação de suas almas, que supunham ser tão negras quanto os seus corpos.


Também aqui o leitor atual sente-se tentado a estabelecer cotejos aparentemente descabidos mas que talvez possam auxiliar à compreensão do inacreditável sufocamento de sentimentos de compaixão na política de trabalho forçado à época nacionalsocialista em nome de um objetivo superior justificatório.


Não se pode esquecer que um historiador como Zechlin, que se ocupou de forma aprofundada com esse assunto e o tratou em pormenores nesse artigo de 1934, dirigiria, poucos anos mais tarde, como acima mencionado, o grupo de especialistas do Departamento de Ciências Coloniais do Conselho Nacionalsocialista de Pesquisas.





Todos os direitos relativos a texto e imagens reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do editor.

Indicação bibliográfica para citações e referências:

Bispo, A.A.. "Mar Tenebroso. Egmont Zechlin (1896-1992) e a história dos Descobrimentos nos seus elos com o debate historiográfico alemão: os 500 anos da Política Colonial. Relembrando comemorações sob o signo da política de intercâmbio luso-alemão em 1934/35 (II)". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 130/6 (2011:2). http://www.revista.brasil-europa.eu/130/Egmont_Zechlin.html


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Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 130/6 (2011:2)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

e institutos integrados

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ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2720




Mar Tenebroso

Egmont Zechlin (1896-1992)
e a história dos Descobrimentos nos seus elos com o debate historiográfico alemão:
os 500 anos da Política Colonial

Relembrando comemorações sob o signo da política de intercâmbio luso-alemão em 1934/35
(II)

Ciclo de estudos Portugal-África-Alemanha-Brasil em Frankfurt a.M. e outras cidades pelos
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