Buren em Angola, tradições européias e mudanças. Revista BRASIL-EUROPA 130/20, Bispo, A.A. (Ed.). Academia Brasil-Europa. Organização de estudos culturais em relações internacionais





Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

Como considerado em número anterior desta revista, o jornalismo, em particular o de reportagens culturais, desempenhou papel político-cultural no período dos govêrnos autoritários das décadas de trinta e quarenta, em particular na Alemanha nacionalsocialista.


As publicações em períodicos e livros da época, hoje de difícil acesso, uma vez que foram em grande parte excluídas de bibliotecas e arquivos, não possuem apenas interesse histórico-documental.


Para além de todas as informações que transmitem - e nesse sentido constituem de fato mananciais insuficientemente considerados - seria inadequado considerá-las apenas como fontes de dados históricos.


Escritas em alemão e para leitores alemães, serviram, ainda que nem sempre de forma explícita, à concepção político-cultural do sistema e à formação da mentalidade do povo. Seria, assim, prova de superficialidade não-crítica considerá-las sob enfoques de uma "memória da África". São, antes, documentos de uma história cultural em contextos globais, aqui em particular da perspectiva alemã.


Como exemplo, considera-se aqui a terceira parte do relato de viagens e aventuras em Angola publicado pelo escritor, viajante e editor alemão Willem Jaspert em revista de grande divulgação na Alemanha, em 1936 (Willem Jaspert, Abenteuer und Erlebnisse in Angola III."Burenkirche auf dem Hochveldt - Beim Großhäuptling der Kalnimbi", Durch alle Welt 14 (1936), 5-8).


Assim como as demais partes do texto, publicados em diferentes números da revista, também aqui tem-se um texto que não apresenta intenções políticas à primeira vista. Somente uma leitura mais aprofundada, considerado o seu todo e a sua inserção na política editorial do órgão em que foi publicado permite que se reconheça a sua função político-cultural e as concepções subjacentes à narração.


Assim como os artigos referentes a viagens de jornalistas e fotógrafos realizadas ao Brasil nos anos trinta, esse texto demonstra que também para a África valia os mesmos intuitos de prender a atenção dos leitores através de descrições de viagens por regiões pouco exploradas, inóspitas, comprovadoras da audácia, da tenacidade, da força de vontade e da decisão em atingir destinos do seu autor.


Os textos possuiam assim cunho instrutivo, de formação mental de seus leitores segundo uma concepção do homem marcado pela vontade e decisão. Esse predomínio da força de vontade e da tenacidade no alcande de uma visão como características do homem, pode ser entendido sob o pano de fundo da situação particular da Alemanha e, em geral, de concepções próprias de regimes totalitários de direita da época. (Veja outros artigos a respeito em número anterior desta revista)


Essa parte do relato de Willem Jaspert é dedicada sobretudo à descrição de suas aventuras junto a colonias de imigrantes de ascendência européia do sul e do sudoeste da África que se haviam assentado em Angola. Embora já tendo preparado o leitor na segunda parte do seu texto, quando já descrevera uma fazenda desses colonos, dedica-se agora mais pormenorizadamente à descrição do modo de vida e das expressões culturais desse contingente populacional.


Buren em Angola. Foto W. Jaspert
Sob esse aspecto, o relato de Jaspert adquire um interesse especial para a consideração dos Afrikaans em território então português, da imigração interna de africanos de ascendência portuguesa na África e das relações entre colonos europeus de diferentes proveniências e esses "africanos brancos".


Se no capítulo anterior o leitor fora levado a refletir sobre a manutenção ou não da "alemanidade" em grupos alemães, ou seja, do "Deutschtum", agora a atenção é dirigida aos brancos de diferentes proveniências moradores na África, ou seja, o olhar é voltado aos elos possibilitados por afinidades raciais.


Buren em Angola. Foto W. Jaspert
Parece ser significativo que seja neste capítulo que Jaspert passe a descrever, em contraste, a sua visita a um grupo de angolanos que mantinham ainda as suas tradições ancestrais, demonstrando o fim nostálgico de culturas que passavam a ser objeto de museus etnográficos.


Máscara Kaluimbi. Foto W. Jaspert
O homem tenaz e de vontade: viagem a lombo de burro através de Angola


O motivo da viagem em caravanas de burros ou mulas através de sertões não marcou apenas a literatura alemã referente ao Brasil e outros países americanos (Veja artigo em número anterior desta revista). Constituiu, como o artigo de Jaspert exemplifica, motivo para prender a atenção de leitores na descrição de difíceis viagens em outras regiões do mundo: o transporte lento, dependente da teimosia das mulas, repleto de imprevistos, mas que, apesar de tudo, levava o decidido viajante a seu destino. A mula surge, nesses textos, quase que como símbolo da deficiência dos sistemas de transporte e, muito mais, em sentido figurado, da lerdeza e falta de inteligência do veículo a ser necessariamente usado para levar o homem de decisão a atingir o seu fim.


Jaspert inicia o seu texto decrevendo a sua ida em lombo de burro a uma plantação situação em terrenos altos das montanhas de Chicuma. Oferece, em longo e minucioso texto, um quadro vivo das dificuldades do caminho entre o capim alto, sob o sol do meio-dia, em tórridos campos sem sombras de árvores. Nesse cenário, Jaspert insere vários episódios pitorescos e mesmo dramáticos, mostrando como procurou acostumar-se aos hábitos locais, descrevendo-os com o costumeiro estilo da época e que combinava jocosidade e bom humor com menções ao grotesco da realidade. Assim, relata como no vale chamado pelos nativos de musitu onguli - garganta de leões -  encontrou uma família de "cafres" ao redor de uma fogueira, de como ofereceram-lhe cerveja de milho fermentado, de como, devido à sua sêde, aceitou-a com prazer, tendo feito antes o comum gesto aos espíritos, atirando um pouco da bebida ao chão.


Kemnade.Foto A.A.Bispo©
O leitor pode aprender dessas descrições, sem dúvida, algo dos costumes nativos e das paisagens. A mensagem principal, porém, diz respeito à viagem do tenaz autor, às experiências por êle vividas, a forma com que via o mundo a seu redor.


Jaspert descreve como grupos de antílopes listrados atravessavam o seu caminho e demora-se em relatar as suas riscantes peripécias ao atravessar com o burro o largo rio Cuba, onde mesmo à época da sêca corria tanta água que esta alcançava a sela. Assim o atravessara, apesar dos avisos dos africanos, que o preveniram contra os crocodilos, e que preferiam, por isso, caminhar sobre uma ponte suspensa, feita de trepadeiras e galhos.


Assim como a paisagem ou os costumes, também as menções sobre o canto dos angolanos serviam para completar um quadro geral guiado por concepções relativas a qualidades do homem. Assim, Jaspert descreve como oito carregadores de uma portuguesa de posses, que se alternavam mutuamente no transporte da pesada rêde, se motivavam mutuamente em cantos, nos quais falavam da recompensa que obteriam pelo seu trabalho.


kawilue wanega hehehe motschi teke teke mongula ammalio okwatschiwua kakateke

Leve bem o branco, não o deixe cair, se o levarem bem, irão ganhar um pano.


Nesse contexto, Jaspert faz menções que não deixam de ter interesse sob a perspectiva músico-cultural. Lembra que as melodias eram transmitidas tradicionalmente, sendo apenas o texto criado de acordo com as circunstâncias. Assim, o intento de obtenção de uma retribuição podia ser adaptado a outras situações. Sugere, assim, ser antes uma característica moral dos africanos, uma expressão de intuito interesseiro.


Uma das descrições literariamente mais expressivas do relato de Jaspert diz respeito à travessia do vale do Bongo. O leitor toma conhecimento de como êle e seus acompanhantes andaram cerca de quatro horas pela floresta, deparando-se com animais selvagens pelo chão e pelos galhos, seguindo um riacho que podiam entrever através da vegetação, sempre pisando em chão escaldante. Jaspert consegue transmitir sensações atmosféricas; fala do silêncio com que os carregadores caminhavam, do burro que se arrastava cheio de cansaço e de como êle próprio, no seu lombo, caía em sonolência letárgica no calor angolano.


Para melhor transmitir a sensação atmosférica a seus leitores alemães, Jaspert comparou a saída da floresta do vale do Bongo com o sair de uma estufa em jardim botânico na Europa.



Carros de boi em Angola e os projetos viários. Estradas curvas e retas


Assim como o motivo do cavalgar em lombo de burro, um outro tema conhecido de relatos de viagens sobre o Brasil que surge no contexto de Angola é o do carro de bois. (Veja artigo em número anterior desta revista)


Jaspert passou a tratar desse tipo de transporte ao descrever a subida íngreme que o tirava do vale do Bongo, uma ladeira que nem mesmo um carro de bois normal podia vencer. Para fazê-lo, os colonos Buren que ali viviam não usavam carros puxados por 18 bois, mas sim uma carreta muito grande, puxada por não menos que 36 bois. Somente esses animais conseguiam vencer os caminhos enlameados em época de chuva.


As chuvas em Angola eram tão torrenciais que os caminhos seguiam em geral as cristas e as elevações, evitando os vales e as partes baixas, ao contrário da Europa. Entretanto, assim como os viajantes que relatavam suas aventuras pelo Brasil na época, também Jaspert lembra que a época do carro de boi já pertencia ao passado. O desenvolvimento da rêde rodoviária de Angola previa estradas nas quais esse tipo de transporte já não seria mais usado.


A transformação do sistema de transportes e de vias de comunicação - cujo interesse pode ser constatado dem textos referentes ao Brasil da época - adquire, porém, no relato de Jaspert, uma elucidação inesperada.


As estradas em Angola, até então, eram repletas de curvas; as futuras vias, ao contrário, apenas seriam implantadas segundo princípios racionais. A razão dessas curvas residia nas concepções dos nativos, sempre tementes de espíritos. Os angolanos tinham, segundo Jaspert, tanto mêdo dos espíritos que os perseguiam que nunca faziam caminhos retos. Nestes, os espíritos maus podiam alcançá-los mais facilmente. Em caminhos cheios de curvas, ao contrário, podiam fugir e esconder-se.


Essa explicação cultural da razão pela qual se abriam estradas cheias de curvas mesmo em regiões onde topograficamente se podiam abrir vias retas, apesar de todo o seu interesse, precisaria, porém, ser considerada com mais cuidado. Aos olhos alemães de Jaspert, era uma decorrência de superstições de africanos. Entretanto, considerando-se os muitos séculos de contatos culturais em Angola, torna-se questionável ver, nessa prática, uma expressão originalmente africana. A pesquisa cultural empírica tem revelado que em Portugal e no Brasil, em situações colonais de imigrantes europeus, sem a participação de africanos e seus descendentes, também houve, no passado, uma certa tendência à abertura de estradas em curvas.


"Buren", africanos brancos ou Afrikaans em Angola


Como acima mencionado, essa parte da publicação de Jaspert assume particular interesse pelo testemunho que oferece de assentamentos de colonos brancos provenientes do Sul e do Sudoeste da África em Angola.


A colonia visitada situava-se num planalto de ca. de 2000 metros de altitude. Já era noite quando Jaspert e seus acompanhantes alcançaram o acampamento, onde foram bem recebidos. Eram ca. de 30 Buren que se encontravam numa casa de teto baixo. Jaspert oferece uma expressiva descrição do tipo humano que ali encontrou e de seus hábitos. Tinham faces queimadas pelo sol e olhos cinzas brilhando como aço; falavam pouco, interrompendo o silêncio com cuspidas no chão. Uma ou outra africana de côr vinda do Sul - o autor designa como hotentote - servia constantemente chá quente ao grupo.


Esgotado pela viagem, Jaspert descreve como caiu em profundo sono, sendo despertado pelos uivos de uma hiena. Apenas então deu-se conta do ambiente com mais cuidado. À frente da casa dos africanos brancos havia um jardim de flores, onde cresciam cravos de diversas cores.


Para melhor expor a seus leitores o contraste da paisagem assim cultivada com a do sertão que acabava de atravessar comparou-a com a de um quadro de Van Gogh.


O mais característico do modo de viver desses colonos era o seu semi-nomadismo, uma vez que moravam em burgos de caravanas, similarmente aos ciganos europeus. Esses ajuntamentos eram formados por cerca. de 15 carroças. Os colonos dormiam sob os carros, reuniam-se ao redor de fogueiras, em grandes famílias, todas com muitas crianças e cães.



Manutenção de antigos costumes europeus em colonias de africanos brancos em Angola


De particular interesse para os estudos culturais coloniais são os dados de Jaspert relativos aos trajes e aos costumes festivo-religiosos dos "buren" na imigração angolana. Tendo vivenciado um dia de feriado no assentamento, constatou como todos trajavam as suas roupas de festa, as mulheres com toucas pretas de bandas largas, as crianças com toucas coloridas. Eram trajes que, para o visitante europeu, eram antiquíssimos, "anti-diluvianos", já há muito não usados na Europa.


Essas tradições rurais de provável procedência baixo-alemã ou dos Países Baixos dos colonos vindos de regiões do sul do continente contrastavam com aquelas de portugueses abastados de Angola. Esses ostentatavam a sua riqueza, demonstrando, no pêso do corpo e nas vestes, o fato de serem os donos da terra. Assim, Jaspert descreve como um desses ricos portugueses, casado com uma das africanas brancas, chegou à festa carregado numa cadeira por quatro angolanos, sob um enorme chapéu de sol, oferecendo um quadro grotesco.


Vindos do sul e do norte nas suas carroças, os "buren" se reuniam para a festa, formando uma comunidade de mais de 150 pessoas. A aldeia, pequena, com cerca de dez casas dispersas, possuia uma igreja branca, sem ornamentos, edificada numa colina. As casas eram todas iguais, com três salas, uma de moradia e duas servindo como dormitórios, com cozinha externa. O chão era de massa batida de esterco e areia, as cadeiras feitas com tiras de couro, as janelas sem vidros, apenas com tábuas, que permaneciam fechadas. Às paredes, viam-se chifres, retratos de família, dizeres bíblicos; os telhados eram de palha.


Práticas religiosas em colonias multiculturais brancas em Angola


O toque de sinos consistia em seis batidas num trilho de ferro pendurado numa árvore à frente da igreja. No culto, participaram colonos das mais diversas proveniências: "buren", alemães, portuguêses, belgas, inglêses, judeus, franceses e holandeses, além de mulatos e daqueles que demonstravam os mais variados cruzamentos. A igreja tinha a forma de uma basílica cristã- primitiva, orientada do Oriente ao Ocidente. No coro, havia uma mesa em forma de ferradura, onde se sentram o pregador e dois acompanhantes.


A cerimônia presenciada e descrita por Jaspert oferece um significativo registro da prática religiosa e musical nessas colonias brancas multiculturais de Angola.


O pregador, de pé, leu o salmo 28 e, do catecismo, o texto do domingo "Van de Dankbaarheed". Seguindo à entoação do cantor, a comunidade passou a cantar de forma estridente e alta. O repertório era o de salmos rimados, tal como Pieter Leonard van de Kasteele (1748-1810) havia escrito, em 1773. Jaspert salienta a longa duração do serviço cantado e das orações, felicitando-se por ter levado uma cadeira.


"Nos seus frutos deverão reconhecê-los" foi o texto que serviu de base para a pregação. À luz desse texto, o autor passa a descrever a fertilidade dos colonos e a pintar um quadro vivo da atmosfera reinante na igreja. Menciona como as mulheres amamentavam com orgulho os seus filhos, com os seios à mostra, como cães perambulavam pela nave, como o rico português obeso dormia na sua cadeira enquanto o pregador discorria sobre as maravilhas da Criação, o florescimento e a morte, o sear e o colher. O principal pensamento transmitido era o de uma determinada forma de vida não guiada pelo trabalho, mas pela fé: "Veja as lílias do campo...". Jaspert via aqui o fundamento do movo de viver dos colonos, que antes como caçadores e ambulantes, não como agricultores sedentários. Trabalhavam com as suas carroças em viagens de cargas, atividade necessária em região onde as ferrovias eram distantes e caras.


O assentamento dos colonos não possuia uma escola. Viam como suficiente que as crianças soubessem ler a Bíblia e escrever o seu nome. Encontrou uma espécie de cartilha usada no ensino, o primeiro caderno do Aanschowik Taalonderwijs voor de Schoolen en Zuid Afrika de De Bussy, mas havia sido trazida pelos "buren" do sul, no Sudoeste e no Transvaal, não sendo usada em Angola.


Após descrever um episódio de perseguição a um leão que havia matado um boi que pastava a apenas 900 metros de distância da comunidade, Jaspert relata a experiência de um tufão de vento que, em redemoinho amarelo escuro, carregando árvores e arbustos, cortou-lhes o caminho de retorno. Nesse contexto, descreve como os angolanos acreditavam que nesses redemoinhos se encontravam maus espíritos, e de como fugiam apavorados de maus ventos. Os "buren", ao contrário, apenas se lançavam ao chão, esperando que o redemoinho passasse.


Todo o dia feriado era marcado por práticas religiosas. Às duas horas da tarde havia culto para as crianças, quando eram interrogadas a respeito do conteúdo da pregação da manhã. Às três horas, havia um novo culto, desta vez assistido sobretudo por mulheres. Era de praxe que, aos domingos, fossem três vezes à igreja. Entretanto, como Jaspert salienta, essa intensa prática religiosa não era constante, resumindo-se ao grande dia de festa. Assim, explicava-se que, para essa ocasião, viessem colonos de longínquas regiões, reunindo-se toda a comunidade, mesmo que tivessem que esperar por vezes quatro semanas pela chegada do pregador.


Memória dos Afrikaans em Angola


Após três horas de culto, os colonos permaneceram à frente da igreja, trocando idéias, ocasião em que o autor pôde conhecer o primeiro "bur" vindo a Angola.  Era um ancião, de barbas longas, que chegara em outubro de 1880. Com boa memória, contava pormenores dos primeiros tempos, das grandes dificuldades e perdas na travessia do Transvaal através da Kalahari e dos poços do lago Ngami, assim como das suas aventuras nas florestas.


Os contos desse idoso soavam como lendas de antigos tempos, e, de quando em quando, uma pessoa da assistência aplaudia ou algum jovem dava uma expressão de admiração ou de inveja pelas peripécias vividas. Ainda pela hora do almoço ouviam-no embaixo dos grandes eucaliptos.


Segundo as suas recordações, os "buren" haviam sido convidados pelo governador português para mudarem-se para Angola. Confiando nessa autoridade e em pessoas de bom nome, 57 famílias emigraram então em 61 carros, com 840 bois, 2100  reses, 120 cavalos e muitos carneiros. Vieram a Humbe, de onde foram levados a Humpate.


Danças populares alemãs em Angola e sua revitalização na Alemanha: Wandervogel


Visitando o cemitério local, o viajante alemão surpreendeu-se em constatar os muitos nomes alemães em antigas lápides, o que testemunhava a forte presença alemã nos grupos de "buren" que haviam emigrado para Angola em fins do século XIX.


Um aspecto de particular interesse histórico-cultural do texto de Jaspert é aquele em que compara expressões culturais transmitidas pela tradição nesses longínquos assentamentos coloniais da África com aquelas que passavam a ser fomentadas na Alemanha da sua época.


Assim, descreveu como, à noite, a comunidade se reunia, permanecendo em conversas e tomando café de raíz de Mutunda até altas horas, cantando e dançando. Essas danças, muito antigas, eram aquelas que passavam a ser de novo dançadas na Alemanha no âmbito dos movimentos dos Wegscheide e Wandervogel.


Jaspert descreve o contraste que esses cantos e danças tradicionais européias criava com o ressoar dos tambores das aldeias africanas ao longe. Enquanto que essas danças camponesas alemãs na África representavam uma continuidade transmitida pela tradição, perpassadas por sentimentos de nostalgia e servindo à manutenção da identidade do grupo, diferenciado-o dos nativos, passavam a ser recuperadas na Alemanha em grupos que procuravam uma reforma da educação e do modo de vida, em geral marcados por uma maior proximidade à natureza e pelo fomento de sentimentos comunitários.


Em contraste: os Kaluimbi e a última máscara de sua cultura


Tendo vivenciado sobretudo o universo colonial de origem européia em Angola, as observações finais de Jaspert referem-se, em contraste, a uma visita que fêz a um dos últimos grupos angolanos que mantinham as suas tradições e a sua consciência étnica. Com o objetivo de visitar assim casa tipicamente nativa, Jaspert dirigiu-se a Samunjamba, chefe de Limbiland, conhecido como o principal guardião de antigas tradições.


A casa desse chefe situava-se numa das curvas do Cuanza, numa espécie de ilha. Para o viajante alemão, era um pedaço de paraíso, cercado por velhas árvores da floresta e samambaias, alcançável por caminhos tortuosos. O capim era da altura de um homem, pelo chão corriam lagartos azuis e serpentes, às vezes viam-se figuras de madeira exóticas como indicadores de caminhos e, de repente, aquele que adentrava via-se num terreiro circular, semi-escuro, como no coro de uma catedral. Raios de sol cortavam a alta copa das árvores, formando figuras estranhas no chão negro. Trepadeiras caiam como se fossem cortinas dos galhos, e nas alturas movimentavam-se centenas de macaquinhos.


No centro da praça, cercada por uma cerca baixa de madeira, encontrava-se uma pequena canoa ornamentada sobre dois garfos formados por galhos, dentro dela madeira aromática, emblema do povo de navegadores dos Kaluimbi.


Atravessando um corredor estreito, chegava-se à casa do chefe. Vagarosamente, este aproximou-se, lembrando na sua dignidade ao visitante alemão um senador romano, com larga toga, lavou a sua face e as suas mãos em um receptáculo de madeira que lhe foi trazido e cumprimentou-o severamente e triste.


Todos se sentaram silenciosamente nos bancos baixos de madeira vermelha, e, como em canto fúnebre, o chefe narrou a história do seu povo, do seu antigo florescimento e da sua riqueza, das lutas com outras tribos, da batalha cruenta em Cuanza contras as tropas portuguesas e do extermínio da sua tribo. Essa narrativa era salientada na sua gravidade pelo pesado silêncio da floresta.


Somente após esse preâmbulo é que o velho chefe dispôs-se a mostrar ao visitante estrangeiro o local onde conservava a sua última máscara cerimonial e onde realizava os seus ritos tradicionais.


Levantando uma cortina de trepadeiras, o ancião e os visitantes entraram por uma abertura, atravessaram um tronco de árvore sobre um rio pantanoso, depararando-se com uma grande figura de madeira já de contornos irreconhecíveis. No chão viam-se penas vermelhas e vasos tombados.


O visitante apalpava cuidadosamente a figura, quando, de repente, saindo da vegetação, surgiu uma pessoa mascarada, arrastando um saco, no rítmo de uma dança à qual as pessoas se movimentavam de forma quase que imóvel, como se estivessem vibrando interiormente.


A máscara da sociedade secreta foi apresentada, vermelha e com estranhas tatuagens e cabelos oleados, vestida com uma saia de palha trançada. Jasper descreve como sentiu um profundo respeito, como que ficou quase que hipnotizado pelo sentimento coletivo, vivenciando o ato como se dele participasse.


Quando o chefe afirmou ser essa a última máscara restante do antigo povo, Jaspert decidiu-se a adquiri-la a qualquer preço. Passaram a agir nesser sentido, cuidadosamente, não desprezando os sentimentos religiosos dos africanos, conhecendo, porém, o valor inestimável da máscara sob o aspecto museal etnológico. Deu-se início ao processo de troca, difícil, pois os europeus não tinham dinheiro. Também os nativos não a dariam por dinheiro. Por fim, em gesto de particular comunhão e amizade, o alemão tirou o seu casaco e deu-o ao chefe de presente. Perante esse ato de simpatia, o chefe dos Kaluimbi, após ter confabulado com os demais, entregou-lhe a máscara, demonstrando, na sua atitude, que que ofertava um objeto sagrado.


Em despedida, presenteou-lhe ainda uma vara mágica, que tinha, na cabeça, um receptáculo com contas, o que pareceu ao viajante ser similar a um brinquedo de crianças da Europa. Acompanhou-os juntamente com todos os da aldeia à margem do rio, onde pegaram a canoa para a outra margem. Toda a cena foi acompanhada pelos papagaios coloridos nas árvores e por um cão magro que constantemente cheirava as calças dos visitantes.


Um curandeiro colocou-lhe nas mãos algo frio: era uma pequena tartaruga, viva, o animal sagrado dos Kaluimbi.


Crítica subjacente a "zoológicos antropológicos" e concepções totalitárias


Apesar de toda a simpatia que emana do humor da escrita, que também aqui se guia por critérios estilístico-propagandísticos da época, percebem-se aqui concepções típicas do pensamento totalitário, nacionalsocialista e facista.


A assimilação desses grupos étnico-culturais na sociedade criada e posta em desenvolvimento pelos brancos, o fim de seu modo de vida e de suas tradições surgiam como nostálgicas mas inevitáveis. O observador guia-se, no fundo, por concepções que viam como sem sentido a manutenção de nichos culturais nativos, de "zoológicos antropológicos".


O jornalista utilizou-se, assim, de todos os subterfúgios para conquistar a simpatia dos angolanos, enternecer-lhes e roubar-lhes, assim, o último símbolo de sua tradição religioso-cultural.


Sinopse como ponto de partida para os trabalhos do ciclo de estudos "Memória da África?" realizado pela A.B.E.






Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.."Buren em Angola, tradições européias e mudanças culturais - a última máscara dos Kaluimbi. 'Memória da África?' - Significado e problemas  de fontes fotojornalísticas do passado totalitário nos estudos das relações Portugal-África IV. 75 anos de 'Aventuras e Experiências em Angola' de Willem Jaspert (1901-1941)." Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 130/20 (2011:2). http://www.revista.brasil-europa.eu/130/Buren_em_Angola.html


  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa: http://www.brasil-europa.eu


  2. Brasil-Europa é organização exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias e não considera nos seus textos dados divulgados por agências de notícias e emissoras. É, na sua orientação culturológica, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. Foi registrada em 1968, sendo continuamente atualizada. A A.B.E. insere-se em antiga tradição que remonta ao século XIX.


  3. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações, academias de letras ou outras páginas da Internet que passaram a empregar designações similares.




 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 130/20 (2011:2)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2010 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2734




Buren em Angola, tradições européias e mudanças culturais
a última máscara dos Kaluimbi

"Memória da África"?
Significado e problemas  de fontes fotojornalísticas do passado totalitário
nos estudos das relações Portugal-África IV

75 anos de "Aventuras e Experiências em Angola" de Willem Jaspert (1901-1941)

Ciclo de estudos luso-africano-teuto-brasileiros da A.B.E. na região Ennepe-Ruhr pelos 125 anos da elevação a cidade de Gevelsberg, local de nascimento de W. Jaspert. Kemnade



 

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