Alemães em Angola. Revista BRASIL-EUROPA 130/19, Bispo, A.A. (Ed.). Academia Brasil-Europa. Organização de estudos culturais em relações internacionais




Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 
Este texto deve ser compreendido à luz do complexo temático tratado no presente número desta revista e que diz respeito aos elos entre a economia e concepções político-culturais nos estudos do mundo de língua portuguesa. Para isso, são revistos alguns aspectos das relações entre o colonialismo e a propaganda em regimes autoritários do passado, em particular aquelas referentes à África portuguesa. (Veja Tema em Debate nesta edição)

Como exemplo do interesse pela África em publicações alemãs dos anos trinta, considera-se um texto do escritor, viajante e editor Willem Jaspert (1901-1941) a respeito de suas aventuras em Angola, publicado na revista de de ampla difusão Durch alle Welt, no ano dos Jogos Olímpicos de 1936. (Willem Jaspert, Abenteuer und Erlebnisse in Angola 2."Auf einer deutschen Farm", Durch alle Welt 13,1936, 5-8)

Essa reconsideração de um texto hoje esquecido é guiada pelo intuito de aguçar a sensibilidade para a percepção de concepções culturais, ainda que não explicitamente manifestas, em textos difundidos em períodos marcados pela propaganda política totalitária.

A segunda parte do relato de aventuras de Jaspert em Angola assume especial significado para os estudos relacionados com a colonização alemã nos seus aspectos históricos, político-culturais e relativos a processos de manutenção e transformação de identidades.

O texto de Jaspert sobre Angola pode e deve ser considerado ao lado daqueles referentes ao Brasil e a outros países com contingentes consideráveis de descendentes de alemães no continente americano. Essa visão transnacional possibilita que se reconheça não apenas similaridades e diferenças de situações das colonias alemãs nas várias partes do mundo, mas sim também a influência exercida por jornalistas viajantes como agentes de transmissão de concepções da Alemanha dos anos trinta em distantes regiões e, ao mesmo tempo, de difusão de conhecimentos a respeito desses alemães e seus descendentes na própria Alemanha.

Seria, assim, inadequado considerar o texto de Jaspert sobre Angola apenas como fonte de conhecimentos históricos a respeito da presença alemã na África, contribuindo a uma "memória da África" a ser resgatada sem levar em conta a sua inserção no contexto político-cultural da época em dimensões globais.

Também esse texto, assim como aqueles referentes ao Brasil e a outros países sul-americanos da época serviam a um intuito de conhecimento mútuo, de reaproximação, de reconscientização de elos para além de fronteiras e que se fundamentava em visões político-culturais e concepções raciais.

Imagens idílicas do Deutschtum colonial em Angola


Nessa parte do seu texto, Jaspert dedica-se a descrever uma visita que fêz a uma fazenda alemã denominada de Capungo, onde passou alguns dias. O seu objetivo, porém, era o de seguir para uma outra fazenda de alemães, a Calusipa, pertencente a uma prima sua. Esta, mais distante, constituia na verdade o objetivo de sua viagem a Angola. Pretendia ali viver algum tempo, trabalhando para conseguir meios para financiar a sua estadia.


O texto é marcado por essas duas fazendas, nas quais o autor fêz experiências totalmente diversas. A descrição positiva da vida em Capungo surge em contraste com aquela negativa de Calusipa, criando uma tensão que perpassa a narrativa. O leitor toma conhecimento, assim, que o colono alemão na África não era por toda a parte igual. Havia aqueles que mantinham a sua cultura e identidade, como os de Capungo, e aqueles que as perdiam. O texto serve, assim, ainda que subliminarmente, para demonstrar o significado da alemanidade (Deutschtum).


Jaspert inicia o seu texto com uma expressiva descrição da paisagem, da habitação e do modo de vida doméstico do seu proprietário e de sua família. Essa fazenda pertencia a um ex-coronel de tropa que havia atuado em antigo protetorado alemão. Era, assim, um homem do passado colonial da época do Império guilhermino, anterior a 1918. Era um duplamente emigrado, da Alemanha e da antiga colonia alemã. Era um imigrante e colono alemão em colonia portuguesa.


A descrição de Jaspert deixa entrever a manutenção conservadora de hábitos dessa época já então remota de antes da Guerra. Com esse seu texto, o autor vinha de encontro a interesses revisionistas na Alemanha, pois trazia à mente destinos daqueles que haviam servido e lutado nas antigas colonias, de veteranos patriotas, mantenedores da cultura alemã em distantes regiões.


A descrição de Jaspert cria um quadro marcado por romantismo colonial. As casas da fazenda situavam-se num vale rodeado de altas montanhas. Assim encravado na paisagem, a família alemã criara no local um nicho idílico alemão em plena África. A casa, no fundo de uma alameda de eucaliptos, com varanda à frente, era rodeada por um jardim onde cresciam flores européias, entre elas rosas, dálias, mal-me-queres e lílias, florescendo entre palmeiras e plantas tropicais.  À entrada, o visitante era saudado com dizeres em alemão de boas vidas: "Willkommen im Krug zum grünen Kranze".


Hattingen. Foto A.A.Bispo©
Esses alemães mantinham hábitos de hospitalidade alemã dos antigos tempos. Essa hospitalidade manifestava-se numa mistura de cordialidade, discreção reservada e austera frugalidade. Jaspert descreve como foi recebido ao portão do jardim pelo proprietário, como a dona da casa, descendo as escadas, deu-lhe a mão, como viu a mesa já posta, na varanda, com doces e biscoitos. O serviçal africano, um cozinheiro de nome Katimba, havia sido treinado segundo rígidos preceitos de educação doméstica. Vestindo um terno branco e servindo com habilidade e porte distinto, lembrava a Jaspert um garçon de vagão-restaurante de estrada de ferro alemã. Apesar de toda essa distinção, os cigarros eram de fumo enrolado à mão.


A simplicidade severa do modo de vida impregnava todo o ambiente interno da casa. Esta, baixa mas de teto alto, possuia apenas duas salas, a de estar e o dormitório. No canto havia uma lareira - em Angola! - acima, segundo tradição européia, retratos e louças. Tudo havia sido feito à mão, todo o trabalho de carpintaria, mesa, cadeiras, poltrona, sofá, estante de livros, molduras de janelas e portas. Com isso, o autor sugeria a diligência, a força e a vontade de trabalho alemãs. Importada da Alemanha era apenas a máquina de costura. Os materiais eram africanos, a forma, porém, alemã.


O visitante percebia estar na África apenas pelos chifres e peles que ornamentavam as paredes. Eram dispostos como em qualquer sala de caça na Europa, somente que aqui não se viam chifres de cervos e cabeças de porcos selvagens, mas sim couros de antílopes, de macacos e chifres de animais de grandes dimensões.


Aqui, Jaspert passou a descrever a função desses chifres no relacionamento dos europeus que viviam na região. Ainda mais do que em círculos de caçadores na Alemanha, as relações giravam em torno de façanhas de caça. Os homens apenas cuidavam de demonstrar feitos e gabar as suas audácias à custa dos animais mortos. O tamanho dos chifres nas paredes transformava-se em indicativo da coragem, da destreza e da ousadia daquele que tinha matado o animal. Essa função social manifestava-se em anedotas. Jasper observou que, em encontros de homens, a conversa girava sempre ao redor do mesmo tema: "mas que chifres grandes o senhor tem... se tivessem mais duas polegadas seriam tão grandes quanto os meus..."


Hattingen. Foto A.A.Bispo©
A casa de hóspedes localizava-se de forma idílica numa curva do córrego, onde se tomava banho. A água era clara e transparente. Ali vivia uma irmã do capitão com o seu esposo, também um velho capitão. Entre êles, Jaspert experimentou a mais cordial hospitalidade de toda a sua estadia na África.


Durante um passeio pela plantação, o visitante constatou o cultivo de ananás, avermelhado, plantados sistematicamente em filas, irrigado de forma a correr a água entre elas. Os arbustos de café cresciam à sombra de árvores. Alamedas de bananeiras e goiabas levavam aos canteiros com mudas de café, onde as plantas cresciam sob pequenos telhados de palha.


Um cafeeiro levava quatro anos até produzir. Alcançava então dois ou três metros de altura, fornecendo um quilo de café por ano. Naquela fazenda, plantava-se ca. de 1000 arbustos por hectar, de modo que era considerável as dimensões do cultivo na fazenda, pois possuia 30 ou 40 hectares. Esse cultivo exigia porém muito trabalho: constante irrigação, transplantes, retirada de ervas daninhas, o afugentar contínuo de pássaros.


A principal preocupação do proprietário de plantações em Angola residia na colheita. O fazendeiro dirigia-se, então, ao Govêrno, pedindo nativos para o trabalho. Era, porém, difícil consegui-los, e o "amanhã" era a excusa contínua que recebia das autoridades. A época da colheita muitas vezes já estava quase que passada quando se conseguia braços de trabalhadores. Os frutos já se arrebentavam e secavam, deixando cair as sementes no chão.


Um dos aspectos pitorescos da descrição de Jaspert é o da vinda repentina de um grupo de mais de cem macacos vindos da floresta, e que atacaram a plantação de milho, destruindo-a. Apenas podiam ser espantados com gritos e pedras, não caçados, pois munição era rara em Angola, não podendo ser importada. Mesmo caçadores com licença não obtinham mais do que 200 balas por ano.


Sugerindo responsabilidade pelos nativos e sua defesa


Outra ocorrência singular no texto de Jaspert foi o de ser uma vez acordado à meia-noite por gritos dos africanos que anunciavam ter sido sequestrada a filha do ancião da aldeia por uma caravana que ali passara. Ainda que não se tinha até então constatado a existência de comércio de escravos, deu-se início imediato à procura, por brancos e africanos. Tratava-se de uma caravana de ca. 50 homens que levavam mercadorias para o interior.


Nas aldeias visitadas, nada se encontrou. Finalmente, descobriu-se, num vale do outro lado da montanha, fogueiras, ao redor das quais estavam reunidos os membros da caravana. Ali, porém, não se encontrava a moça desaparecida.


Apenas quando o feiticeiro ameaçou-os com a vingança de demônios e praticou uma feitiçaria no centro do grupo é que devolveram a sequestrada, trazendo-a acorrentada. Não se pode verificar ao certo, porém, se se tratou realmente de um caso de escravização ou de um sequestro por algum outro motivo.



A "Francônia" de um colono da Baviera: galinhas de Angola e patos de Macau


A caminho de Calusipa, Jaspert passou por várias cabanas de nativos e de um bávaro, chamado de Jombis, o "criador de porcos". A propriedade era denominada de Francônia. Nas paredes de sua cabana viam-se figuras coloridas de cidades e mulheres da Baviera, assim como fotografias do seu tempo de serviço militar. Ao lado da lareira via-se uma escrivaninha com tampa em forma de veneziana, o que representava a grande curiosidade de toda a região. Era a única escrivaninha em Angola e o seu proprietário já havia recebido grandes ofertas por ela.


A fazenda era disposta na forma de uma casa rural da Francônia. Também a forma das casas lembrava em tipos de casas francas. O bávaro tinha grandes projetos, pois pretendia construir uma casa de dois andares.


Jaspert salienta a aparência estranha dos porcos, criados em grande quantidade, pretos, que mais se assemelhavam a bodes. Eram criados entre galinhas de Angola, desconhecidas para o visitante alemão. Também os patos criados pelo bávaro pareceram-lhe estranhos; eram patos de Macao, importados dessa colonia portuguesa.


A filha do casal mantinha-se em contínuas atividades, carregando água, esfregando e varrendo o chão, dando ração aos porcos e limpando os currais. Jaspert perguntava-se se ela não teria saudades do seu liceu em Frankfurt a. M..


Por todo o lado corriam cães, caçando bodes selvagens. Um deles tinha o nome de Rolando, o herói cuja figura se encontra à frente de muitas casas de Prefeitura alemãs. A dona da casa cozinhava segundo costumes alemães, ainda que com produtos locais. Assava ela própria o pão preto e fazia o café. À noite, sentavam-se ao redor da lareira, as crianças iam para a cama, onde cantarolavam canções populares alemãs, criando uma atmosfera perpassada de nostalgia.


De casa de colonos sul-africanos à fazenda alemã de Calusipa


A caminho de Calusipa, em viagem repleta de percalços, Jaspert descreve como passou por uma casa de "buren", de colonos provenientes da África do Sul. A fazenda, propriedade de Tünnes von der Merve, diferia daquelas alemãs. A casa era alongada, de barro crú,  tendo todas as janelas fechadas com pranchas de madeira, como se estivesse abandonada, apenas guardada por um cão feroz. Era costume desses colonos deixar a casa fechada, no período de sêca, quando então trabalhavam com os seus carros para outros europeus. Quando voltavam, já podiam colher; varriam e arejavam a casa e afastavam as tábuas das janelas.


No jardim, cresciam ananás e figos. Como Jaspert salienta, as frutas européias, em Angola, não tinham o gosto saboroso daquelas do Velho Mundo, sendo aguados. Ao redor, viam-se verdes milharais e canteiros de batata-doce.


A continuidade da viagem de Jaspert oferece uma expressiva descrição de viagem a lombo de burro através do sertão angolano, cruzando pântanos, rios, cascatas e floresta. Jaspert descreve aos leitores alemães o tamanho dos cupins angolanos, que com castelos medievais em ruínas. Com a descrição dramatizada das múltiplas dificuldades dessa viagem, Jaspert prepara o leitor para a grande decepção que sofreria ao atingir o objetivo de sua viagem.


Ao atingir Calusipa, foi recebido por cães latindo, pela sua prima, pelo administrador e um missionário americano. A saudação, após viagem tão cheia de riscos e atribulações, resumiu-se à pergunta: "trouxe os arados?" Ao contrário de suas experiências anteriores, Jaspert salienta que nessa fazenda já não apenas morrera toda a civilização sob o sol tórrido de Angola. Havia morrido o principal, a vida interior, ou seja, a "essência" da cultura que ainda continuava viva em Capungo e na Francônia.


Sinopse como ponto de partida para os trabalhos do ciclo de estudos "Memória da África?" realizado pela A.B.E.





Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.."Colonos alemães e 'Deutschtum' em Angola: Fazenda Capungo e a Francônia em terras Kimbundo.'Memória da África?' - Significado e problemas  de fontes fotojornalísticas do passado totalitário nos estudos das relações Portugal-África III. 75 anos de 'Aventuras e Experiências em Angola' de Willem Jaspert (1901-1941)." Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 130/19 (2011:2). http://www.revista.brasil-europa.eu/130/Alemaes_em_Angola.html


  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa: http://www.brasil-europa.eu


  2. Brasil-Europa é organização exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias e não considera nos seus textos dados divulgados por agências de notícias e emissoras. É, na sua orientação culturológica, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. Foi registrada em 1968, sendo continuamente atualizada. A A.B.E. insere-se em antiga tradição que remonta ao século XIX.


  3. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações, academias de letras ou outras páginas da Internet que passaram a empregar designações similares.




 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 130/19 (2011:2)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

e institutos integrados

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ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2733




Colonos alemães e "Deutschtum" em Angola
Fazenda Capungo e a Francônia em terras Kimbundo

"Memória da África"?
Significado e problemas  de fontes fotojornalísticas do passado totalitário
nos estudos das relações Portugal-África III

75 anos de "Aventuras e Experiências em Angola" de Willem Jaspert (1901-1941)

"Memória da África?", ciclo de estudos Portugal-África-Alemanha-Brasil da A.B.E. na região Ennepe-Ruhr pelos 125 anos da elevação a cidade de Grevelsbert, local de nascimento de Willem Jaspert. Jornada de Hattingen

 

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