Guiomar Novaes e a Pianola Duo-Art.BRASIL-EUROPA 129. Bispo, A.A. (Ed.). Organização de estudos culturais em relações internacionais





Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

No estudo das relações culturais Brasil/Estados Unidos, como salientado em outros artigos deste número, deve-se dar uma especial atenção os elos particularmente estreitos entre o comércio e a cultura. A pesquisa se encontra ainda longe de poder coinsiderar esses elos de forma sistemática, aprofundada e diferenciada, e muitos menos em poder analisar adequadamente possíveis diferenças sistêmicas quanto às relações culturais em contextos europeus. No desenvolvimento dos estudos, porém, a consideração de épocas e situações determinadas pode oferecer subsídios para pesquisas mais abrangentes.

Nos anos posteriores à Primeira Guerra Mundial, quando iniciou-se, em Nova York, uma época marcada por crescente prosperidade e dinamismo, os elos entre o comércio e a vida cultural manifestam-se de forma surpreendentemente clara na profusão de reclames e anúncios. No caso específico da música, o observador constata a existência, na época, de um extraordinário número de fabricantes de instrumentos, de casas de venda de instrumentos e de lojas de música. Esses fabricantes e comerciantes utilizavam-se de nomes de artistas famosos, promoviam-nos com a finalidade de apresentação de suas manufaturas e edições, mantinham salas de concerto e influenciavam repertórios. Alguns exemplos podem aqui oferecer um panorama da situação então reinante.

Negócios com instrumentos de corda e arcos

Entre os músicos que haviam vindo da Europa durante a Guerra, alguns que possuíam conhecimentos na construção de instrumentos, estabeleceram-se com negócios em Nova York. Esse foi o caso de Rudolf Olsen, violinista que passou a atuar como fabricante de arcos, salientando que possuía mais de dez anos de experiências em estúdios dos mais destacados fabricantes e restauradores de violinos da Europa. Para uma sociedade como a americana, na qual a propriedade de bens materiais era de especial importância, Rudolf Olsen salientava, nos seus reclames, que convivera com europeus que possuíam instrumentos particularmente valiosos. Podia, assim fazer avaliações de instrumentos usados, o que oferecia de forma gratuita, propondo-se a realizar negócios com violinos e violoncelos usados.

Casas de venda de instrumentos: violões, bandolins e ukelelês

Das muitas casas de instrumentos, pode-se citar a firma Chas. H. Ditson & Co., na East 34th Street, que se apresentava como Musical Headquarters, oferecendo instrumentos de todos os preços, vindo também de encontro à popularidade de violões, bandolins e de ukelelês havaianos.

Esse reclame de ukelelê merece uma particular atenção sob a perspectiva dos estudos relacionados com Portugal e o Brasil. Como tratado em número anterior desta revista, esse instrumento havaiano remontava aos instrumentos de corda dedilhada trazidos pelos imigrantes portugueses, em particular da Madeira, ao Havai na segunda metade do século XIX. (Veja artigo).

À época da Primeira Guerra e nos anos que a sucederam, o ukelelê, agora ja com conotação havaiana, passou a gozar de crescente popularidade nos Estados Unidos. Essa difusão do instrumento correspondeu sob vários aspectos àquela do cavaquinho no Brasil. Uma das razões dessa popularidade residia no baixo preço do instrumento, o que o fazia de fácil aquisição. Assim, custavam, em Nova York, entre 8 e 25 dólares, sendo os mais acessíveis de todos os instrumentos da família da guitarra. Como cotejo: os pianos eram vendidos por preços que variavam de 150 a 700 dólares,os  saxofones de 75 a 105 dólares.

Pode-se compreender que, numa sociedade tão marcada pelo dinheiro e pela propriedade material como a americana, essa diferença de preços equivalia também a uma diferença de prestígio quanto à posse e ao cultivo dos respectivos instrumentos. A prática musical com o emprêgo dos cavaquinhos, ainda que em conotação havaiana correspondia, assim, à esfera social menos privilegiada da vida musical. Sob o ponto de vista dos estudos culturais, seria necessário aqui considerar mais pormenorizadamente até que ponto essa esfera se relacionou com aquela do banjo, no século XIX associado com os negros dos minstrels, apresentados de forma depreciativa. (Veja artigo). A seguir, na ordem do valor aquisitivo, seria o saxofone o instrumento mais acessível, o que sugere uma esfera social da prática musical popular já um pouco mais elevada segundo os critérios da época, o que dirige a atenção ao jazz que passou a desempenhar papel de importância na vida musical de Nova York.

Manufaturas de pianos para uso doméstico

Como considerado em outro texto desta edição, as firmas de manufaturas de pianos desempenharam papel especialmente importante na vida musical de Nova York, uma vez que mantiveram salas de concerto e promoveram de forma particular pianistas. Esse foi o caso da jovem musicista brasileira Guiomar Novaes, que apenas realizava os seus concertos com pianos Steinway, fato devidamente salientado nos programas.

Neste contexto, cumpre salientar que esses elos entre a manufatura, o comércio de pianos e a vida musical não se limitava aos pianos de concerto. Também aqueles construídos para fins domésticos não dispensavam nomes de artistas famosos que os elogiavam.

Como, em geral, os pianistas de renome já se encontravam vinculados às grandes firmas, no caso dos pianos Kranich & Bach era Max Gegna, cellista, que os louvava.
Krakauer Piano. Arquivo A.B.E.
A firma Krakauer apresentava os seus instrumentos como ideais para o uso doméstico pela beleza e riqueza de sua sonoridade, salientando que esta podia ser comparada àquele de qualquer outro piano então existênte. A casa Mehlin & Sons apresentava o seu piano de cauda Violagrand como um instrumento que, com apenas 5 pés de comprimento, possuia qualidades sonoras comparáveis aos pianos de cauda inteira.
The Mehlin Violagrand. Arquivo A.B.E.

Impressão musical e repertórios

Vínculos estreitos existiam entre a impressão musical e a vida musical de concertos de Nova York. Obras interpretadas com sucesso eram impressas, utilizando-se então a menção do sucesso alcançado para a promoção das respectivas edições. Reciprocamente, artistas passavam a mencionar a impressão das músicas nos seus próprios programas. Como exemplo pode-se citar a canção Like Music on the Waters, de Wintter Watts, cantada por Eva Gauthier a 11 de fevereiro no Aeolian Hall, publicada por G. Schirmer e anunciada no programa de concerto da pianista brasileira Guiomar Novaes.

Esse programa mencionava também que a contralto Alice Moncrieff cantara, a 29 de dezembro de 1919, pela primeira vez a canção Mountain Girl's Lament, de Victor Young, do catálogo de canções de recitais da casa Hinds, Hayden & Eldredge.

Técnica de gravação, fonógrafos e pianos a rolo

Os estudos relativos à história da música nos Estados Unidos salientam que o desenvolvimento da técnica de gravação, dos fonógrafos e dos pianos a rolo desempenhou papel decisivo na configuração da vida musical americana, em particular no decorrer da década de 1910, preparando os "anos dourados" da vida musical americana da década de 20.

As gravações contribuiram ao aumento do interesse pela música, modificaram consideravelmente os hábitos relativos à apreciação musical, influenciaram a projeção de determinados artistas e o repertório. Vários foram os artistas que, já tendo alcançado renome nos meios operáticos e nas salas de concerto, na Europa e nos Estados Unidos, experimentaram amplo reconhecimento e mesmo popularidade mesmo junto a público que não frequentava costumeiramente teatros e auditórios através de intensas atividades de gravação durante os anos da Guerra.

O New York Recording Laboratories, situado à 26th Str. 1140 Broadway, oferecia-se para fazer gravações para artistas, professores e alunos, possibilitando "que se ouvissem a si como os outros os ouviam" e que enviassem ao "povo em casa" registros sonoros de si próprios.

Dentre as gravações de músicos franceses mais celebradas em Nova York destacavam-se as de G. Barrère, da firma Columbia. Esse artista, que gozava de grande reputação, era muito próximo ao Brasil, tendo mantido laços profissionais e de amizade com músicos brasileiros em Paris nos anos anteriores à  Guerra (Veja artigo).

Um dos pianos de rolo era o Playotone, produzido pela firma Hardman, Peck & Co, fundada em 1842, e situada na 433 Fifth Avenue. A firma oferecia pianos e "player-action" em uma só fábrica, assegurando assim perfeita coordinação. Os interessados podiam obter preços especiais em troca de seu piano antigo.

Não se considerou, porém, até agora, o papel desempenhado pelo Brasil no mercado americano das gravações e das produções para instrumentos mecânicos nesses anos que anteciparam e que marcaram o apogeu da vida musical das grandes cidades americanas, em particular em Nova York. Essa lacuna da pesquisa é sensível, uma vez que uma artista brasileira, a pianista Guiomar Novaes, participou ativamente desse desenvolvimento da técnica e de meios de difusão através da música gravada.

New York. Foto A.A.Bispo©
The Vocalion: primeiro fonógrafo produzido por casa de pianos de renome

Uma particular atenção merece os aparelhos da The Aeolian Company. Um dos seus produtos era fonógrafo denominado The Vocalion, e que era apresentado como novidade ainda ao redor de 1919. O Aeolian-Vocalion era o primeiro fonógrafo produzido por uma grande casa de manufatura de pianos de reputação, fundada com a finalidade de produzir instrumentos musicais de alta qualidade. Surgia, assim, não como um substituto, mas como um instrumento, tão nobre quanto um piano.

O aparelho era anunciado como uma grande conquista da técnica. A sua produção de som era vista como mais rica, de muito maior profundidade do que a dos fonógrafos até então existentes.

Era também considerado como um instrumento de beleza, simples na sua aparência, mas tão refinado como um piano de qualidade. Era o único fonógrafo que possuia meios práticos de controle de som, musicalmente satisfatórios, a Graduola. Esta fazia do Vocalion um instrumento de real expressão musical. Era equipado de forma a poder tocar todos os tipos de gravações com nitidez, possuindo o mais simples e mais efetivo meio de poder ter o seu toque interrompido automaticamente.


The Duo-Art Pianola e Guiomar Novaes

A The Aeolian Company salientava-se, porém, sobretudo pela produção de pianolas designada por Duo-Art, e é esse aparelho que adquire maior interesse nos estudos americano-brasileiros. Nos seus anúncios, a companhia salientava o privilégio que representava para um ouvinte poder apreciar na sua própria casa música para piano executada pelos maiores pianistas da época, um privilégio que até então apenas podia ter sido sonhado.

Esse instrumento era considerado como revolucionário, pois quando acionado pelos rolos de música Duo-Art, que eram gravações fac-simile da execução dos grandes solistas, reproduzia as suas interpretações de forma tão perfeita que ter-se-ia a impressão que o pianista estivesse presente. Podia-se, assim, ter o melhor da música para piano do mundo dentro da informalidade confortável da própria sala de visitas.

Além do mais, podia-se também executar o Duo-Art como se fosse um piano. Era o mais perfeito modelo de pianola, pois executava qualquer rolo musical standard de 88 notas. A firma salientava que o Duo-Arte era um pianoforte standard de alta qualidade, comparável a um instrumento de grandes marcas, "a Steinway, Steck, Wheelock, Stroud or famous Weber - Grand and Upright Models".

O reclame da pianola Duo-Art do The Aeolian Company era feito com Guiomar Novaes. A companhia salientava, em 1920, que a pianista brasileira gravava com exclusividade para os rolos da pianola:

"The renowned young Brazilian pianist, who gives a recital at Aeolian Hall on February 14th, records her art exclusively for the Duo-Art Piano."

A companhia salientava que, ao lado de Guiomar Novaes, os maiores pianistas do mundo estavam colaborando com a The Aeolian Company para o desenvolvimento das possibilidades desse instrumento. Assim, a Duo-Art Pianolo Piano tinha o privilégio de contar com registros dos mais brilhantes pianistas da época, entre êles Adriano Ariani, Harold Bauer, Carolyn Beebe, Ferruccio Busoni, Winifred Byrd, Charles Wakefield Cadman, Teresa Carreno, George Copeland, Alfred Cortot, Walter Damrosch, Carl Friedberg, Arthur Friedheim, Rudolph Ganz, Aurelio Giorni, Leopold Godowski, Catherine Goodson, Percy Grainger, Enrique Granados, Mark Hambourg, Josef Hofmann, Ernest Hutcheson, Albert Jones, Alexander Lambert, Ethel Leginska, Tina Lerner,  Ignace Jan Paderewski, John Powell, Rosita Renard, Beryl Rubinstein, Camille Saint Saens, Xaver Scharwenka, Ernest Schelling, Arthur Shattuck e Manna Zucca.

Antonio Alexandre Bispo


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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.."O Brasil nos 'anos dourados' de Nova York IV: Comércio de instrumentos e mercado de gravações na vida musical: Guiomar Novaes e a Pianola Duo-Art". Revista Brasil-Europa 129/16 (2011:1). http://www.revista.brasil-europa.eu/129/Pianola_Duo-Art_e_Guiomar_Novaes.html



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Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 129/16 (2011:1)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

e institutos integrados

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ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2702



O Brasil nos "anos dourados" de Nova York IV
Comércio de instrumentos e mercado de gravações na vida musical:
Guiomar Novaes e a
Pianola Duo-Art

Trabalhos da A.B.E. em Nova York, Los Angeles e Boston - Ano Edward MacDowell 2010 e Ano Listz 2011

 

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