Kaltner: Morubixaba Cururupeba. BRASIL-EUROPA 129. Bispo, A.A. (Ed.). Organização de estudos culturais em relações internacionais





Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 



Prof. Dr. Leonardo Ferreira Kaltner,
Universidade Federal Fluminense


Introdução



Há no Brasil, na Bahia de Todos os Santos, um pequeno município chamado Madre de Deus, com 32 km2, e, atualmente, com cerca de trinta e dois mil habitantesI. Esta localidade no século XVI era habitada por indígenas, dos quais se destacou o Chefe indígena Cururupeba, a partir de seu conflito com os portugueses, sobretudo com Mem de Sá. Este rápido episódio foi devidamente narrado por José de Anchieta no De Gestis Mendi de Saa, e no presente artigo investigaremos esta narrativa buscando analisar as relações interculturais entre os povos que originaram o Brasil, como chave de análise e exegese desta passagem do poema e de seu universo ficcional, que envolve uma análise da convivência e dos conflitos de imigrantes europeus, sobretudo os portugueses, com a população indígena local. Uma outra questão que trataremos, por fim, será a questão da autoria do poema, as controvérsias e a resolução definitiva destas com a descoberta da edição de 1563.


Para refletirmos sobre a origem do Brasil e a colonização portuguesa no século XVI, contexto do poema De Gestis Mendi de Saa, contexto este que é um assunto extremamente complexo e polivalente, devemos antes de tudo analisar os interesses que permearam a empresa da colonização do Nouus Mundus. Ainda que o século XVI seja marcado pelos descobrimentos e pela expansão comercial, graças à navegação, a imigração e a ocupação do Brasil não foi um dos grandes marcos econômicos deste século. E justamente por não ser um dos principais negócios ultramarinos de Portugal, o Brasil possuiu, inicialmente, em sua ocupação, uma série de singularidades que marcaram a sua origem e atual configuração. A cultura popular brasileira, por exemplo, refletirá muitas destas singularidades, expressando em essência questões muito mais profundas na colonização do Brasil do que um mero transplante ultramarino europeu de costumes e vivênciasII.


O grande interesse comercial da política internacional portuguesa no século XVI estava voltado não ao Ocidente, mas ao Oriente, à política africana e à descoberta da rota comercial marítima que ligasse o continente europeu com as ÍndiasIII. Desta forma, não só o rei, como toda a nobreza dirigiam suas atenções e investimentos para a consecução de um projeto de ampliação das rotas comerciais em uma perspectiva mais que internacional, antes de tudo global, mas com um objetivo concreto que seria o comércio com as Índias. Assim, os grupos dominantes e a elite lusitana estavam atentos e dispostos a desenvolver uma intensa política de comércio exterior pela navegação, sempre rumo ao Oriente, e a ocupação do Brasil seria um projeto secundário e extremamente arriscado, que não despertava a ambição da alta nobreza no século XVI. Prova disso foi a demora de uma política de ocupação efetiva do Nouus Mundus.


Todavia, este suposto descaso não estava vinculado a uma simples falta de interesse por parte da corte portuguesa em relação ao Brasil e ao Nouus Mundus, antes se dava pelo simples fato de Portugal não possuir no século XVI um contigente populacional necessário para efetuar toda a política de ocupação territorial de seu vasto império ultramarinoIV. E justamente este fator trará novos atores para efetivar a colonização do Brasil, quando o reino português recebe o apoio de Roma através do Sumo Pontífice para a ocupação do território. Se de um lado surgirão os aliados para a ocupação lusitana do Brasil, por outro lado surgirá também um poderoso rival, que contestará as disposições papais. Desta forma o Brasil, antes mesmo de efetivamente surgir, já está na agenda de disputas de poder entre os reinos europeus, e os rumos da colonização do Brasil apresentarão em seu início um reflexo deste conflito.


Mesmo que as motivações do conflito entre Reforma e Contra-Reforma possam ideologicamente apresentar o panorama da colonização do Brasil, podemos inferir que não será o eixo ideológico suficiente para a análise de como se processou a ocupação do Brasil. Assim como uma análise dos fatores econômicos não se mostra suficiente para determinar a origem e a expansão da colônia. Isto ocorre porque, neste período originário do Brasil, as ideologias se adaptaram ao contexto de sobrevivência da colônia e as atividades econômicas eram, inicialmente, de extração e subsistência. Todavia, podemos pensar em uma outra forma de descrever a origem do Brasil, a partir de uma perspectiva simples e ao mesmo tempo extremamente vinculada à realidade da colônia, que é a perspectiva cultural. Neste caso, a partir do estudo das manifestações culturais, sobretudo da literatura deste período, podemos minimamente dialogar com este momento em que se originou o Brasil.


A origem do Brasil não está ligada diretamente com os dignatários da Alta Nobreza lusitana, ou o Alto Clero romano, nem com os grandes investidores da época da Renascença ou os grandes ideológos da Reforma ou da Contra-Reforma. A origem do Brasil está ligada com o cotidiano de uma população anônima e humilde de pescadores e marinheiros, da incipiente Societas Iesu, com o desenganado José de Anchieta e outros irmãos jesuítas, com alguns poucos órfãos e degredados, pequenas famílias de agricultores, funcionários da corte aventureiros acostumados a viagens ao Oriente e alguns escravos trazidos da África. Este grupamento humano que atravessou o Atlântico em sucessivas levas no século XVI trazia consigo da Europa e da África além de sua língua, costumes e crenças, um projeto de ocupação efetiva do território que se consolidaria com o nome Brasil. Logo eles encontrariam um Nouus Mundus, um Novo Mundo, uma nova terra, com uma natureza jamais vista e com um povo indígena que lá estava havia muitos séculos.



Os povos indígenas do Nouus Mundus



Uma questão muito controversa acerca da origem do Brasil diz respeito às populações indígenas que foram residentes no território do atual Brasil, durante o século XVI. Sem sombra de dúvidas um dos principais teóricos a explorar esta problemática foi o antropólogo Darcy Ribeiro, que sintetizou plenamente seus anos de estudo e convivência com os índios, e com os documentos que nos restaram da origem do Brasil, na fundamental e singular obra O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. Sua interpretação do século XVI, da época dos primeiros anos de colonização, se basea em um estudo comparativo em que o Brasil do século XX, contemporâneo ao autor, serve como contraponto, buscando investigar o Brasil do século XVI, enquanto procurava identificar empiricamente quais caminhos aquela realidade inicial do século XVI percorreu ao longo de quase cinco séculos para se tornar uma nação contemporânea. Darcy Ribeiro investigou quais seriam os projetos, os fatos históricos e, sobretudo, as transfigurações étnicas e migrações que formaram e conformaram o povo e a civilização brasileira.


A partir do desvelamento desta realidade, podemos evidenciar que o atual traçado e território do Brasil sugerem uma linha de colonização anterior aos portugueses, como já havia notado Jaime Cortesão, citado por Darcy RibeiroV. Para apreendermos a extensão das sociedades indígenas sobre este território, antes devemos refletir sobre um modelo proposto para a análise da estrutura social destes grupos iniciais. Uma das primeiras problemáticas que se apresenta diz respeito a qual seria o nome e a nomenclatura correta destes povos, como se chamavam, qual língua falavam e qual seria a sua extensãoVI. Devemos apreender que os diversos nomes recebidos pelas grandes aldeias e povoados, como Tupinambá, Aymorés, Tupiniquins, Tamoio, Goytacás, Carijó, dentre outros, antes eram adjetivos epítetosVII, utilizados como etnónimos de circunstância, do que representavam propriamente uma nação, como entendemos atualmente com os adjetivos pátriosVIII e gentílicos.


Os povos indígenas dividiam-se em microetnias tribais. Estas microetnias poderiam ser agrupadas em grupos linguísticos, segundo Mattoso-Câmara, em que teríamos quatro grupamentos linguísticos preponderantes, dos quais havia inúmeras ramificações e dialetos. Os grupos linguísticos preponderantes são: Tupi, Jê, Aruák e KáribIX. Os grupamentos étnicos que tiveram contato inicial com os colonizadores europeus e formaram a base da colonização, pela miscigenação, pelos confrontos, pela conversão ao cristianismo e pela escravidão, no século XVI, sobretudo, foram indígenas dos grupamentos Tupi e Jê, sendo que os índios Tupi serão em parte aliados e em parte adversários, enquanto os índios Jê serão sempre os inimigos, os bárbaros, os Tapuia. O Brasil será originário, inicialmente, de uma base miscigenada luso-tupi.


O território que os índios Tupi ocupavam é outro motivo de controvérsia histórica, todavia Jaime Cortesão chamará este território de “Ilha Brasil”, que será o limite da colonização e da expansão do Brasil até o século XIX com a demarcação das fronteiras nacionais. Assim, temos que a “Ilha Brasil” de ocupação Tupi se estenderia seguindo algumas bacias hidrográficas que delimitam até hoje a expansão territorial do Brasil e delimitaram por suas fronteiras naturais a expansão da civilização nos séculos seguintes à sua origemX. Os Tupi ocupavam praticamente toda a costa do Atlântico, a bacia do rio Amazonas, do rio Paraguai, no atual Estado do Mato Grosso, o rio Guaporé, no atual Estado de Rondônia e o rio Tapajós, no atual Estado do Pará. Dividiam-se em microetnias e falavam dialetos de um mesmo tronco linguístico. Consta que sua chegada ao litoral ainda era recente, datando de alguns séculos, antes da chegada do europeu, a imigração em massa dos povos Tupi.


Vivia este povo Tupi em aldeias espalhadas com milhares de indivíduos, sendo que as aldeias consituíam as microetnias. Confraternizavam e guerreavam entre si, caçavam, pescavam e colhiam, faziam pequenos roçados de mandioca e praticavam o sistema de coivara no solo, o que os obrigava ao nomadismo. Praticavam a antropofagia ritualmente e seu sistema de parentesco possuía uma característica interessante e vital para a colonização do Brasil: o cunhadismo. Quando uma destas microetnias tribais crescia muitoXI, logo se dividia, diferenciando-se rapidamente seus membros, tanto por dialetação da antiga língua, quanto por uma nova identidade, e seguia cada uma o seu caminho separadamente. No plano individual, todos os índios deveriam compartilhar e dominar todas as técnicas necessárias para a sua sobrevivência, i.e. cada um deveria saber caçar, nadar, pescar, construir uma oca, andar no mato, curar doenças, fabricar seus utensílios do cotidiano e da guerra, e ser, sobretudo, autônomo. A geração de índios Tupi que no século XVI encontrou os europeus que chegavam ao Nouus Mundus provou uma ruptura com suas tradições, e, repentinamente, deste encontro agônico surgiu o Brasil.



A língua Tupi, o mameluco e o Tapuia: antagonismo e complementaridade



Dadas as circunstâncias de uma pluralidade linguística entre os povos indígenas da América e a diferença destas línguas com o português quinhentista, devemos indagar como teria se processado, então, o contato entre os povos indígenas e os europeus, a fim de que se estabelecessem as primeiras alianças que originaram a colônia. Do primeiro relato dos portugueses na Carta de Pero Vaz de Caminha, em 1500, temos uma hábil descrição do início deste processo de comunicação entre portugueses e povos Tupi. Pero Vaz de Caminha apresenta que a comunicação verbal, naquele momento, não foi possível entre portugueses e indígenas simplesmente porque as ondas do mar ressoavam tão alto que ninguém compreendia o que o outro falavaXII. Demoraria praticamente quase meio século para que indígenas e portugueses iniciassem a sua comunicação através de uma língua comum e estrategicamente criada e adaptada, e esta língua geral era o Tupi.


O Tupi foi uma ferramenta de comunicação extremamente eficiente, e seu surgimento foi uma das primeiras trocas entre os povos que há tão pouco se conheceram. Com um fundo geral oriundo do confronto de dialetos indígenas, apreendidos pelo convívio com estes, os primeiros jesuítas do Brasil gramaticalizaram e criaram uma língua geral, buscando como elemento de comparação o latim renascentista. Desta forma, a educação humanística clássica dos primeiros jesuítas do Brasil serviu-lhes para aprender, normatizarXIII e criar uma nova língua de comunicação e catequese para aqueles novos povos com que começavam então a conviver. O Tupi foi uma criação conjunta, de um fundo cultural linguístico indígena que se sincretizou com o latim clássico para gerar-se como instrumento de uma nova civilização, um Nouus Mundus. Esta nova língua disseminou-se por todo o território do Brasil, e foi se transformando ao longo dos séculos, com a expansão do Brasil, até ser substituída paulatinamente pela língua portuguesa, a partir, sobretudo, de meados do século XVIII. A língua Tupi foi uma das primeiras marcas identitárias do Brasil, e até hoje grande parte dos topônimos brasileirosXIV marca a existência desta língua geral, fruto do primeiro contato entre ameríndios e europeus.


Todavia, nem todos os portugueses se indigenizaram a ponto de aprender o Tupi e integrar-se à vida na floresta e por entre as matas, nem todos os índios, ao mesmo tempo, se europeizaram a ponto de constituirem-se como colonizadores que comercializavam com a metrópole portuguesa. Para compreendermos como se deu o processo de geração do Brasil, devemos ter atenção a um fator inesperado e repentino que ocorreria no projeto colonial: a miscigenaçãoXV. Serão, portanto, os mamelucos, descendentes em sua maioria de mãe indígena Tupi e de pai português, que fundarão e colonizarão efetivamente o Brasil. Falando Tupi, herdeiros dos conhecimentos milenares de seus ancestrais indígenas sobre a terra, sua fauna e flora, dominando também a técnica do ferro, da pólvora e comercializando com a coroa portuguesa, os mamelucos, ou Brasilíndios como Darcy Ribeiro os chama, serão os grandes responsáveis pela colonização do interior do Brasil, que se inicia no século XVII, quando surgirão as primeiras Bandeiras.


O processo de origem do Brasil, graças à miscigenação, será um processo abrupto de transfiguração étnica, em que surgirá um novo homem no Nouus Mundus, o mameluco, inicialmente. Não sendo mais índio, não sendo europeu, este novo ser, este novo homem, devido à presença dos missionários, terá também uma nova identidade, será então um cristãoXVI. Desta forma o poema De Gestis Mendi de Saa não é um poema que descreve o combate entre europeus e indígenas, não é um poema nacionalista, ligado a uma tradição nacional lusitana ou hispânica, até porque seu autor se considerava antes biscainho. O De Gestis Mendi de Saa é, antes de tudo, um poema sobre os Christiadas, os filhos de Cristo que fundaram o Brasil, incluindo-se neste grupo tanto aqueles que se converteram na Europa, quanto os que se converteram na América. Não há uma oposição entre europeus e indígenas no univerSo ficcional do poema, mas sim uma oposição entre Christiadas e Hostis, o inimigo, seja ele o indígena bárbaro que não falava Tupi, i.e. o Tapuia, o indígena não-convertido e antropófago, ou o francês herege calvinista e seu aliado indígena Tupinambá. Assim se ordenará o universo ficcional do poema anchietano.



Mem de Sá e Cururupeba



Por falta de possibilidade de que a coroa portuguesa investisse diretamente no Brasil, foi criado o regime de Capitanias Hereditárias, que terceirizou a empresa da colonização, no século XVI. Todavia, poucos destes empreendedores lograram êxito na exploração da colônia e como forma de intervir para que as terras não se perdessem, criou-se o Governo-Geral responsável por tentar buscar na própria terra uma forma de povoar e administrar a colônia. Tomé de Souza foi o primeiro Governador-Geral, em seguida é empossado Duarte da CostaXVII e finalmente, foi mandado ao Brasil o jurista Mem de Sá, tendo chegado em 28 de dezembro de 1557, que permaneceu no cargo até a sua morte por mais de dez anos. A sede do Governo-Geral ficou na Bahia até o ano de 1763 quando foi transferida para o Rio de Janeiro.


A aldeia de Cururupeba era uma aldeia de índios Tupinambá, que guerreavam constantemente com os portugueses, situando-se na Ilha de Corurupeba, no atual Município de Madre de Deus, na Bahia de Todos os Santos, cuja distância era de algumas léguas da sede do Governo-Geral. O episódio de Cururupeba ocorreu, muito provavelmente, em Março de 1558, segundo inteligentíssima dedução do Pe. Armando Cardoso, SJ a partir das indicações dadas por Anchieta no poemaXVIII. Uma carta do Pe. Manuel da Nóbrega, escrita a Tomé de Souza na Bahia a 5 de julho de 1559XIX, sintetiza este evento, que Anchieta descreverá literariamente no De Gestis Mendi de Saa, vejamos a descrição de Nóbrega, antes de apresentarmos o texto latino de Anchieta seguido da tradução:



“Acima disse como o Governador mandara notificar a estes da Bahia que não comessem carne humana; muitos obedeceram, mas não um Principal da ilha de Corurupeba, que está pela bahia dentro sete ou oito léguas, que matou e comeu com festas seus escravos, e sobre isto não quis vir a chamado do Governador, falando palavras de muita soberba, porque estes nunca haviam conhecido sujeição, e entrava-se com estes de novo, pelo que mandou o Governador a Vasco Rodrigues de Caldas, com quinze ou vinte homens buscá-lo por força, e trouxeram ao pai e filhos presos, sem os seus ousarem a os defender. Este foi o formento de grande escândalo nesta terra, porque tiveram logo os maliciosos que murmurar e ocasião de levantar mentiras: disseram que aqueles Índios haviam morto certos escravos do engenho que foi de Antônio Cardoso que lá estavam perto, e como se conheceu ser mentira, disseram que um barco que o Governador havia mandado a Tatuapara o haviam os Índios tomado e morto a gente, tudo por entristecerem ao Governador, o que também logo se soube por mentira. Este Principal esteve preso perto de um ano e agora é o melhor e o mais sujeito que há na terra.”




Cururupeba no De Gestis Mendi de Saa: texto latino



Aqui reproduzimos o texto latino da edição de 1563 do poema épico De Gestis Mendi de Saa de Anchieta, referente a Cururupeba.




O quam laeta fuit, qua te Brasillia uidit

Mende, dies! Quantus cunctorum terror habebat

Pectora! Quam multis mendacia uana timorem

Intulerunt turpem, cum barbarus hostis atrocem

Exercens iram: Naturae sancta parentis      80

Fodera rumpebat, diuinaque iussa Tonantis,

Humana insanis absumens corpora malis!

Crimina mandatis Domini contraria sanctis

Barbara progenies ullo sine more patrabat,

Assidue impune minas, probrosaque iactans    85

Verba, ferox Indus tumida se mente gerebat

Christicolas contra, turpi sed corda timore

Illi intus pauidi degebant pariete septi.


Vt cum raptores, rabies quos improba edendi

Instigat, subigitque lupi saeuo ore fremiscunt    90

Ad caulas, cupiuntque agnos laniare tenellos,

Arentemque sitim suctoXX sedare cruore,

Intus oues clausae trepidant, saeuasque tremiscunt

Circum claustra feras, uix audent fidere ouili.

Ast ubi calcauit firmis Brasillica plantis    95

Limina, qui magno gaudet Praetoris honore,

Protinus extirpare animis uanumque timorem

Cepit, et excusso languentia pectora somno

Laudis ad ardentem uerae succendere amorem.

Non ultra Indorum fastus, et publica ferre    100

Crimina, sed iustas de culpis sumere poenas

Et graue supplicium. Fuerat tum forte locutus

Plurima Christiadas contra ferus ore proteruo

Barbarus, imbelleis animosXXI, ignauaque corda

Obiiciens, letumque uiris crudele minatus.    105

Cururupeba illi nomen sermone paterno,

Quod, Buffo Planus, Romanus sermo uocabit,

Huius uesanumque animum, et petulantia uerba

Supplicio afficiens digno, poenaque timori

Terrorique graui cepit Brasillibus esse.    110

Quae modo patrasti, iam non impune tulisti

Flagitia, elatos animos, mentemque superbam

Cururupeba tibi deiecit fortis in armis

Dextera Christiadum, licet agmina multa tuorum

Certa caput cunctis animamque offerre periclis   115

Te circum starent, rapidis instructa sagittis.

At mens Herois magni uirtute superna

Freta (repugnaret quamuis concussa timore

Plurima pars uulgi) saeuum frenare furorem

Iure parat, tumidosque maris componere fluctus,  120

Et bis quindenis, quos omni ex gente parauit,

Ite uiris, inquit, captumque adducite, qui nos

Aduersum multa est insana uoce locutus,

Nouerit esse animum nobis, dextramque potentem.

Dixerat. Illi abeunt iussi fumosa petentes  125

Tecta, quibus sese magna stipante caterua

Cururupeba tuens telis opponere tela

Certus erat, sed enim qui solo perdere nutu

Cuncta potest, cui turbati grassantibus Euris

Aequoreis fluctus, furiosaque flamina parent,  130

Compressit rabiemque animi, inflatumque tumorem

Elatum gelida stringens formidine pectus.

Ergo illi inceptis perstant, pedibusque domorum

Limina caeca premunt, intrant, capiuntque latentem,

Educuntque domo uinctum: ceu buffo cauernis  135

Cum latitat buccas inflans, uentremque cruentam

Intentare necem credas morsu atque ueneno,

Ast ubi corripitur dextra, non ulla furoris

Signa manent, trahiturque cauis, ceditque trahenti.

Ergo illum captum nullo prohibente, manusque  140

Funibus arctatum, et nudos post terga lacertos

Victores ducunt Praetoria ad alta, nec illum,

Qui modo uirtutem uerbis iactare superbis

Sueuerat, et bellum nostris mortemque minari

Improbus, in duras iam truditur ille catenas,  145

Carceris obscuri foedo squalore situque

Supplicia expendens, ueterum poenasque malorum.

Nec prius inde abiit liber uinclisque solutus,

Quam Phoebum obliquus signorum cerneret ordo

Omnia lustrantem curru fessisque quadrigis,  150

Dum uectorem Helles transmisso pisce reuisit

Ardua siderei percurrens lumina Olympi.

Interea Indorum uulgata per oppida fama

Coniectum uinclis hominem, metus undique terras

Concutere, arrexere aures Brasillica proles,  155

Quisque timere sibi, ueluti si forte columbam

Vnguibus accipiter uolitantum ex agmine obuncis

Arripuit, fugere aliae, tectumque petentes

Abscondunt sese, timidasque recenti

Terror adhuc nuper contristat imagine raptae.  160




Tradução



Ó Mem de Sá, quão feliz foi o dia quando o Brasil

Te viu! Quão grande terror habitava os corações

Daqueles ali reunidos! Quantas menitras fúteis depositaram

O torpe temor em muitos homens, quando o inimigo bárbaro,

Que exercitava a sua ira atroz, rompia os sagrados vínculos da Natureza           80

Originária, e os divinos mandamentos de Deus-Tonante,

Gentio que devorava carne humana com a boca insana.

Esta bárbara progênie executava crimes contrários às sagradas

Leis de Nosso Senhor sem nenhum respeito, lançando

Assídua e impunemente ameaças, também palavras                                        85

Vergonhosas. Esta tribo indígena mostrava-se com a mente soberba

Contra os que viviam em Cristo, enquanto com indigno temor em seus corações,

Estes viviam apavorados cercados por sete muralhas fortificadas,

Assim como ocorre com os predadores, quando a perversa violência de devorar

Os instiga e conduz, os lobos rosnam com a boca selvagem                            90

Junto aos cercados das ovelhas, e desejam esquartejar os cordeiros tenros,

E sanar sua árida sede com o sangue sugado,

Do lado de dentro as ovelhas trepidam cercadas, e temem

As feras selvagens ao redor das cercas. As ovelhas mal ousam arriscar-se fora.

Mas quando aquele que se felicita com o grande título de Governador-Geral       95

Calcou as fronteiras do Brasil com o pé firme,

Logo começou a se extirpar este temor em vão

Em seus ânimos, e expulso este adormecimento, os corações enfraquecidos

Começaram a se abrasar junto ao desejo ardente da verdadeira glória,

De não deixar ir além a soberba destes índios, e não deixá-los ameaçar          100

A todos, mas obrigá-los a cumprir penas justas de suas culpas

E um pesado castigo. Havia então, por acaso, um feroz selvagem

Que falava muitas coisas contra os filhos de Cristo com sua boca

Violenta, inspirando espíritos pouco dispostos ao combate, e corações

Ociosos, tendo ameaçado os homens com uma morte cruel.                          105

Ele tinha o nome de Cururupeba em sua língua materna,

Nome que será chamado Sapo Chato na língua latina.

Condenando tanto o espírito violento dele, quanto suas palavras

Petulantes com um castigo justo, começou a existir um temor

Do castigo e um grave terror para todos do Brasil.                                          110

De que forma agiste, Mem de Sá, já não deixaste impunes

Os abusos, os espíritos arrogantes e a mente soberba.

Ó Cururupeba, em tua direção precipitou-se o braço

Guerreiro dos filhos de Cristo, forte em armas, embora grande multidão dos teus

Estivessem em volta de ti, munida com velozes flechas, multidão                    115

Certa de oferecer as suas cabeças e almas a qualquer perigo.

Mas a mente do nobre herói Mem de Sá, tomada pela virtude

Divina, ainda que a maior parte do povo o repreendesse,

Tomado pelo temor, se prepara para frear a ira selvagem

Pela justiça, e acalmar as ondas entumecidas deste mar.                             120

Daí preparou trinta homens, tirados de todo o povoado,

Mem de Sá disse aos heróis: “Ide, conduzi-o cativo, aquele que

Falou tantas coisas contra nós com sua voz insana,

Ele descobrirá existir disposição em nós, e um braço potente”.

Assim dissera. Aqueles trinta vão adiante, ordenados, buscando as moradas   125

Esfumaçadas, nas quais estava Cururupeba protegendo-se

Com uma grande multidão aglomerada, certo de opor armas

Às armas, mas com efeito Aquele que pode por termo a todas as coisas

Só com a vontade, a quem é dado controlar as ondas do mar agitado

Impelindo os ventos do oriente, e a quem obedecem as furiosas tempestades   130

Também comprimiu a raiva do espírito e a ira inflada,

Apertando o coração soberbo de Cururupeba com um gélido pavor.

Assim, aqueles trinta homens persistem em suas reoluções, atravessam os limites

Indistinguíveis das aldeias com seus pés, entram e capturam aquele que se esconde,

E retiram-no da aldeia acorrentado. Assim como o sapo em seu covil               135

Quando coaxa inflando a boca e seu ventre, qualquer um acreditaria

Que este sapo tentaria então causar um ataque mortal com sua mordida e seu veneno,

Todavia, quando é apanhado pela mão, nenhum sinal daquele

Furor permanece, e é trazido de seu covil, e logo cede àquele que o traz.

Desta forma ninguém impediu que Cururupeba fosse capturado, e acorrentado   140

Em suas mãos por cordas. Daí com seus fortes braços nus para trás,

Os vencedores conduzem-no junto à sede do Governo-Geral. Não mais se mostrou

Aquele hábito de proferir palavras soberbas com que o cruel Cururupeba

Havia se acostumado, nem de ameaçar a morte e a guerra aos nossos,

Já ele está preso em duras correntes agora,                                                    145

Na imundície repugnante e na podridão de um cárcere obscuro,

Ponderando sobre seus castigos, e a pena pelas velhas maldades.

Não pôde partir livre daí, nem solto de suas correntes,

Até que a ordem oblíqua dos astros discernisse Febo-Sol,

Iluminando todas as coisas com seu carro e com sua carruagem cansada,        150

Até que, atravessada a constelação de Peixe, Febo-Sol revisitasse o vetor do Carneiro,

Percorrendo as sublimes luzes do Olimpo celeste.

Nesta época, divulgou-se através das aldeias dos índios, a fama

De que aquele homem foi lançado às correntes. O medo incitava-se

Por todas as terras, as tribos do Brasil levantaram as suas orelhas,                   155

Cada um temia isto para si, assim como se por acaso um gavião

Agarrasse uma pomba com suas garras curvas, saída da multidão

De aves, logo as outras fogem, até buscarem um refúgio,

Escondem-se em seus ninhos, tímidas com a imagem

Recente de uma há pouco raptada, ainda o terror as entristece.                         160






Conclusão



Como pudemos observar, o autor do De Gestis Mendi de Saa participava ativamente do contexto em que se desenrolaram as ações do poema. José de Anchieta é o autor do De Gestis Mendi de Saa, ainda que o grande historiador Pe. Serafim Leite, SJ tenha contestado a autoria anchietana em favor inicialmente do Irmão Luís Carvalho, temos que a descoberta da edição de 1563 deu um basta à questão da autoria do poema, sobretudo se considerarmos que as atividades de docência da Eneida do Irmão Luís Carvalho iniciaram em 1564 na Bahia, quando o poema já havia sido publicado há um ano em CoimbraXXII.


O Professor Américo da Costa Ramalho da Universidade de Coimbra publicou um excelente estudo que discute o longo caminho de construção e descontrução da hipótese de autoria do De Gestis Mendi de Saa pelo Irmão Luís Carvalho, sendo que esta discussão praticamente se encerrou quando da descoberta da edição datada de 1563, o que impossibilitaria a autoria deste. Para a resolução desta questão todo um grande trabalho de Crítica Genética foi desenvolvido pelo Pe. Armando Cardoso, SJ, sobretudo, através da comparação com o De Beata Virgine Dei Matre Maria e com a Epistola quamplurimarum rerum naturalium que trazem expressões muito similares às do poema De Gestis Mendi de Saa.


O poema De Gestis Mendi de Saa em seu universo ficcional apresenta a colonização do Brasil a partir de uma visão estética vinculada ao Humanismo renascentista. Desde a sua forma ao seu conteúdo, podemos notar uma virtuose artística em Anchieta, seu autor, que se vale de uma construção poética detalhada e de um profundo conhecimento da realidade que o circundava. Ao mesmo tempo em que a Antiguidade Clássica serviu-lhe de inspiração para a visão renascentista do Nouus Mundus, o Humanismo do autor se revela em uma perspectiva Universal do cristianismo e da cristandade, no espaço ficcional da obra. Estes valores universais aplicados na realidade da origem do Brasil possibilitarão o surgimento dos primeiros povoados e vilas na Bahia, que são a continuação desta passagem do poema, que traduzimos no presente estudo, um tema que se apresentará talvez em um próximo momento.



Referências


ANCHIETA, José de. De Gestis Mendi de Saa. Tradução de Armando Cardoso. São Paulo: Loyola, 1970


AYMARD, André et alii. O oriente e a Grécia Antiga. Tradução de Pedro Moacyr Campos. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1962, v. 2.


BURMANNUS, Petrus. Poetae latini minores. Conradus Wishoff: Leidae Batavorum, 1731, v. 2.


CÂMARA JÚNIOR, Joaquim Mattoso. Introdução às línguas indígenas brasileiras. Rio de Janeiro: Ao livro técnico, 1979.


CAMINHA, Pero Vaz de. Carta de Pero Vaz de Caminha a El-Rei D. Manuel sobre o achamento do Brasil. Transcrição, leitura diplomática e adaptação de Jaime Cortesão. São Paulo: Martin Claret, 2003.


CORTESÃO, Jaime. Pauliceae Lusitana Monumenta Historica. Lisboa: Real Gabinete Português de Leitura, 1956. 2 v.


LUCANUS, M. Annaeus. De Bello Ciuili apud Pharsaliam Libri X. Coloniae: Apud Gualtherum Fabricium, 1571.


MADRE de Deus – Municipíos da Bahia. In: INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA (IBGE). IBGE Cidades. 2010. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow.html1. Acesso em: 29.12.2010.


NÓBREGA, Manuel da. Cartas do Brasil 1549 – 1560. Com prefácio de Valle Cabral. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 1931.


PRADO JÚNIOR, Caio. História econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1972.


RAMALHO, Américo da Costa. Os versos latinos de Francisco de Sá e a autoria do poema De Gestis Mendi de Saa. In: HVMANITAS. Vol. LI. Coimbra: 1999, p. 241-250.


RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. A formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.




I. O Município de Madre de Deus é uma bela ilha situada na Bahia de Todos os Santos, com paisagens naturais de coqueirais e mar, cf. IBGE Cidades, 2010.

II. O grande antropólogo Darcy Ribeiro ao comparar a colonização da América do Norte com a da América do Sul faz uma excelente alegoria, em que descreve a colonização da América do Norte como uma colonização de estética gótica, como um mero transplante ultramarino de células sociais pré-existentes na Europa que serão o mais fielmente o possível reproduzidas no Nouus Mundus. Já a América do Sul teria uma colonização mais voltada ao sentimento do barroco, sendo uma síntese, uma recriação sincrética e miscigenada de antigas formas de viver que renascem com trocas se conformando em um Novo Mundo de base latina, uma Nova Roma, cf. RIBEIRO, 2003, p. 69 e seguintes.

III. Cf. PRADO JÚNIOR, 1972, p. 14: “Enquanto os holandeses, ingleses, normandos e bretões se ocupam na vida comercial recém-aberta, e que bordeja e envolve pelo mar o ocidente europeu, os portugueses vão mais longe, procurando empresas em que não encontrassem concorrentes mais antigos já instalados, e para o que contavam com vantagens geográficas apreciáveis: buscarão a costa ocidental da África, traficando aí com os mouros que dominavam as populações indígenas”.

IV. Cf. PRADO JÚNIOR, 1972, p. 21-22: “Nas demais colônias tropicais, inclusive no Brasil, não se chegou nem a ensaiar o trabalhador branco. Isto porque nem na Espanha, nem em Portugual, a quem pertencia a maioria delas, havia, como na Inglaterra, braços disponíveis e dispostos a emigrar a qualquer preço. Em Portugal, a população era tão insuficiente que a maior parte do seu território se achava ainda, em meados do séc. XVI, inculto e abandonado; faltavam braços por toda parte, e empregava-se em escala crescente mão-de-obra escrava, primeiro dos mouros, tanto dos que tinham sobrado da antiga dominação árabe, como dos aprisionados nas guerras que Portugal levou desde princípios do séc. XVI para seus domínios do norte da África; como depois de negros africanos, que começam a afluir para o reino desde meados daquele século”.

V. Cf. RIBEIRO, 2003, p. 29 e seguintes.

VI. Darcy Ribeiro (RIBEIRO, 2003, p 151) estima em cinco milhões a população indígena do século XVI no território do que seria o atual Brasil, que possui atualmente cerca de oito milhões e meio de quilômetros quadrados. A média de pessoas por quilômetro quadrado seria então de cerca de um habitante por dois quilômetros quadrados, o que pode, supostamente, indicar extensas áreas de vazio demográfico nesta suposição, com pequnos aglomerados distribuídos esparsamente.

VII. O adjetivo epíteto é um adjetivo que determina uma característica ou um atributo de um herói ou divindade clássica, ou de uma população de uma localidade, que por vezes substitui o próprio nome da divindade ou dessa população. Acredita-se que o termo Tamoio, por exemplo, signifique “o mais antigo”.

VIII. O próprio adjetivo epônimo latino “Lusitano” que em latim é Lusitanus pode ser relacionado em latim essencialmente a Lusus, um dos epítetos pagãos de um herói ou divindade da Ibéria, assimilado ao mito de Baco no Panteão apolínio Greco-Latino, que representava o deus latino do vinho e da plantação de uvas. Representa este termo simbolicamente o nacionalismo do povo português no século XVI, como se encontrará também posteriormente na obra de André de Resende o neologismo Lysiadas, empregado tanto por Anchieta em 1563, no De Gestis Mendi de Saa, quanto por Camões em Os Lusíadas em 1572. O processo de nomeação de um povo por um adjetivo epíteto é costume dos mais antigos e remonta a necessidade de diferenciação de identidade de um determinado grupo em uma coletividade. Este fenômeno ocorria na nomenclatura das tribos indígenas do Nouus Mundus.

IX. Muitas línguas e pequenos grupos ficam de fora desta classificação, segundo Mattoso-Câmara, como as línguas Pâno, Tucano, Guaikurú, Makú, Múra, Katukína, Xirianá, Bororo, Karajá, Maskói e Yatê (Cf. CÂMARA JÚNIOR, 1979, p. 148 e seguintes), o que mostra a grande diversidade do mundo indígena anterior à colonização.

X. Cf. RIBEIRO, 2003, p. 29 e seguintes.

XI. O sistema de surgimento de microetnias seria provavelmente muito semelhante às poleis da Hélade durante o período da democracia ateniense, em que para se manter a coletividade unida e autônoma não seria possível um grande crescimento demográfico, ocorrendo a cisão de um Estado, quando ele crescia muito demograficamente, daí surgia a necessidade de migrações e fundação de colônias gregas por todo o Mediterrâneo, cf. AYMARD, 1962, p. 120 e seguintes. A expansão demográfica de um pequeno Estado deveria criar um Estado centralizador, como ocorrera com o Império Romano, por exemplo, e com os reinos absolutistas da Renascença, necessitando centralizar o poder para gerir macroestruturas políticas. Encontramos esta concepção político-ideológica no De Republica de Cícero por exemplo, que inspira as atuais democracias republicanas presidencialistas.

XII. Cf. CAMINHA, 2003, através da leitura de Jaime Cortesão: “Ali não pôde haver deles fala, nem entendimento de proveito, por o mar quebrar na costa”.

XIII. Cf. CÂMARA JÚNIOR, 1979, p. 99 e seguintes. Na p. 102, temos “(o missionário) Fez um trabalho de disciplinização, de interpretação do Tupi, de acordo com certos ideais, certos preconceitos sobre a gramática geral, que era no fundo a gramática latina. Usou a língua, assim disciplinada na catequese, e o índio, ao mesmo tempo que se aculturava religiosamente, também se ia linguisticamente se adaptando. Destarte, foi se dando nos índios aculturados e nos mestiços a expansão dessa língua Tupi trabalhada pelos jesuítas. É a chamada língua geral, que chegou a se implantar em certas regiões do Brasil. Um fenômeno semelhante se verificou na área espanhola com o Guarani, que é a variante meridional do Tupi, a tal ponto que no Paraguai hoje se fala Guarani e o Paraguai ficou sendo um país bilingue: o espanhol nas elites e o Guarani na massa popular. E é o Guarani jesuítico, que se implantou no meio paraguaio, num habitat linguístico que de início nada tinha de Guarani. Houve uma substituição de língua indígena”. Devemos considerar que este processo de criação do Tupi não foi uma aculturação nem do indígena, nem do europeu, mas uma transculturação, uma transformação cultural. Notemos também que a primeira gramática da língua geral foi escrita por José de Anchieta e publicada em 1595, a Arte de Grammatica da lingoa mais usada na costa do Brasil.

XIV. De Norte a Sul do país, de Leste a Oeste, temos até os dias de hoje muitos topônimos das línguas indígenas, sobretudo do Tupi-Guarani. Muitos destes topônimos são reincidentes no Brasil, ocorrendo em mais de uma região. Estes são alguns nomes derivados de línguas indígenas, por exemplo: Piratininga, Itacuruçá, Ipanema, Niterói, Ubatuba, entre muitíssimos outros.

XV. Os personagens histórico-lendários de São Vicente: João Ramalho, o cacique Tibiriçá e a índia Bartira apresentarão, no século XVI, o pradigma do sistema de cunhadismo e da transfiguração étnica causada pela miscigenação que gerou o Brasil inicialmente. Temos em 1553 uma carta de Tomé de Souza a El-Rei que cita João Ramalho, cf. CORTESÃO, 1956, p. 271: “& fiz capitaõ della a yohaõ Ramalho naturall do termo de coinnbra que martim afonso ya achou nesta terra quoando ca veyo tem tanntos filhos e netos e bisnetos e deçenndentes delle que ho nom ouso de dizer a vosa alteza”. A população mameluca, segundo Darcy Ribeiro (Cf. RIBEIRO, 2003, p. 151), em fins do século XVI e início do XVII, compunha-se de cerca de cinquenta mil indivíduos, enquanto teríamos cerca de trinta mil escravos africanos nos engenhos, cento e vinte mil índios nas missões e integrados, cerca de quatro milhões de índios ainda isolados.

XVI. Devemos entender que o cristianismo dos filhos da terra no século XVI não significa uma compreensão e aceitação total dos preceitos morais mais profundos da consciência cristã por todos. O cristianismo de então possuía antes um cunho popular de base latina, muitas vezes interpretando a realidade pelo uso e o costume da terra, como demonstram as cartas dos jesuítas, em que lutam os padres e irmãos para buscar aproximar cada vez mais os costumes da terra à moral cristã, já aceita, mas ainda não de todo praticada.  As mulheres indígenas e as crianças tiveram papel fundamental na política de Conversão do Gentio neste momento histórico.

XVII. O primeiro Bispo do Brasil Dom Sardinha foi devorado por Caetés, durante o mandato de Duarte da Costa, cf. ANCHIETA, 1970, p. 29 e 30.

XVIII. Cf. ANCHIETA, 1970, p. 32.

XIX. Cf. NÓBREGA, 1931, p. 207-208.

XX. No texto da edição de 1563 temos lucto, que o Pe. Armando Cardoso corrige para sucto. Não há nenhum registro do adjetivo luctus, -a, -um nos principais dicionários de latim da época da Renascença, o mais próximo seria luctuosus, -a, -um, que em nenhuma hipótese poderia se contrair em luctus, -a, -um. Outra possibilidade para este trecho seria o particípio lectus, -a, -um, com o sentido de “colhido”, todavia, a expressão sucto cruore é um antigo termo da medicina latina empregado por Quintus Serenus Samonicus, considerado um dos poetas menores do latim clássico. Temos em uma edição do século XVIII o seguinte registro do De Medicina de Samonicus, Cap. XXIII, v. 411: “Proderit exsucto fluuialis hirudo cruore” (Cf. BURMANNUS, 1731, p. 271).

XXI. A forma imbelleis animos, que se registra também no De Antiquitatibus Lusitaniae de André de Resende, é por sua vez corrente na Pharsalia de Lucano (Cf. LUCANUS, 1571, p. 131).

XXII. Cf. RAMALHO, 1999, p. 241 e seguintes.




Indicação bibliográfica para citações e referências:
Ferreira Kaltner, L., "Buffo Planus: o morubixaba Cururupeba no De Gestis Mendi de Saa". Revista Brasil-Europa 129/28(2011:1).
http://www.revista.brasil-europa.eu/129/Kaltner-Cururupeba.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 129/28 (2011:1)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2010 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2714




Buffo Planus: o morubixaba Cururupeba no De Gestis Mendi de Saa

 

_________________________________________________________________________________________________________________________________


Índice da edição     Índice geral     Portal Brasil-Europa     Academia     Contato     Convite     Impressum     Editor     Estatística     Atualidades

_________________________________________________________________________________________________________________________________