Americanismo. BRASIL-EUROPA 129. Bispo, A.A. (Ed.). Organização de estudos culturais em relações internacionais





Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 
Catedral St.Patrick NY. Foto A.A.Bispo©
Nos estudos culturais de contextos interamericanos e transatlânticos, em particular naqueles referentes às relações entre os Estados Unidos, o Brasil e a Europa, o pesquisador é confrontado com os conceitos de americanismo e americanização.


A questão da americanização da cultura de países latino-americanos, europeus e de outros continentes, compreendida em geral no sentido de influência dos Estados Unidos em modos de vida, de pensar e em expressões culturais, surge constantemente em debates, dando origem a discussões.


Esse processo americanizador no sentido de "estadounidosador" é debatido, no caso do Brasil, sobretudo quando se trata do desenvolvimento cultural do Brasil no decorrer do século XX.


Para além da impropriedade do igualar o termo América aos Estados Unidos, inerente a essa acepção do conceito, sempre se levanta a necessidade de considerações mais diferenciadas do próprio termo.


Corresponderia o termo não só a influências mais ou menos superficiais, mas a um processo de transformação cultural de países latino-americanos, europeus ou de outros continentes segundo mecanismos que caracterizaram sobretudo a formação histórica dos Estados Unidos e, portanto, a processos globais que tiveram a sua concretização histórica sobretudo naquela parte do continente americano?


Designaria o termo fenômenos globais da história cultural do homem? Se esse for o caso, como se poderia analisá-los, quais seriam as suas características? Como se explicaria o fato de serem designados com referência à América?


Nessa discussão, esquece-se, muitas vezes, que o termo americanismo, que, como outros "ismos" apresenta conotações negativas, possuiu, no passado, uma dimensão teológica, tendo sido tratado em documentos pontifícios e marcado a história eclesiástica dos Estados Unidos.


Assim que se toma consciência desse fato, muitas questões se levantam. Por que foi vinculada uma questão eclesial ao conceito América? Foi justa a sua qualificação pejorativa com um termo em "ismo"? Mantém-se hoje a problemática que designava o termo, mesmo sem mais ser compreendida como "americanismo"?


O americanismo assim entendido representou uma expressão da história cultural em contextos euro-americanos, refletindo complexos processos de recepção de ambos os lados do Atlântico.


Uma primeira discussão dessas questões teve lugar, na tradição a que se prende a A.B.E., no contexto de simpósio internacional realizado na Catholic University of America, em Washington D.C., em 1983, levada a efeito pelo fato de que a fundação dessa universidade, ocorrida em 1897, remonta a um pontífice que marcou o uso do termo: Leão XIII (1810-1903).


Retomando-se agora o tratamento de temas concernentes às relações entre o Brasil e os Estados Unidos, como relatado no presente número desta revista, e confrontando-se com a "americanização" cultural do Brasil no decorrer do século XX, decidiu-se retomar essa discussão.


Catedral St.Patrick NY. Foto A.A.Bispo©

Documentos pontifícios contra o "Americanismo" como heresia

O Papa Leão XIII, na sua encíclica Longinqua oceani, de 1895, embora registrasse positivamente o progresso do Catolicismo nos Estados Unidos, salientava que a Igreja traria frutos mais abundantes se, para além da liberdade que gozava, fosse favorecida por leis e pela autoridade pública. O pontífice admoestava os católicos norte-americanos a que não exportassem o sistema vigente nos Estados Unidos a outros países.


Na sua carta pastoral Testem Benevolentiae Nostrae, de 22 de janeiro de 1899, dirigida ao Cardeal James Gibbons (1834-1921), Arcebispo de Baltimore, em 1898, Leão XIII expressou mais uma vez a sua desaprovação quanto a uma separação entre a Igreja e o Estado na América, salientando preferir um relacionamento mais estreito, segundo modêlos europeus do passado. A Igreja teria permitido às nações tolerar outras religiões, o Catolicismo, porém, deveria ser favorecido. O documento desaprovava, portanto, igualações entre confissões.


O pontífice lamentava sobretudo um suposto liberalismo de católicos. Os fiéis não poderiam decidir assuntos doutrinários por si próprios. Os católicos deveriam obedecer à autoridade do magistério eclesiástico. De acordo com a doutrina do Concílio Vaticano I, este era infalível em questões de fé e da moral. Para evitar a influência do meio, dever-se-ia evitar que crianças católicas fossem enviadas a escolas públicas. Nem todas as opiniões deveriam ser tratadas publicamente, pois esse fato poderia ser prejudicial à moralidade. Nesse documento, o pontífice condenou o pensamento de Isaac Thomas Hecker (1819-1888) e o "Americanismo".


As principais tendências criticadas pelo Papa referiam-se sobretudo àqueles que procuravam justificar-se nas suas ações salientando experiências e iniciativas provindas da propria vida espiritual interna. Essa fundamentação em si, ainda que vista como fruto do Espírito, traria em si o risco de levar a uma desobediência ao magistério, a questionar o valor de normas religiosas sentidas como não mais adequadas ao mundo moderno. Essas tendências poderiam levar à consequente desvalorização da doutrina católica e da importância de guias espirituais.


Precaução de riscos e desenvolvimentos perigosos segundo o Magistério


O panorama traçado de uma quase heresia americanista parece ter sido sobretudo abstrato, procurando antes precaver desenvolvimentos do que condenar fatos. Não correspondia tanto a problemas concretos, mas as antevia e agia antecipadamente, em precaução. Caso existissem as apontadas tendências no Catolicismo estadounidense, a hierarquia católica deveria agir e erradicá-las.


Que esse americanismo não existia nos Estados Unidos, a respeito o Pontífice foi informado pelas respostas dadas pelo Arcebispo de Baltimore e por outras autoridades da hierarquia eclesiástica americana  e que haviam sido surpreendidas pela crítica romana. Também mencionaram que Hecker não havia abandonado princípios católicos. Acentuaram não haver um tal "americanismo" entre os americanos, e esse "americanismo" não era o americanismo dos americanos.


Já essa situação chama a atenção a múltiplas singularidades e paradoxias na acepção do termo e do seu uso, e do interesse da questão sob a perspectiva dos estudos culturais. Os americanos não se sentiam identificados com um conceito que a eles se referia e que designava desenvolvimentos que traziam o seu nome e marcavam a sua imagem. Sentiam a situação até mesmo como absurda, sendo criticados injustamente por tendências que negavam, e às quais os católicos americanos seriam até mesmo fundamentalmente contrários!


As admoações pontifícias, apesar de terem sido recebidas com espanto e sentidas como injustas, não correspondendo a intuitos reais e conscientes de minimização da autoridade do magistério pontifício, serviram certamente para alertar e por obstáculos a possíveis tendências, levando a uma particular sensibilidade e desconfiança quanto a eventuais prenúncios de uma valorização excessiva de experiências e convicções advindas da própria vida espiritual interna do pensador.


Essa situação de alerta contra o "americanismo" parece explicar certas características que o observador latinoamericano percebe em determinados círculos do pensamento católico dos Estados Unidos: uma marcada acentuação antecipada de fidelidade, uma afirmatividade precavida de normas, uma preocupação pelo possível despertar de modos de ver e sentir que eventualmente possam dar origem a caminhos questionáveis. Essa atitude leva a que se sufoque, pela raiz, todo e qualquer prenúncio de questionamentos ditados pela razão, pela pesquisa histórico-cultural ou pela experiência espiritual.


Essa atitude defensiva contra o "americanismo" dos americanos corresponde a uma situação constatada em grupos católicos da Europa, particularmente naqueles que mantém uma relação mais estreita com determinados círculos católicos dos Estados Unidos. Haveria, assim, uma transferência de atitudes e modos de pensar marcados pela defensiva contra o "americanismo" dos Estados Unidos à Europa, e portanto uma americanização cultural de militância "anti-americanista" de círculos do Catolicismo no Velho Mundo!


Esse desenvolvimento, na sua atitude precavida de alerta militante à legalidade normativa de obediência, tem consequências para o desenvolvimento das reflexões teológicas e para as relações dessas com aquelas da pesquisa cultural que procure considerar a religião nas suas inserções na história cultural do homem.


Um primeiro caminho que se abre aos estudos culturais é o de examinar os pressupostos históricos de um desenvolvimento que marcou o início da concepção do "americanismo" como um pressentido movimento de potencialidade herética.


Nesse intuito, são aqui considerados sumariamente aspectos relativos a três contextos, o da França, o da Santa Sé e o dos Estados Unidos, procurando-se elucidar os paradoxos desenvolvimentos transatlânticos a partir de reciprocidades derivadas de processos culturais relacionados com a imigração.


"Americanismo" como termo depreciativo na França


O surgimento do termo "americanismo" na sua acepção depreciativa dirige a atenção à história política da França do século XIX e de suas relações intereuropéias, em particular de suas tensões com a Alemanha após a guerra franco-prussiana.


A derrota francesa foi acompanhada por uma intensificação de sentimentos de afirmação francesa e de latinidade. Fortaleceu, agora com determinados direcionamentos, correntes remontantes à Restauração européia, à reconscientização do passado medieval, á transfiguração romântica e historicista da Idade Média e à restauração católica e missionária em retomada ao passado contra-reformatório.


Não apenas o Supicianismo na formação de sacerdotes, mas também expressões francesas de tendências ultramontanas de obediência a Roma como instância última, intensificadas com o Concílio Vaticano I (http://www.revista.brasil-europa.eu/128/Cor-no-Gotico.html - http://www.revista.brasil-europa.eu/128/Ultramontanismo-e-arquitetura.html) interrelacionaram-se de forma complexa com questões políticas de forma de govêrno na França.


Haviam aqueles que, orientando-se segundo modêlos medievais, e em interpretação particular de princípio monárquico como forma de govêrno, propugnavam por vínculos mais estreitos entre Estado e religião, outros não apenas viam a possibilidade de uma adaptação do Catolicismo ao sistema republicano como até mesmo as vantagens para a Igreja de uma separação de Poderes.


Sem uma análise diferenciada dessa complexa situação, seria inadequado afirmar-se indistintamente que os monarquistas fossem católicos e reacionários e os republicanos não-católicos e progressistas.


Recepção da biografia de Isaac Thomas Hecker (1819-1888) na França


O que se deve considerar, nessa situação interna francesa, é a influência exercida em círculos católicos pela tradução francesa, em 1897, da biografia de Isaac Thomas Hecker, escrita por Walter Elliott (Life of Father Hecker, 1896), e que foi alvo de comentários positivos do Abbé Félix Klein (1862-1953), professor no Institut catholique de Paris.


O conhecimento dos pensamentos e da obra de Isaac Thomas Hecker deu ensejo a que católicos que, na França representavam uma concepção estrita de Catolicismo de incondicional obediência à autoridade do magistério, em ampla acepção do dogma da Infalibilidade, passassem a denominar pejorativamente de americanistas aqueles católicos que procuravam diferenciações de pêsos nas determinações romanas segundo as situações reais da sociedade e do tempo.


O termo foi, assim, na Europa, utilizado como designação depreciativa, e o "americanismo" entendido como expressão de um sistema de concepções, de um edifício teórico, causando polêmicas. Essa origem do termo foi, assim, um fenômeno de recepção cultural, processada segundo as condições do receptor, no caso, a França. Tendências múltiplas de um Catolicismo menos estrito, agora identificadas com uma etiqueta, passaram a ser vistas como indícios de um movimento desafiador dos preceitos dogmáticos do Concílio Vaticano I, de potencialidades heréticas. Foram como tal denunciadas à Santa Sé pelos seus contraentes, que pediam intervenções.


O Pontífice, alarmado por essa suposta heresia, exportada à França pelos Estados Unidos, dirigiu-se diretamente ao Arcebispo de Baltimore. Este, assim, foi surpreendido por uma acusação ou suposição que não correspondia àquilo que constatava na realidade dos Estados Unidos. Levou não apenas à necessidade da resposta esclarecedora do episcopado estadounidense, mas também a uma longa polêmica. Testemunho dessas tentativas de esclarecimento de mal-entendidos é a correspondência entre o Abbé Félix Klein e vultos do Catolicismo americano, entre êles James Gibbons (1834-1921); John Ireland (1838-1918); Denis Joseph O'Connel (1849-1927) e John Lancaster Spalding (1840-1916).


Isaac Thomas Hecker), cisão dos Redentoristas e os Paulistas


O desenvolvimento altamente complexo e paradoxal do "americanismo", com todas as suas consequências, foi, assim, marcado pelo nome de Isaac Thomas Hecker. A consideração de sua personalidade, obra e da instituição por êle fundada surge como exigência necessária para os estudos culturais interamericanos e transatlânticos.


A atualidade desses estudos é demonstrada hoje pelo movimento a favor da santificação de Hecker, iniciado pelos Padres Paulistas de Nova York, a 25 de janeiro de 2008.


Ponto de partida para esses estudos é a consideração dos elos de Hecker com o Redentorismo, uma vez que foi ordenado sacerdote Redentorista em 1849.


A Congregatio Sanctissimi Redemptoris CSsR, fundada por Alfonso Maria de Liguori (1696-1787), em 1732, e que exigia rígida condução de vida de seus membros, voltava-se aos marginalizados e desamparados. Agia sobretudo através de Missões Populares e era marcada, históricamente, por elos estreitos com o sistema de govêrno de união entre o Estado e a Igreja da antiga Áustria e com a Restauração Européia.


Direcionamento ao povo, utilização de métodos efetivos de missão popular, severidade de comportamento, concepções políticas de cunho autoritário, mesmo der tendências absolutistas e de orientação fundamentalmente restaurativa não se excluiam.


Nos seus estudos e no seu trabalho, Hecker ganhou a convicção de que a fé católica e a cultura americana não seriam contraditórias, podendo haver uma harmonização e reconciliação. Ideais que marcavam a visão do mundo e do homem nos Estados Unidos, características de uma identidade que desde a Revolução se intensificara, tais como liberdade individual e serviço à comunidade, surgiam como fundamentais mesmo para a atividade de um Redentorista.


O seu objetivo tornou-se o de converter os Estados Unidos ao Catolicismo através do emprêgo de meios e formas de expressão populares na pregação e em conferências. Essa sua convicção foi compreendida como um caminho a êle determinado pelo Espírito Santo: Hecker devia usar de suas próprias palavras e tornar-se guia no processo de conversão da nação.


Passou assim a atuar levado por uma ordem supranatural interior, que o compelia e o obrigava à obediência aos ímpetos que em si sentia. A êle se associando outros Redentoristas - Augustine F. Hewit, George Deshon, Francis A. Baker e Clarence A. Walworth - formou-se um grupo que causou mal-estar na congregação, uma vez que tinha a sua ação determinada por forças internas, espirituais, sugerindo uma certa emancipação com relação à congregação. A obediência a ímpetos internos podia justificar, potencialmente, quebra de lealdade e desobediência.


Com o sentido de explicar os seus intentos e a exigência que sentia interiormente ao superior geral, Hecker dirigiu-se a Roma, em 1857. A sua exclusão da Congregação, por parte dos Redentoristas, não foi aprovado pela Santa Sé; a dispensa dos votos, porém, possibilitou-lhe que criasse uma nova comunidade, a de São Paulo o Apóstolo, a dos Padres Paulistas. Alcançou, para isso, o apoio de Alessandro Cardeal Barnabó (Alessandro Franchi, 1819-1878), que seria um dos principais propugnadores da causa da infalibilidade papal e, sob Leo XIII, Prefeito da Congregação da Propaganda Fide.


Convicção de impulsão interna de "convert makers" e direcionamento popularizador


Ao retornar aos Estados Unidos, Hecker trazia consigo cartas de recomendação de autoridades romanas. Os Paulistas foram bem recebidos pelo Arcebispo John Hughes (1797- 1864), de Nova York, que aprovou as suas regras e a êles ofereceu uma paróquia. Deram início às suas atividades em 1858.


A vida da comunidade seguia basicamente as severas práticas redentoristas de condução de vida a que os seus membros estavam acostumados. Uma de suas características era o de não incluir votos, ainda que os seus membros se mantivessem preocupados em consciência em observar determinações, como se a êles estivessem obrigados. A procura da Perfeição Pessoal consistia a pedra fundamental da comunidade religiosa, e para isso valorizavam, entre as virtudes, sobretudo a da fidelidade interior à Graça e o despreendimento.


Trazendo experiências das missões que haviam realizado anteriormente como Redentoristas, e com as suas qualidades intelectuais e pessoais, acentuadas pela força de se sentirem compelidos internamente, salientaram-se sobretudo como pregadores, alcançando considerável popularidade: eram êles próprios americanos e "conversos" pela força interior, inbuídos de zêlo e ardor missionários.


Com habilidade para conseguir doações financeiras, puderam construir um convento e igreja na West 59th Street de Nova York.


De acordo com os ideais de Hecker, os Paulinos voltaram-se sobretudo à conversão dos não-católicos americanos através do apostolado, de conferências, da pregação, da impressão de textos religiosos e de ações missionárias de cunho popular. Passaram a ser conhecidos como "fazedores de conversos" (convert makers).


O jornalismo tornou-se um dos principais veículos dos Paulinos. Em 1865, criou-se o The Catholic World Magazine, publicação que desempenhou papel influente no Catolicismo americano como primeiro periódico mensal do país. Panfletos, folhetos e livros missionários passaram a ser distribuidos gratuitamente a protestantes. Passaram também a esforçar-se em influenciar a imprensa não-religiosa. Nesse intuito de propaganda, os Paulistas passaram a dar particular atenção a discursos e a impressos, à beleza e à dignidade do cerimonial e à música sacra. O seu principal intento não dizia respeito à inovação teológica, mas sim à forma de transmissão do conteúdo tradicional, visando a sua popularização.


Em 1894, deram início, na Diocese de Cleveland, a apostolados entre o clero secular, extendendo-se a outras dioceses dos Estados Unidos, à Inglaterra e à Austrália. Estabeleceram a Catholic Missionary Union, com corpo diretivo controlado por membros da hierarquia, abrindo-se a Apostolic Mission House em contexto da Universidade Católica americana, em 1903.


Posteriormente, a sociedade expandiu-se pelo país, fundando-se centros em San Francisco, Berkeley, Chicago, Winchester e Austin. O treinamento e os exercícios dos noviciados passaram a ser feitos em casas de estudos. Os cursos de formação acadêmica foram integrados à Catholic University of Washington D.C.


Catedral St.Patrick NY. Foto A.A.Bispo©
Um vulto da imigração irlandesa: Arcebispo John Cardeal Hughes (1797- 1864)


Sem o apoio decisivo do Arcebispo de Nova York, John Hughes, os Padres Paulistas não teriam podido enraizar-se tão rapidamente nos Estados Unidos. O papel por êle desempenhado na história religiosa e cultural de Nova York deve ser considerado nos estudos relativos ao americanismo.

Sob o aspecto dos estudos culturais, deve-se sobretudo salientar que esse prelado possuia um passado de imigrante, sendo que as suas posições necessitam ser analisadas sob a perspectiva de processos de integração social e performativos.

Nascido na Irlanda, emigrou para os Estados Unidos em 1817, juntamente com o seu pai e um irmão, assentando-se em Chambersburg, Pennsylvania. Incentivado por um professor irlandês, também imigrante, estudou no Mount St. Mary's College, em Emmitsburg, Maryland, onde trabalhou como jardineiro para financiar os seus estudos.

Em 1826 foi ordenado sacerdote, ficando encarregado de uma paróquia. Como imigrante, de forte convicção católica e, ao mesmo tempo, empenhado em integrar-se na sociedade americana, passou a atuar politicamente, enfrentando ardorosamente movimentos nativistas que combatiam a ação da Igreja Católica nos Estados Unidos. Esses movimentos criticavam a vinda de tão grandes contingentes católicos para o país, ate então de raízes e identidade marcadas pelo Protestantismo.

Sendo a polêmica na época sobretudo feita através de jornais, Hughes salientou-se pelas suas respostas decididas a ataques da imprensa e pela sua argumentação teológica. Momento crucial na sua vida deu-se com a sua transferência para Nova York, em 1838, cidade onde a população católica experimentava considerável aumento com a imigração irlandesa.

Como imigrante, Hughes mostrou-se particularmente adequado para a liderança eclesiástica da cidade, dedicando-se a amparar os irlandeses, a auxiliá-los na sua integração na sociedade, a construir igrejas e escolas católicas. Com o seu espírito militante, estava sempre disposto a resistir a provocações e a combater os "nativos" perseguidores, defendendo a Igreja e suas propriedades, até mesmo com o emprêgo de armas.

Como vulto de liderança da comunidade católica de Nova York, uma das mais importantes dos Estados Unidos, Hughes passou a desempenhar um papel político influente no país. Preocupado com posições de poder, autoridade e organização hierárquica da sociedade, foi contrário ao movimento de emancipação de escravos.


Patrick's Cathedral. Significado musical e arquitetônico

O grande monumento arquitetônico que remonta a Hughes é a
St. Patrick's Cathedral de Nova York, iniciada em 1858. Embora não tivesse chegado a ver o seu término, essa catedral, consagrada em 1879, oferece, nas suas dimensões, na qualidade de sua construção e no seu estilo, através de uma leitura cuidadosa, chaves para exames culturais do Catolicismo americano à época de Hughes. Com o término da catedral. os seus restos foram transladados para a cripta catedralícia, em 1883. Entre 1885 e 1888, construiram-se as duas torres na sua fachada ocidental, que hoje dominam o trecho respectivo da Quinta Avenida.


Sob o aspecto musical, a Catedral e St. Patrick salienta-se pelos seus órgãos: o Grand Gallery Orgel, à entrada, com o órgão da nave, eco, e o órgão no espaço do altar, o Chancel Organ. Ambos os órgãos podem ser tocados independentemente ou em conjunto a partir dos respectivos teclados, de 5 manuais. Apresentam, no total, 9838 tubos e 177 registros. Já em 1879 instalou-se um órgão mecânico, com quatro manuais e 51 registros, de George Jardine & Son, de Nova York. No altar, instalou-se em 1880 um órgão com 2 manuais e 20 registros da Fa. J.H. & C.S. Odel, também de Nova York. O órgão do altar foi substituido pelo atual em 1928, o da tribuna em 1930, ambos da firma George Kilgen & Son, de St. Louis, Missouri.

Sob o aspecto arquitetônico, a catedral é uma das maiores expressões do Novo Gótico no continente americano. Insere-se, assim, de forma privilegiada, no patrimônio arquitetônico que manifesta o Gothic Revival no Novo Mundo e no mundo extra-europeu em geral.

Como analisado em vários outros exemplos (veja artigo), a renascença do Gótico no século XIX, intensa sobretudo na esfera britânica e nas suas colonias, correspondeu a impulsos de valorização do passado cristão-medieval do Romantismo, intensificados sobretudo após a Restauração européia. Se, porém, esses impulsos românticos levaram sobretudo a edifícios inspirados em igrejas medievais ainda marcadas pelo espírito românico, rurais ou em ruínas, em Nova York foram paradigmas nada menos do que as grandes catedrais européias.

Esse intento monumental correspondeu ao aumento da auto-consciência dos católicos de ascendência irlandesa de Nova York. Criada em 1808, sendo elevada a Arquidiocese em 1850, a sua nova catedral, substituindo uma outra também dedicada a St. Patrick, o padroeiro dos irlandeses, deveria testemunhar a importância do Catolicismo na sociedade americana. A localização da catedral apresentava elos históricos com a França. A área, inicialmente adquirida por jesuitas, fora comprada por trapistas franceses retornados à França.

O arquiteto escolhido para a construção da catedral foi James Renwick, Jr. (1818-1895), natural de Bloomingdale, Nova York, um dos mais influentes arquitetos norte-americanos do século XIX, de renome pelas suas construções com elementos historistas, em particular neo-medievais.

Processo de americanização de imigrantes irlandeses


A vida, a personalidade e as atividades do Arcebispo de Nova York chamam a atenção, assim, ao processo de integração de irlandeses católicos na sociedade americana do século XIX. A americanização, nesse sentido, deve ser analisada sobretudo como processo de integração na sociedade de uma nação historicamente protestante, demonstrando a subida de imigrantes das mais modestas posições às mais altas da sociedade, sucesso esse alcançado com inabalável determinação e uma convicção de superação que, na sua intensidade, poderia ser analisada como resultado de condições psicológicas determinadas pela instabilidade e labilidade da situação imigratória.


Como a monumental Catedral de Nova York expressa, esses católicos foram imbuídos de um impulso de equiparação ou de superação dos próprios modêlos vindos da Europa, de demonstrar que tanto podiam quanto os católicos europeus, sob muitos aspectos mais profundamente católicos e, portanto, ainda mais inabalavelmente fiéis e leais a Roma do que os próprios católicos europeus.


Os imigrantes e seus descendentes ou integravam-se nas respectivas comunidades católicas, assumindo expressões culturais, modos de vida e concepções do meio circundante, ou formavam comunidades definidas por laços étnicos e culturais. Ao contrário de tendências de católicos teuto-alemães que preferiam a formação de comunidades determinadas pela origem, a americanização dos irlandeses, compreendida como integração na comunidade católica dos Estados Unidos foi apoiada por vários representantes da hierarquia, entre êles pelo Arcebispo de Baltimore.


Considerando que o meio envolvente dos irlandeses que se americanizavam não era apenas aquele de uma comunidade católica, mas sim o de uma nação predominantemente protestante e marcada por ideais de liberdade pessoal e de livre iniciatival, os imigrantes, ao mesmo tempo mais católicos do que os católicos, e mais americanos do que os americanos, vivenciaram e configuraram um campo de tensões que marcou a história do Catolicismo nos Estados Unidos e que parece ter as suas repercussões até o presente.


Princípios do "americanismo" e sua atualidade


No processo de americanização experimentado pelos irlandeses nos Estados Unidos, compreendem-se os princípios que marcaram o desenvolvimento de Hecker e os riscos que foram vistos nas suas concepções. Aqueles que se americanizavam, integrando-se na sociedade de formação protestante, necessitavam-se adaptar-se às exigências da época, às condições e circunstâncias, para isso não acentuando demais determinados pontos da doutrina e das normas católicas, sem, porém, negar abertamente preceitos e normas da Igreja.


Premidos pelas circunstâncias, o caminho que parecia viável era, de início, o de uma sensível acomodação, evitando-se tocar em pontos que pudessem criar problemas, ou seja, sobretudo aspectos doutrinários, acentuando-se aspectos simpatéticos do convívio humano, facilitados pelo vibrar em conjunto, em alegria. Nesse sentido, para auxiliar os pobres imigrantes nos seus primeiros passos no Novo Mundo, na procura e na obtenção de abrigo e emprêgo, a hierarquia procurava agir de forma antes reservada, concedendo assim aos fiéis uma liberdade tão ampla quanto possível de pensamento e de condução de vida.


Essa situação determinada pela prática da integração recebeu, em Hecker, uma fundamentação teológica, quando este acentuou o papel da experiência interna da vida espiritual.


De forma explícita ou não, o desenvolvimento Paulista parecia implicar no fato de que uma acentuação da autoridade eclesiástica poderia prejudicar a procura individual da perfeição, devendo ser esta procurada individualmente, em ação dirigida pelo Espírito Santo. No impulso missionário de raíz redentorista e de cor paulista, as virtudes naturais passam a surgir como mais relevantes do que as sobrenaturais, uma vez que fomentavam a ação, e essa seria mais adequada ao Catolicismo do presente do que aquele das congregações do passado. Nesse sentido, os votos religiosos seriam prejudiciais, pois colocariam obstáculos à liberdade, necessária para a vida moderna dos católicos.


O "americanismo" na sua acepção eclesiástica sugere, em visão retrospectiva, muito do que se entende hoje como "americanismo" nas suas conotações de superficialidade, de amenidade adaptativa e de convívio, marcadas pelo evitar de arestas, pela alegria e aparente tolerância, pela informalidade, pela não acentuação de princípios de autoridade. O estudo do "americanismo" na sua acepção eclesiástica, porém, chama a atenção ao fato de que, por detrás das aparências, continuavam a manter a sua vigência concepções de lealdade à autoridade normativa em questões doutrinárias e morais, tais como expressas no dogma da infalibilidade.


A análise do "americanismo" aponta, assim, situações altamente paradoxais. Poderia, de fato, como suposto pelos franceses que marcaram pejorativamente o termo, ter em si, de forma potencial, um princípio valorizador da experiência espiritual interna e da razão do indivíduo perante a autoridade de normas não mais sentidas ou reconhecidas como válidas. Essa possibilidade, porém, representou um mal-entendido; tratou-se antes do não questionamento, da manutenção em obediência, em sentido de fidelidade, e do não tematizar conceitos problemáticos: o do orgulho quase que lúdico do manter cegamente a lealdade por detrás de aparências liberais.


Americanismo, Paulismo e o Brasil: Pe. Thomas Connellan, C.S.P. (1924-2008)


A discussão relativa ao "americanismo" no seu sentido eclesiástico e no convencional não possui apenas uma dimensão teórica para os estudos culturais relativos ao Brasil e aos elos do país com os Estados Unidos.  A Missionary Society of St. Paul the Apostle, remontante a Hecker, possui estreitos elos com o Brasil. Uma de suas mais destacadas personalidades é a do Pe. Thomas Connellan, C.S.P., membro da sociedade por quase seis décadas, destacado membro da Community College de Nova York de 1962-66, vice-presidente dos Paulista e que atuou em São Paulo, de onde desenvolveu, entre 1966 e 1967, o seu ministério latino-americano.


Antonio Alexandre Bispo


Todos os direitos relativos a texto e imagens reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do editor.

Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.. "O Americanismo e a americanização à luz de processos de transformação de identidades em contextos imigratórios e de recepção político-cultural na França e na Santa Sé". Revista Brasil-Europa 129/2 (2011:1).http://www.revista.brasil-europa.eu/129/Americanismo.html



  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa: http://www.brasil-europa.eu


  2. Brasil-Europa é organização exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias e não considera nos seus textos dados divulgados por agências de notícias e emissoras. É, na sua orientação culturológica, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. Foi registrada em 1968, sendo continuamente atualizada. A A.B.E. insere-se em antiga tradição que remonta ao século XIX.


  3. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações, academias de letras ou outras páginas da Internet que passaram a empregar designações similares.




 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 129/2 (2011:1)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2010 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2688



O "Americanismo" e a americanização
à luz de processos de transformação de identidades em contextos imigratórios
e de recepção político-cultural na França e na Santa Sé

Trabalhos da A.B.E. em Nova York, 2010, 200 anos de Leão XIII (1810-1903), Catedral de St. Patrick, Nova York

 

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Fotos A.A.Bispo
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