Jacques-Désiré Laval. Revista BRASIL-EUROPA 123. ACADEMIA BRASIL-EUROPA. Bispo, A.A. (Ed.) e Conselho Especializado. Organização de estudos culturais em relações internacionais

 
 

Relações entre o Brasil e a ilha Maurício numa história cultural em contextos globais justificam-se em grande parte pela existência de paralelos relativamente à inserção de ambos os países em processos de comércio mundial e expansão colonial da Europa, em particular no referente à exploração econômica e ao sistema de trabalho escravo.


O Brasil e essas ilhas do Índico foram descobertos pelos portugueses, ainda que em Maurício a sua presença tenha sido breve. A influência portuguesa na formação da sociedade mauriciana dar-se-ia sobretudo pelos escravos trazidos em grande parte de regiões dominadas por Portugal na África. A necessidade de trabalhadores em grande número foi sobretudo derivada da economia açucareira e esta desenvolvida em grande parte por holandeses (1598-1710) e que ali introduziram a cana a partir de Java. Ambos os países experimentaram a ação comercial e a presença dos Países Baixos, no Brasil primordialmente no Nordeste. Também aqui a história do domínio holandês vincula-se de forma complexa com aquela do comércio de escravos, sobretudo a partir de pontos de apoio surgidos na África em décadas da ação portuguesa.


Ambos os países conheceram as tentativas francesas de formação de colonias, tendo sido essas porém apenas de longo prazo e de ação mais profunda na antiga Île de France (1715-1810). À época da organização colonial da ilha sob os franceses, quando os canaviais foram ampliados e fundadas refinarias, a população escrava aumentou com a vinda de trabalhadores, principalmente da África do Leste e de Madagascar.


A multiplicidade de etnias e culturas representadas na sociedade mauriciana tornou-se porém muito maior do que a do Brasil, incluindo indianos do Malabar do sul da Índia, de muçulmanos de outras regiões, de nativos de índias do Sudeste da Ásia, das Molucas e da Oceania, além dos africanos de Moçambique, de regiões dominadas pelos portugueses ou não, de Zanzibar e de outras partes do Leste da África, da Costa da Guinea, do Senegal e de outras partes do Ocidente da África.


Se a influência britânica foi considerável no Brasil, no século XIX, em Maurício foi decisiva, uma vez que a ilha passou para o domínio da Grã-Bretanha (1810-1968). Essa foi a razão, também, que a história do regime de escravidão e da sua substituição por aquele de trabalhadores engajados apresenta uma defasagem entre os dois países. Em Maurício, a libertação dos escravos deu-se muito antes daquela do Brasil, uma vez que a escravidão foi ali abolida já em 1835. Continuando os inglêses a fomentar a economia açucareira, colocou-se o problema da substituição do trabalho escravo, sobretudo africano, levando à vinda de trabalhadores da Índia, em porcentagem que levaria com o tempo a uma profunda transformação de situações religioso-culturais da ilha.


Como esse suscinto esboço histórico deixa perceber, enquanto o Brasil permaneceu português no seu período colonial, Maurício passou por sucessivas mudanças do poder colonizador. Na diversidade étnica, cultural e religiosa da ilha, similaridades culturais com contextos brasileiros poderiam ser procuradas sobretudo pela existência de população católica. Dessa, uma maior atenção deve ser dada à considerável parcela populacional constituída pelos africanos, batizados na África ou na própria ilha, cristãos ou pelo menos de identidade cultural marcada pela ação do colono cristão, português na África e francês na ilha, e cujos costumes e religião continuaram a ser respeitados quando do domínio britânico.

A história dos escravos em Maurício assume, assim, importante papel nos estudos interculturais do Hemisfério Sul e podem trazer perspectivas elucidativas para o estudo de contextos respectivos nas Américas, em particular no Brasil. Nesse estudo, o enfoque histórico é de particular relevância, uma vez que, para o observador atual, a consideração do passado marcado por uma sociedade colonial de cunho ou conotação católica em Maurício surge antes quase que submerso perante o significado adquirido pela presença do Hinduísmo e do Islão nessa ilha do Índico.

Situação religioso-cultural dos escravos na Île de France

Os escravos trazidos através de portos portugueses na África, por comerciantes de diversas nações e por diferentes caminhos, eram já batizados, na sua grande maioria. A legislação francesa à época da organização colonial da ilha chegou até mesmo a não exigir que os escravos vindos de Moçambique fossem batizados, uma vez que já o teriam sido. Todos os demais, porém, deveriam receber o batismo, como rezava o primeiro artigo do Code Noir, de 1723.

Os proprietários da ilha tinham como obrigação, sob a administração da França, de instruir os seus trabalhadores na religião católica, batizando aqueles não cristãos e os recém adquiridos. Os patrões deveriam cuidar que os seus escravos assistissem aos atos de culto, recebessem os sacramentos e guardassem os domingos e dias santificados. Muito se questiona, também com relação a Maurício, se essas medidas foram ou não concretizadas, ou se os atos religiosos se reduziram ao batismo, à primeira comunhão e a ritos de entêrro. Tem-se referências que não foram observadas a rigor sobretudo no que diz respeito ao matrimônio, e aqui também por razões de interesse dos proprietários. Também de outras ilhas, por exemplo de Bourbon, há referências que mestres resistiam em enviar escravos à igreja pelo prejuízo do tempo útil, ou mesmo que os próprios escravos preferiam aproveitar o tempo livre para realizar trabalhos extras em proveito próprio.

Sob a perspectiva teórico-cultural, diferentemente de enfoques de cunho religioso ou missiológico, adquire menos significado a constante menção de que a cristianização dos africanos haja sido também em Maurício superficial e a sua vida religiosa deficitária segundo critérios ocidentais. Importante é constatar a inserção dos batizados em outra ordem simbólica, em processo performativo de identidades que determinou transformações e condicionou desenvolvimentos posteriores. Mal ou bem passaram a ser considerados cristãos e sob esse aspecto iriam ser tratados na ação missionária do século XIX.

Atenção dirigida à exemplaridade moral dos brancos

Essa situação compreende-se também que cedo desenvolveu-se a consciência de que o próprio comportamento dos brancos deveria ser de tal ordem a oferecer um modêlo de condução de vida a seus trabalhadores servís. Uma expressão - aparentemente singular - desse ponto de vista foi aquela que via na atenção privilegiadamente dirigida à religiosidade e à moralidade dos colonos europeus e de seus descendentes nascidos na ilha um pressuposto para o melhoramento da situação religiosa dos próprios escravos.

Paralelamente, a ação religiosa junto aos escravos no sentido de uma catequese especial surgia como necessária sob esse enfoque sobretudo para colocá-los ao abrigo da má influência exercida pelo comportamento e moralidade dos brancos. Os africanos teriam sido assim marcados, como se conhece de outras regiões do mundo, apesar da sempre alegada insuficiência, por uma religiosidade e uma condução de vida de fundamentação religiosa de muito maior significado para a própria identidade do que os europeus e seus descendentes. Tudo indica que, sob essas condições, tornaram-se sustentáculos de uma cultura de identificação católica na ilha.

Um problema que tem sempre sido apontado sobretudo por estudiosos que internalizaram críticas de teólogos europeus de meados e fins do século XIX vinculados a ideais da reforma da vida eclesiástica diz respeito ao clero nas situações coloniais. Também relativamente a Maurício difundiu-se, assim, uma visão indiferenciadamente crítica com relação aos costumes, à religiosidade e à moralidade de sacerdotes nessa época. Um argumento plausível é aquele que parte da integração do clero no sistema social vigente: os religiosos possuíam interesses e preocupações dos patrões, ou, pelo menos, procuravam não descontentá-los. Mostravam tolerância quanto à limitação do número de festas religiosas e da não assistência a atos de culto por parte dos escravos. Assim, teriam tido compreensão, na sua maioria, pelos riscos que a emancipação traria para a economia e a sociedade. Apesar da existência de padres acusados de abolicionistas, como Lafosse, em 1791, o meio católico das camadas sociais dominantes da colonia não teria tido simpatia por intuitos de emancipação, e esse teria sido o caso dos colonos de formação francesa ainda à época a administração inglêsa. Via-se o perigo para o comércio e a economia em geral, levando a uma ruína do sistema que seria nefasta para os próprios ex-escravos.

O quadro que se obtém da situação à época da passagem da soberania francesa à inglêsa é marcado por uma tensão entre a opinião colonial preocupada em conservar a sua posição social e a vida econômica da ilha, e as novas tendências missionárias que procuravam revitalizar e reforçar o catolicismo dos escravos, preparando-os para a emancipação. Entre essas, poder-se-ia salientar, no Índico, o papel exercido pelos Lazaristas e de religiosos voltados à educação, tais como os Frères des Écoles chrétiennes e aquelas de Saint-Joseph de Cluny. Mesmo assim, pelos motivos moralizantes acima citados - e não tanto por racismo - houve defensores da separação do ensino segundo a cor.

Situação sob a administração inglêsa

À tomada de posse da ilha, a Grã-Bretanha assegurou respeitar a liberdade de exercício religioso, de costumes e do uso do francês. A socidade colonial de cunho francês e católico manteve a sua continuidade, e as transformações que surgiriam seriam consequência da libertação dos escravos em 1835, quando ca. de 66000 libertos abandonaram as plantações, movimento acompanhado pela vinda de trabalhadores livres de regiões de influência britânica, sobretudo da Índia.

Os caminhos da ação religiosa e de ensino seguiram inicialmente aqueles anteriormente traçados. A atuação separada junto a negros e brancos e seus descendentes era justificada pelo fato de que, na estrutura paroquial, os primeiros passavam a ser negligenciados. Embora essa situação continuasse a implicar numa distância de seus agentes com relação às camadas dominantes da sociedade, estas teriam passado a reconhecer os benefícios de tal forma de atuação, uma vez que um ensino de cunho moralizador levava a menos roubos e à maior diligência no trabalho. Indiretamente, assim, esse procedimento servia para o bom funcionamento da sociedade no seu todo.

Apesar de encontrar-se sob a égide britânica, a história da ação religiosa em Maurício e em outras ilhas de formação católica continuou a refletir desenvolvimentos franceses. Uma consideração especial merece a ação missionária relacionada com a Sociedade do Sagrado Coração de Maria, fundada na França pelo Pe. François Libermann (1802-1852) e representada, na região pelo Pe. Levasseur. No processo de especificação das atividades, há referência de ter-se até mesmo chegado a impedir aos créoles a presença em atos de instrução de escravos.

François Libermann, processos de transformação de identidades e ação missionária

Sob o enfoque dos estudos culturais, que atentam em especial a questões de mudança de identidade, surge como significativo que um dos maiores nomes da história missionária do século XIX relativamente à África foi a de um converso: François-Marie Paul Libermann. Nascido Jaigel Libermann, de família judia de ascendência polonesa na Alsácia e êle próprio dedicado, na sua juventude, a estudos judaicos, converteu-se sob a influência de David Paul Drach (1791-1868), erudito israelita que passou ao Catolicismo, tornando-se relevante vulto na história religiosa do século XIX.

Libermann foi batizado em 1825, tendo sido ordenado em 1841. Talvez motivado pela sua própria situação de converso, sentindo possivelmente a ação de preconceitos e discriminação pela sua origem judaica, imbuído de conceitos de libertação de fundamentação teológica, e em correspondência com o movimento anti-escravagista da época, dirigiu a sua atenção sobretudo à situação dos negros nos países francofones, em particular na África. Fundou a Sociedade do Sagrado Coração de Maria para o envio de missionários a essas regiões. Colaborou com missionários para o Vicariado Apostólico das Duas Guineas, criado por Roma. Ali fundou-se, em 1844, a estação missionária de Santa Maria do Gabão (Libreville) e que passaria a ser significativo posto da ação anti-escravagista .

Estando porém já há muito os padres do Espírito Santo em atividade nas colonias da França, criou-se uma situação delicada de concorrência, que foi solucionada com a agregação de sua entidade na então fundada Congregação do Espírito Santo, da qual Libermann assumiu a direção.

Os conceitos de Libermann revitalizaram, sob novas circunstâncias, concepções relativas à acomodação cultural dos agentes do Cristianismo e que haviam marcado sobretudo a missão do Oriente de épocas passadas. Agora, focalizando a situação dos africanos, tratava-se de criar missionários que procurassem a integração na vida materialmente pobre e na cultura dos endereçados africanos, procurando ver a realidade pelos seus olhos, humilhando-se, com êles se solidarizando e abandonando concepções, costumes e modos de vida da Europa: "tornar-se africano como os africanos" passou a ser a noção condutora.

Concepções de ação, portanto, que continuam a vigorar até o presente, também no Brasil, podem ser assim consideradas do ponto de vista teórico-cultural num amplo contexto de relações interculturais e que incluem, de forma não irrelevante, processos de conversão na França do século XIX.

Jacques-Désiré Laval (1803-1864)

No caso específico da antiga Île de France, o maior nome relacionado com François Libermann, com a Sociedade do Sagrado Coração de Maria e com a Congregação do Espírito Santo é o de Jacques-Désiré Laval (1803-1864), beatificado em 1979. O seu significado para o país se manifesta no grande centro religioso que se formou no local de sua morte, Sainte-Croix, próximo a Port-Louis, e no fato de ser o seu dia de falecimento feriado nacional em Maurício.

A consideração histórico-cultural de Laval exige que se atente a outros aspectos relativos aos pressupostos culturais de sua formação e conversão interna. A atenção é dirigida, aqui, à época de sua juventude e ao ambiente cultural rural em que nasceu e atuou. Também aqui o seu desenvolvimento poderia ser interpretado sob a perspectiva de processos de transformação cultural, marcado que foi pela passagem de condições interioranas a situações de cunho urbano e mundano de Paris, e de seu retorno à vida humilde.

Nascido em Croth, aldeia do vale de Eure, França, pertenceu a um período histórico marcado pela reconscientização de valores consuetudinários após os anos conturbados da Revolução e do Bonapartismo. Teve a sua formação em escola religiosa dirigida pelo seu tio, sacerdote em Tourville-la Campagne, prosseguindo-as no seminário menor de Évreux e, posteriormente, no colégio Stanislas de Paris. Chegou a bacharelar-se em letras e em ciências, além de ter realizado estudos de medicina, apresentando uma tese, em 1830. Com a revolução de 1830, transferiu-se para a Normândia, trabalhando como médico em Saint-André-de-l'Eure por alguns anos.

Tendo experimentado problemas pessoais, transferiu-se para Ivry-la Bataille. Nessa fase de sua vida, passou por um  processo de conversão, culminando com a decisão de entrar para a vida religiosa. Entrou no seminário d'Issy-les Moulineaux, em 1835, tendo sido ordenado sacerdote em 1838 na capela do renomado e influente seminário de Saint-Sulpice, em Paris. Passou a servir numa pequena paróquia de Pinterville. Aqui ganhou a experiência que teria profundas consequências na sua atuação em Maurício.

O seu interesse pela África e a sua ida a Maurício explicam-se pelo fato de ter entrado para a Sociedade do Sagrado Coração de Maria, de François Libermann, posteriormente integrada na Congregação do Santo Espírito, como acima mencionado. Laval abandonou em 1841 a França, transferindo-se a Maurício a partir de Londres, em 1841.

Camponeses da Normandia e ação no Índico

Sob a perspectiva dos estudos culturais, uma especial atenção merece ser dedicada ao método empregado por Laval na transformação da situação religioso-cultural dos mauricianos das camadas mais pobres da sociedade, em particular dos africanos. Sem possuir os pressupostos possibilitados por reflexões, regras e por orientações no âmbito de uma ordem de tradição missionária, e sem ser um intelectual, apesar da sua diversificada formação, Laval foi confrontado com a realidade local e teve que procurar soluções pragmáticas a partir de suas próprias experiências. Baseou-se, assim, naquela que havia ganho na pequena paróquia rural da Normândia.

Nessa sua ação de cura entre os camponeses da região, havia constatado que a catequese que desenvolvia com as crianças e jovens era muitas vezes anulada pela influência que recebiam de seus pais ou pelo ambiente familiar.

Com a sua formação de médico, o interesse de Laval era mais orientado no sentido de um tratamento de males, no caso espiritual. Conduzido por essa imagem, que estabelece uma correspondência entre o organismo físico a ser curado e a sociedade ou a comunidade familiar compreendida como organismo, passara a dirigir a sua atenção às por êle reconhecidas causas dos males ou fatores que impediam o tratamento, ou seja, aos pais das crianças sob a sua responsabilidade catequética. Parece ser compreensível que, nessa focalização, que a sua preocupação se dirigiu à moralização dos costumes e à configuração da vida familiar e do convívio humano segundo preceitos cristãos. Laval ganhou, assim, a convicção de que a ação transformadora deveria começar pelos adultos, pelos mais velhos, e esta passou a fornecer a diretriz de seu trabalho na antiga Île de France.

Orientação dirigida a adultos: atenção a "velhos"

Com essa orientação, o procedimento de Laval diferenciou-se fundamentalmente daquele empregado pelos jesuítas no passado, também e particularmente no Brasil. Os jesuítas, embora também de orientação pragmática, tinham chegado à conclusão que os mais velhos, profundamente vinculados às suas culturas nativas, presos a suas convicções religiosas tradicionais, eram muito mais difíceis de ser convertidos do que as crianças. Essas, também aqui, com o convívio com os pais e com a participação nas festas tradicionais da sua comunidade de origem, corriam sempre o risco de retornar aos antigos costumes e à antiga identificação cultural. Havia a necessidade, assim, de, separando-as dos pais e de suas comunidades, formar com as crianças uma nova geração em escolas cristãs e colégios, base de uma futura elite cristã nativa na sociedade.

O procedimento possuiu assim um acentuado direcionamento educativo, e os métodos empregados e a forma de transmissão de conteúdos corresponderam a essa focalização da criança e do jovem. Também missionários da Companhia de Jesus tinham-se baseado nas suas próprias experiências e em tradições de suas regiões de origem na Europa na procura de caminhos e meios simbólicos para a concretização de seus objetivos na ação transformadora religioso-cultural. Possibilitaram ou fomentaram, assim, a transplantação de formas de expressão lúdica de fundamentação religiosa do Ocidente, de danças, instrumentos, folguedos e encenações no mundo extra-europeu.

Em ambos os casos, portanto, estabeleceu-se uma singular ponte entre a vida religiosa de comunidades rurais, camponesas da Europa, marcadas mais fortemente por tradições e por um conservativismo de concepções, e as comunidades a serem missionadas no Hemisfério Sul. A diferença de orientação, porém, num caso voltada basicamente às crianças, noutro aos adultos, explica-se em parte pela diferença da época e, consequentemente, da fase ou situação diversa do processo histórico de transformação cultural.

A ação educativo-pedagógica dos jesuítas do passado desenvolvera-se primordialmente em situações nas quais se tratava da transformação de sociedades não-cristãs, indígenas em geral, que viviam no seu próprio meio, e que eram, assim, profundamente identificadas com a própria cultura. No caso da ação dirigida sobretudo a adultos, de Laval, tratava-se antes de uma reforma de costumes e de modos de vida, de uma configuração mais profundamente religiosa da vida de uma população já de identidade cristã, uma vez que os escravos africanos já eram batizados, tinham recebido instrução religiosa, ainda que possivelmente deficitária, participado de ações litúrgicas e da vida festiva do calendário eclesiástico, com as suas respectivas expressões culturais.

A ação de Laval foi, assim, com essa orientação dirigida aos adultos, não tanto de natureza performadora de identidades, como no caso dos missionários da Companhia do passado, mas sim de cunho social, ou seja, dirigida a camadas não privilegiadas, sem poder, pobres, desprestigiadas ou marginalizadas. Não se tratava aqui tanto de conquistar espiritualmente povos de outra cultura, mas sim de um direcionamento mais específico aos pobres e aos trabalhadores dentro de uma própria sociedade de identificação cristã, dando-lhes prioridade de atenção relativamente aos brancos e aos creolos católicos.

Sem procurar a integração nas esferas mais influentes da ilha, vivendo numa cabana, viajando pelo país a lombo de burro, Laval procurou aproximar-se dos libertos, compartilhando de suas vidas. Passou a celebrar missas especialmente para esses grupos, à parte das estruturas paroquiais dirigidas a toda a população. Realizava visitas a hospitais e prisões.

Compreende-se, assim, que Laval , tendo sido bem recebido pelos ex-escravos mais idosos, provenientes da África, profundamente religiosos, tenha encontrado inicialmente reservas por parte das camadas sociais dominantes de brancos e creolos. Essa situação de agir de dentro de uma sociedade de identificação cristã a favor de seus membros menos favorecidos exigiu de Laval qualidades por assim dizer diplomáticas ou políticas, marcadas pela prudência, reserva e discreção. Mesmo assim, a pressão a que se viu submetido parece ter sido grande, uma vez que consta ter tido a necessidade de ser secundado por policiais em determinadas ocasiões.

Admira-se, hoje, que haja conseguido ser respeitado, admirado e até venerado por membros de diversas esferas sociais, inclusive das camadas privilegiadas. Uma das razões para esse sucesso parece ter residido no próprio procedimento empregado, ou seja, no direcionamento aos adultos, ao "mundo dos velhos". Essa atenção dada a pessoas de mais idade, ao "negro velho", teria vindo de encontra a um sentimento enraizado na sociedade mauriciana de respeito aos anciãos.

Entretanto, Laval não encontrou porém, na sua chegada em Port-Louis, em 1841, apenas uma população que, embora estando sob a administração inglêsa, era predominantemente católica e falava o francês. Passados já vários anos desde a abolição da escravatura, ocorrida em 1835, aumentara consideravelmente a parcela populacional de trabalhadores livres imigrados de outras regiões do império britânico, em particular da Índia.

Em princípio, segundo a argumentação elucidativa acima exposta, teria sido necessário um outro tipo de procedimento, uma vez que os indianos não eram batizados, não possuíam identidade cristã e eram profundamente conscientes do significado de suas tradições e expressões religiosas. Embora pouco se conheça dos resultados da ação de Laval junto a esses grupos portadores de outros pressupostos culturais, tudo indica que a orientação social do seu procedimento, ou seja, o seu direcionamento aos pobres e socialmente menos privilegiados tenha-lhe proporcionado simpatia e respeito. Uma transformação religioso-cultural de grupos vinculados tradicionalmente ao Hinduísmo ou ao Islão não parece ter sido possível em dimensões consideráveis pelo método empregado por Laval.

Formação de multiplicadores e criação de rêdes

A orientação social e dirigida aos mais velhos do procedimento de Laval teve a sua expressão na sua estrategia de ação. Esta baseou-se na construção de rêdes sociais. De seu ponto fixo em Port-Louis, de onde pouco se afastava, procurou formar uma rêde de multiplicadores que tomavam a si o trabalho nos seus respectivos bairros e, gradualmente, em toda a ilha. Esses mediadores eram homens e mulheres que, após os seus trabalhos diários, dedicavam-se à difusão de princípios de vida cristã nas suas áreas de convívio e vizinhança. Para ajudá-los nesse trabalho, Laval preparou um pequeno catecismo em créole.

A ação possuia um cunho acentuadamente caritativo e assistencial. Assim, orientou mulheres para o acompanhamento de doentes e idosos. Como pontos de apoio e de difusão pelo país, incentivou a construção de pequenas capelas como centros de oração e com confessionários. Destruídas por ium ciclone, em 1848, foram reconstruídas pelos próprios fiéis.

Tem-se salientado que, com esse procedimento e a criação dessas estruturas, Laval teria desencadeado um processo que levou a que Maurício se tornasse cristão. Essa afirmação, porém, apenas pode ser entendida no sentido de uma reforma de vida de uma população já de identidade cristã segundo princípios e categorias moralizadoras correspondentes àquelas em vigor em pequenas aldeias da França. A ação de Laval baseou-se também em Maurício em concepções de cunho medicinal, ainda que empregadas em sentido amplo da idéia de cura. Significativamente, atuou intensamente durante uma epidemia de cólera na ilha, em 1854, assim como uma de varíola, em 1856.

Nessa sua inserção no mundo camponês europeu e na esfera pobre do Índico não era a pessoa adequada para exercer funções de significado hierárquico, tal como aquela para a qual foi nomeado após a morte de François Libermann, em 1852, ou seja, o de ser superior das missões de Bourbon e de Maurício.

Significado para o Brasil

Com a sua orientação social, Laval pode ser visto como um precursor de concepções dirigidas às bases, às proximidades com a realidade de grupos marginalizados dentro de uma sociedade de identificação cristã, tais como são conhecidas no Brasil no presente. Não apenas os Espiritanos atuaram e atuam no Brasil, mas concepções que caracterizaram o método de Laval são amplamente divulgadas e praticadas. Poder-se-ia aqui citar procedimentos missionários na atualidade em certas regiões marcadas pela presença indígena, por exemplo no Solimões. Estudos histórico-culturais em contextos globais podem contribuir para que sejam contextualizadas em determinadas correntes do pensamento e em situações históricas e interculturais.

(...)

A.A.Bispo


  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa: http://www.brasil-europa.eu


  2. Brasil-Europa é organização exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias e não considera nos seus textos dados divulgados por agências de notícias e emissoras. É, na sua orientação culturológica, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. Foi registrada em 1968, sendo continuamente atualizada. A A.B.E. insere-se em antiga tradição que remonta ao século XIX.


  3. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações, academias de letras ou outras páginas da Internet que passaram a utilizar-se de designações similares.

 



  1. Imagnes de Sainte Croix. Fotos H. Hülskath

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 123/13 (2010:1)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho científico
órgão de
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Doc. N° 2547


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Emancipação de escravos na esfera britânica e pastoral de orientação social

Jacques-Désiré Laval (1803-1864)

Encerramento do ano França-Brasil/Brasil-França 2009 da Academia Brasil-Europa
no contexto do seu programa de estudos dedicado ao complexo temático
África/Europa/América: Paradigmas e reorientação teórica
Sainte-Croix, Ilhas Maurício, 2009

 

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