L. F. Kaltner: Anchieta, leitor de Ovídio. Revista BRASIL-EUROPA 123. ACADEMIA BRASIL-EUROPA. Bispo, A.A. (Ed.) e Conselho Especializado. Organização de estudos culturais em relações internacionais

 
 

O presente artigo é oriundo de uma monografia, entitulada Uma análise da proposição da epopeia De Gestis Mendi de Saa, escrita para a conclusão da disciplina A Poesia Renascentista (LEC 874), ministrada em 2008 pelo Professor Doutor Carlos Antônio Kalil Tannus, ocasião em que cursávamos os créditos de nosso curso de Doutorado em Letras Clássicas no Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Surge também a abordagem deste tema de uma necessidade explícita que encontramos na questão do papel das Letras Clássicas no Brasil quinhentista e a formação de professores de línguas clássicas, tanto helenistas, quanto latinistas, no Brasil do século XXI, resultante da experiência que vimos atualmente desenvolvendo na Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, tendo em vista que os atuais cursos de Letras Clássicas das Universidades contemporâneas estão atrelados de certa forma às Letras Humanas da época da Renascença, as Humaniores Litterae. Trata-se o presente texto, pois, de um estudo cultural do período de formação do Brasil, relacionando a cultura da Renascença com a colonização do Novo Mundo.

Neste artigo, trataremos de uma elegia novilatina escrita por José de Anchieta (1534-1597) a Mem de SáI, que constitui a abertura do poema De Gestis Mendi de Saa. Escrito em dísticos elegíacosII, em um latim clássico refinado, este poema elegíaco de cerca de cem versos, cuja inspiração provavelmente foi a lírica ovidiana, largamente divulgada na Renascença, é um dos primeiros registros literários do Brasil e nos revela não só a erudição de Anchieta e Mem de Sá, que estão entre os primeiros colonizadores do Brasil, mas a patente relação da cultura renascentista com a origem da nova nação, o Nouus Mundus.

Metodologicamente, para analisarmos este belo poema elegíaco de Anchieta, desenvolvemos um trabalho filológico com as fontes do texto, sobretudo a editio princeps do De Gestis Mendi de Saa, editada em 1563 em Coimbra, por João Álvaro, Tipógrafo-régio. Este foi o primeiro poema escrito no Brasil a ser impresso, sendo considerado também o primeiro livro brasileiro, pelo fato de seu autor, José de Anchieta, ter vivido no Brasil desde 1553 até 1597, ano de sua morte.

A Filologia, em um sentido amplo e interdisciplinar, é uma ciência, aliás dentre as mais antigas, cujo principal fundamento é a preservação dos textos de sua destruição material pelo tempo. Podemos afirmar que a preservação de textos é um processo complexo, que pode se iniciar com o trabalho de ecdótica nas fontes materiais do texto, terminando pelo esforço de exegese, ou interpretação do sentido, o que muitas vezes exige uma tradução. Graças ao trabalho de Filólogos podemos tecer uma História da Literatura e resgatar os significados reais e simbólicos de realidades históricas humanas que nos deixaram seu testemunho somente em textos documentais e literários, desta forma nos posicionamos metodologicamente, quanto ao texto novilatino anchietano.

José de Anchieta, autor da elegia que traduzimos mais adiante, cursou Letras Humanas no Real Colégio das Artes de Coimbra, em que se matriculou no ano de 1548, tendo ingressado na Companhia de Jesus em 1551, posteriormente sendo enviado ao Brasil em 1553,  com dezenove anos de idade, no Real Colégio das Artes pesquisou e estudou o latim clássico que posteriormente lecionou no Brasil, e temos registrado em suas poesias o domínio que possuía na Língua do Lácio, como veremos adiante. O Real Colégio das Artes de Coimbra iniciou suas atividades em fevereiro de 1548, ano em que Anchieta nele se matriculou, e contava com renomados humanistas em seu corpo docenteIII.

O curso de Letras Humanas, Litterae Humanae ou Litterae Humaniores, diferenciava-se, na época da Renascença, às Letras Divinas, i. e., o estudo das Sagradas Escrituras, ou Litterae Diuinae. Ocupavam-se as Letras Humanas do estudo teórico e prático das línguas clássicas europeias, Grego e Latim, e consequentente da Literatura Clássica greco-latina, era, desta forma, este o primeiro estágio, como educação básica, anterior ao ingresso nas Universidades na época da Renascença. O curso de Letras Humanas foi ministrado no Brasil a partir do século XVI nos Colégios da Companhia de JesusIV.

A educação humanística da época da Renascença influirá a tal ponto na Literatura deste período, que teremos no Brasil quinhentista já uma expressão novilatina e a presença da Cultura Clássica, em uma época em que surgia incipientemente a civilização brasileira, o que torna evidente que este período histórico possui não só uma vertente de análise econômica ou político-ideológica, relacionadas à empresa colonial, ou à expansão da Fé nas AméricasV. Podemos, portanto, analisar a origem do Brasil também através de uma perspectiva cultural, em que a educação humanística europeia chegada ao Nouus Mundus buscava criar uma nova sociedade, diferenciada da experiência civilizatória do Vetus MundusVI.

Desta forma, podemos facilmente compreender porque Anchieta utilizou-se do latim clássico para escrever um poema dedicado a Mem de Sá, jurista de formação pela Universidade de Salamanca, logo um hábil leitor para seu poema novilatinoVII. O latim da época da Renascença era um eficaz instrumento para fomentar as relações inter nationes, no momento em que a língua clássica do Lácio não representava uma nação europeia especificamente, mas era um instrumento intercultural para a expansão do Ocidente no século XVI. Logo as migrações, colonizações e a expansão do comércio pelas navegações estavam ideologicamente atreladas à concepção reatualizada do mundo clássico greco-latino. Não apenas o uso das línguas clássicas era patente neste período,  mas também as ideias e ideais dos autores clássicos serviam de modelo para a expansão dos reinos ocidentais europeus, havendo o intuito, em certos casos, de recriar o mundo clássico nas novas colônias.

O patrimônio cultural cristão e o clássico conviveram pacificamente durante os séculos XV e XVI no Brasil, o que explica a visão de mundo de Anchieta que dispõe lado a lado, no De Gestis Mendi de Saa, a cultura clássica e a cristã, como veremos no poema adiante, belo exemplo de um texto da tradição do Humanismo renascentista, transladado da Europa aos trópicos. Vejamos o texto.



Iesus

Epistola NuncupatoriaVIII Excellentissimo, singularisque fidei ac pietatis uiro Mendo de Saa, australis, seu Brasillicae Indiae Praesidi praestantissimoIX


Aspicis en quantum superi diuina Tonantis

Patrauit uirtus, Maxime Rector, opus.


Iam fera deposuit tumidos Brasillia fastus,

Et cecidit telis exuperata tuis.


Quae prius horrendo funesta furore gerebat

Bella, salutiferae munera pacis amat.


Quae prius umbrosis degebat condita siluis,

Iam Domini sacras gaudet adire domos.


Quae rabidis hominum rodebat corpora malis,

Mitia iam sancto pectora pane cibat.


Quae saeua humanum sugabat fauce cruorem,

Iam diuina auida flumina fauce bibit.


Nempe tuis uires diuina potentia telis

Addidit, hostiles et superauit opes.


Cernis ut excelsis constructae in rupibus aedes

Robur in ingenio no habuere loci.


Nam licet humanas superarent moenia uires,

Quae posuit celso Gallica dextra iugo,


Qui tamen astrigeros diuino robore caelos

Temperat, et nutu fertque refertque suo,


Tradidit horrendis munitam cautibus arcem,

Victorique dedit tecta superba tibi.


Nec tibi ueloces passus nocuisse sagittas,

Quaeque potens ignis plumbea tela uomit,


Nec quos terribili celeres stridore per auras

Eructat saeuos machina uasta globos.


Cum te deficerent humanae robora dextrae

Et classis multo funere fracta foret,


Nec iam suppeteret puluis, qui pabula flammae

Sufficit, unde iras concipit ignis edax,


Aspexit summo miseratus ab aethere Iesus

Auxiliumque suae praestit ipse manus.


Incussoque feros hostes terrore fugauit

Attractus precibus in tua uota tuis.


Iam potes medio noua  condere gaudia corde

Maxima laetitiae suppetit ansa nouae,


Iam nunc egregi laetabere laude triumphi,

Haec peperit nomen nobile palma tibi.


Redde Deo laudem, propriis qui uiribus hostes

Moeniaque inuicta contudit alta manu


Ipsius est etenim saeuos superare Tyrannos,

Trudere ad ima malos, tollere ad alta bonos.


Laudibus aspira, caeli quibus affluit aula,

Si tua contingit pectora laudis amor.


Nam subito mendax praesentis gloria mundi

Deperit, et nimia mobilitate fugit


Scilicet effracti per rimas uasis ut unda

Effluit, et plenum non sinit esse sui,


Sic honor effugiens elabitur, atque liquescit

Per mediasque abiens effluit usque manus.


Si uacat, et tacitus tecum medioque reuoluas

Pectore magnanimum fortia facta ducum,


Inuenies quantos mors obruit atra triumphos

Tartarei foedas sub Phlegethontis aquas.


Nempe quia aeterno, cuius facit omnia uirtus,

Elati laudem non tribuere Deo.


Exiguo uanas carpserunt tempore laudes,

Cura quibus propriae maxima laudis erat.


Si sapis, a Domino uerae pete munera laudis,

Quae uenit, a Domino gloria uera uenit.


Si sapis, instabilis mendacia respue mundi,

Ne te compedibus uinciat ille suis.


Allicit ille dolis, facie mentitur honesta,

Pollicitus uitae munera, morte premit,


Diuitiis onerans et honoribus obruit, alta

Nec sinit excelsum tollere ad astra caput


Moenia cum magnae superaueris ardua turris,

Et niteat lauri gloria clara tuae,


Insidiis ne te capiat, uictumque superba

Victorem nuper sub dicione premat.


Audi igitur quales uerus sine fraude magister

Diuino Iesus protulit ore sonos:


“Si uis perfectum caelum conscedere, uade,

Vende et pauperibus porrige quicquid habes.”


Scilicet ipse uiam planta quia praepete currens

Euolat, ut cursu non remorante gigas,


Eius ut accitis uestigia sacra sequendo

Cursibus urgenti pondere liber eas.


Si cum diuitiis te gloria uana moretur,

Effugiens oculos effluet ille tuos.


Certe uanus honos multo Stygis antra labore,

Despectus paruo sidera pauper emit.


Ergo cupis iusto tumidum si uincere mundum

Marte, refer Christo quicquid honoris habes.


Ex medio summo grates age corde Parenti,

Et meritae Iesum laudis honore cole,


Qui uoluit primum te per Brasillica regna

Propagatorem nominis esse sui


Primus inhumanas domuisti uindice gentes

Marte, iugo subdunt iam sua colla tuo.


Te cogente feros Brasillica pectora mores

Liquere, et ritus dedidicere suos.


Macte noua uirtute senex, scelera impia pelle,

Barbaraque aeterno subice regna Deo.


Te manet aethereus thalamus, te lucida Olympi

Templa serenati, maxime Mende, uocant,


Cuius inhumanis laudari nomen in oris

Efficis, extollet nomen ad astra tuum.


Aeternamque tibi diuina laude coronam

Reddet, et aetherei sceptra superba poli


Dumque per australes Christi celebrabitur oras

Nomen, et aeterni lexque fidesque Dei,


Qui tibi succedent insignes fascibus ibunt

Indeclinato per tua facta pede.


Viue igitur felix Brasillica regna gubernans,

Quamque aliiX teneant postmodo, pande uiam


Christus ut australi Stygium regione Tyrannum

Pellat, et imperium uindicet ipse suumXI.



TRADUÇÃO


Jesus

Elegia solene enviada ao Excelentíssimo Mem de Sá, herói de singular fé e piedade, Governador-Geral da Índia do hemisfério sul, ou brasílica, estimadíssimo.


Eis que tu percebes quão grande obra a virtude

Divina de Deus trovejante executou, ó Governador-Geral.


Já o feroz BrasilXII depôs seu orgulho entumescido,

E caiu abatido por tuas armas.


O Brasil que antes gerava funestas guerras em horrendo

Furor, ama as dádivas da paz salutífera,


O Brasil que antes vagava recôndito em selvas sombrias,

Já se regozija em aproximar-se das moradas sagradas,


O Brasil que roía os corpos dos homens com mandíbulas raivosasXIII,

Já alimenta seus corações com o santo pão,


O Brasil que sugava o sangue humano com selvagem goela,

Já bebe os rios divinos com a goela ávida.


Certamente, o poder divino somou forças às tuas

Armas, e superou os recursos inimigos.


Tu percebes que as fortalezas erguidas nos elevados penhascos

Não tiveram vigor na natureza própria do lugarXIV,


Embora, pois, as muralhas superassem as forças humanas,

Muralhas que ergueu o exército francês no topo do rochedo elevado,


Todavia, Deus que harmoniza os céus que sustentam os astros,

Com Sua força divina, e por Sua vontade os faz avançar e recuar,


Abandonou a fortaleza munificada nos horrendos rochedos,

E deu as moradas soberbas a ti, vitorioso,


Tu sabes que as velozes flechas não te feriram em tuas andanças,

Nem as balas de chumbo que o fogo potente vomita,


Nem os globos que a vasta máquina de guerra regurgita

Acelerados, através do ar, com terrível estrondo.


Como te faltassem as forças de um exército humano,

E tua armada fosse rompida por muitas mortes,


E não houvesse mais pólvora à disposição, esta que fornece o alimento

À chama, de onde o fogo voraz absorve sua cólera,

Jesus observou-te, comiserado, do alto do Céu,

E Ele mesmo forneceu auxílio de Sua mão,


Pôs em fuga os ferozes inimigos, incutido o terror,

Ele que foi atraído por tuas preces às tuas súplicas.


Já podes encerrar novas satifações no meio do teu coração,

Dispõe-se a oportunidade máxima à nova alegria,


Já agora comemorarás o louvor deste iminente triunfo,

Esta vitória engendrou um nome nobre para ti.


Rende louvor a Deus, Ele que rompeu, com Suas próprias forças,

As muralhas altas e os inimigos por Sua invicta mão,


Com efeito, é próprio d`Ele mesmo sobrepujar os tiranos selvagens,

Precipitar ao abismo os maus, sobrelevar os bons ao céu.


Aspira tu aos louvores, que tem em abundância o palácio do Céu,

Se o amor da glória teu coração toca,


Pois, subitamente, a mentirosa glória do mundo presente

Perece, e foge com excessiva rapidez,


Como naturalmente a água se esvanece através das fendas

Do vaso rompido, e não o deixa ficar cheio de si,


Assim a honra, que escapa, desaparece e se esvanece,

Ela que se afasta deixa-se levar por entre as mão.


Se estiveres livre, reflitas também silencioso no fundo de seu

Coração sobre os fortes feitos dos magnânimos comandantes,


Descobrirás quantos triunfos a sombria morte encobre,

Sob as fétidas águas do rio Flegetonte no Tártaro,


Certamente, porque muitos soberbos não atribuíram sua glória

A Deus eterno, cuja virtude cria todas as coisas,


Colheram glórias inconsistentes em exíguo tempo,

Eles que se ocupavam excessivamente da própria glória.


Se és sábio, busca de Nosso Senhor as dádivas da verdadeira honra,

Que ela vem, de Nosso Senhor a glória verdadeira vem.


Se és sábio, rejeita as mentiras do mundo instável,

Para que ele não te ate com suas correntes para os pés,


Aquele mundo alicia com trapaças, mente com face honesta,

Tendo oferecido as dádivas da vida, reprime com a morte,


Encobre-nos, sobrecarregando-nos com riquezas e honrarias, e não

Permite que sustentemos a cabeça erguida para os elevados astros.


Depois que superastes as árduas muralhas da grande torreXV,

E começou a brilhar a ilustre glória do teu triunfo,


Que a soberba não te capture em insídias, que não encubra o vencedor

E o vencido, há pouco sob seu domínio.


Ouve, então, quais palavras o verdadeiro Mestre, Jesus,

Proferiu por sua boca sem perfídia:


“Se queres perfeito ascender ao céu, vá,

Vende tudo que tens e oferta aos pobres.”


Certamente, porque Ele mesmo voa longe percorrendo seu caminho

Como um gigante, não se detendo em seu percurso,


Para que tu vás também em acelerado caminho, livre do peso que urge,

Ao seguir as pegadas sagradas.


Se te retardar a glória impostora com riquezas,

Jesus, fugindo de teus olhos, desaparecerá.


Certamente, uma honra inconsistente com muito trabalho compra

O abismo do Estige, desprezado, o pobre conquista com pouco o céu.


Logo, se desejas vencer o mundo inflado em orgulho por justa

Guerra, restitui a Cristo qualquer honra que tenhas,


Agradece do fundo do coração ao Pai,

E cultua Jesus pela honra da glória merecida,


Ele que desejou seres tu o propagador

De Seu nome através dos domínios brasileiros.


Tu, assinalado, domaste os povos desumanos pela guerra

Defensiva, já eles submetem seus pescoços ao teu jugo.


Reunindo-os tu, os corações brasileiros dissolveram os selvagens

Costumes, e desaprenderam seus rituais.


Firma-te com nova força, ó ancião, expulsa os crimes sem piedade,

E submete os reinos selvagens a Deus eterno.


Está reservado a ti o tálamo celeste, ó máximo Mem, convocam-te

Os iluminados templos do Olimpo sereno.


Aquele cujo nome fazes ser louvado nos territórios desumanos

Elevará teu nome aos astros;


Ofertar-te-á tanto a coroa eterna com a glória divina,

Quanto os cetros gloriosos do pólo celeste.


E enquanto for celebrado o nome de Cristo pelos territórios

Do hemisfério sul, tanto a Lei, quanto a Fé a Deus eterno,


Os que te sucederem, insignes pelo poder do cargo, seguirão

Com o pé firme pelo caminho de teus feitos.


Vive, então, tu que governas feliz os domínios do Brasil,

Abre tu o caminho, para que depois outros o tenham,


Para Cristo expulsar da região austral o tirano do Estige,

E Ele mesmo reinvidicar o Seu Império.



CONCLUSÃO


Podemos notar que a Epistola Nuncupatoria, poema elegíaco traduzido acima, que é a abertura da epopeia De Gestis Mendi de Saa, é uma peça de grande valor estético, que sintetiza este grande poema épico todo ele escrito em latim, cuja emulação segue a estética da Eneida de Vergílio. Encontramos no texto acima traduzido uma referência fundamental ao primeiro triênio de mandato oficial de Mem de Sá como Governador-Geral do Brasil. O feito mais notável e recente narrado, neste passo, por Anchieta, foi a tomada do Forte Coligny, que se situava na Baía de Guanabara, na Ilha de Villegagnon, a sede da tentativa francesa de colonização do Brasil, no século XVI, denominada França Antártica, tema de nossa pesquisa de Doutorado.

A inserção da Cultura Clássica no Brasil quinhentista não se deu somente pela produção de uma Literatura Novilatina brasileira, muito menos caracterizou-se pelo confronto com a Cultura Cristã, refutando este argumento apresenta-se-nos o texto de Anchieta. Serviu a Cultura Clássica aos primeiros colonizadores do Brasil como um instrumento civilizatório, que não devemos julgar com uma perspectiva meramente maniqueísta, entre o bem e o mal. Devemos antes perceber, através da mediação da Cultura Clássica, como se processou o processo de transfiguração étnica que originou o Brasil, o sincretismo entre os povos do Nouus Mundus, o aborígene, e os europeus do Vetus Mundus, buscando resgatar o significado de como a mentalidade de então compreendia a antropofagia, a escravidão e a própria civilização, e como dessas ideias surgiram a civilização brasileira.

A obra de José de Anchieta certamente resguarda muitos desses significados, alguns ainda remanescentes no Brasil, outros já perdidos ou ainda não interpretados. Através da leitura e análise dos significados contidos nestes textos e outros textos do período originário da nação, podemos entender melhor quais projetos guiaram a formação do Brasil como nação ocidental.



BIBLIOGRAFIA


ANCHIETA, S. I., José de.  De Gestis Mendi de Saa. São Paulo: Loyola, 1970.


__________. De Gestis Mendi de Saa. Excellentissimo, singularisque fidei ac pietatis Viro Mendo de Saa, australis, seu Brasilicae Indiae Praesidi praestantissimo. Conimbricae. Apud Ioannem Aluarum Typographum regium. MDLXIII. Ed. fac-similar da editio 1563. Rio de Janeiro: Ed. Biblioteca Nacional, 1997.


CALMON, Pedro. História do Brasil. Século XVI. Rio de Janeiro: José Olympio, 1963,

v. 1.


CARDOSO, Jerônimo. Dictionarium Latino Lusitanicum, et uice uersa Lusitanico Latinum cum adagiorum fere omnium iuxta. Olyssipone: Excussit Antonius Aluarus Typographus, Anno 1601.


HARVEY, Paul. Dicionário Oxford de Literatura Clássica – grega e latina. Trad. Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.


LEITE, Serafim. Cartas do Brasil e mais escritos do Pe. Manuel da Nóbrega (Opera omnia). Coimbra: Por ordem da Universidade, 1955.


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MANACORDA, Mario Alighiero. História da educação. Tradução de Gaetano Lo Monaco. São Paulo: Cortez, 2006.


RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. São Paulo: Cia das Letras, 2002.

TANNUS, Carlos Antônio Kalil. Um poeta latino do séc. XVI: Antônio de Cabedo. Tese de doutoramento em Língua e literatura latina apresentada à coordenação do Curso de Pós-Graduação da Faculdade de Letras da UFRJ. Rio de Janeiro: 1988, 238 fls., mimeo.


________. Um olhar sobre a literatura novilatina em Portugal. In: Calíope, Presença Clássica. Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas, número 16, dezembro de 2007, Rio de Janeiro: 7letras, p.13-31.




I. CALMON, 1963, p. 270: “O terceiro Governador-Geral não foi homem de guerra, como Tomé de Souza, ou de Paço, como D. Duarte da Costa, mas de fôro, o Desembargador dos Agravos Doutor Mem de Sá, fidalgo da Casa e Conselho d’El-Rei,e irmão de Francisco de Sá de Miranda, o renovador da poesia portuguesa, que disse temer o ... que só sonha Índia e Brasil, / Té que cada um de lá torne dourado.

II. Constitui-se o dístico elegíaco de um verso hexâmetro dactílico seguido de um pentâmetro também dactílico. O primeiro poeta a servir-se deste ritmo, até onde se sabe, foi Calinos de Éfesos, que viveu no século VII a. C., no período alexandrino, Calímacos foi um dos maiores espoentes do gênero elegíaco e uma das influências posteriores a Ovídio, um dos maiores elegíacos do Império romano, cf. HARVEY, 1998, , p. 185, passim . Por fim, a obra de Ovídio influenciou a poética novilatina renascentista de Anchieta no Brasil quinhentista, como podemos notar na Epistola e no De Beata Virgine Dei Matre Maria..

III. TANNUS, 2007, p. 20: “Com André de Gouveia, falecido aliás pouco depois, em 9 de junho de 1548, vieram mestres franceses e portugueses como Elias Vinet, Nicolau Grouchy, Guilherme de Guérente, Antonio Mendes de Carvalho, João da Costa, futuro principal, Jorge Buchanan e Diogo de Teive, acima referidos e finalmente, dois que já se achavam em Portugal, Marcial de Gouveia e Mestre Eusébio, além de Arnaldo Fabrício, que proferira a oração inaugural em 21 de fevereiro de 1548, conhecida por De liberalium artium studio, editada em Coimbra no mesmo ano”.

IV. MANACORDA, 2006, p. 202: “No fim do século (1586-99) apareceu a Ratio Studiorum, que regulamentou rigorosamente todo o sistema escolástico jesuítico: a organização em classes, os horários, os programas e a disciplina. Eram previstos seis anos de studia inferiora, divididos em cinco cursos (três de gramática, um de humanidades ou poesia, um de retórica); um triênio de studia superiora de filosofia (lógia, física, ética), um ano de metafísica, matemática superior, psicologia e fisiologia. Após uma repetitio generalis e um período de prática de magistério, passava-se ao estudo de teologia, que durava quatro anos”. Há uma carta de Lisboa, datada de 15 de março de 1568, ordenando a fundação, por D. Sebastião, do Colégio da Companhia de Jesus no Rio de Janeiro, na Capitania de São Vicente, cf. SERRÃO, 2008, p. 231-234.

V. LEITE, 2004, v. 1-3, p. 29: “O Ratio de 1599, já de experiência feito, divide o curso de Letras Humanas em três grandes seções, Retórica, Humanidades e Gramática, subdividindo esta última em Suprema, Média e Ínfima, primeiro estádio de todos os estudos na Companhia. Quando se lê nos documentos que havia duas classes de latim,isto significa, em todo o século XVI, no Brasil, não alguma das subdivisões da Gramática, mas duas daquelas grandes seções: Gramática e Humanidades.
A primeira classe de latim, no Colégio da Bahia, ensinou-a o Irmão Cláudio Blasques, em 1553, pouco depois de chegar de Portugal, na expedição em que vieram, entre outros, Grã e Anchieta. A Gramática que depois se adotou, no Brasil, como em todo o mundo, foi a do Padre Manuel Álvares, português, natural da Ilha da Madeira.”

VI. RIBEIRO, 2003, p. 56-63. A organização de missões jesuíticas com indígenas, missões estas que tinham por referência uma reformulação do Nouus Mundus como uma Cidade Cristã, baseando-se nos ideais da Utopia de Morus, chocou-se com o pragmatismo do colono que lutava por escravizar o indígena. A coexistência pacífica entre jesuítas e colonizadores portugueses só foi patente no século XVI, surgindo dissidências mais adiante, o que culminaria com a expulsão dos jesuítas do Brasil em 1759.

VII. Cf. ANCHIETA, 1970, p. 92, v. 171-13, a descrição de Mem de Sá no De Gestis Mendi de Saa refere-se a: aniumus ...quem plurima rerum / Cognitio longusque usus doctaeque Mineruae / Expoliunt artes (seu espírito que um vasto conhecimento das coisas, uma profunda experiência e as artes da sábia Minerva polem). Mem de Sá era iniciado nas artes da sábia Minerva, nas palavras de Anchieta. Na época da Renascença, isto significava o conhecimento das Letras Humanas, i.e., das Letras Clássicas .

VIII. Título do manuscrito de Algorta.

IX. Dedicatória da Edição de 1563.

X. Alii é leitura da edição de 1563.

XI. Este dístico foi omitido na edição de 1563 e só se encontra no manuscrito de Algorta.

XII. O Brasil, a que se refere Anchieta, compunha-se de algumas cidades e vilas com cerca de 60.000 habitantes ao todo, destacando-se as cidades de Salvador, Recife/Olinda e as vilas de São Paulo e Rio de Janeiro, já a população indígena autóctone e autônoma compunha-se de cerca de 5.000.000 de habitantes no território do atual Brasil (RIBEIRO, 2003, p.151 e 194).

XIII. A antropofagia era hábito disseminado na população autóctone.

XIV. Refere-se este trecho ao Forte Coligny, núcleo da invasão francesa no Rio de Janeiro, no século XVI, o Forte Coligny foi derrotado em 1560 por Mem de Sá.

XV. As torres do Forte Coligny na Baía de Guanabara, núcleo central da França Antártica, expugnada por Mem de Sá.


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Doc. N° 2553


©

Anchieta, leitor de Ovídio


Professor Doutor Leonardo Ferreira Kaltner, UFF

 

Resumo


Trata o presente artigo da Epistola Nuncupatoria do De Gestis Mendi de Saa, poema elegíaco novilatino escrito por José de Anchieta (1534-1597) no Brasil do século XVI, na época da Renascença. O estabelecimento do texto da Epistola tem por base a edição de 1563 do De Gestis Mendi de Saa, sendo seguido por uma tradução e análise, não só pelo contexto em que o poema se insere, mas também por uma leitura de seu estilo poético, buscando resgatar o caráter humanístico do poema e seu vínculo com a Cultura Clássica, as Litterae Humaniores da Renascença.


Palavras-chave: Humanismo renascentista, Brasil quinhentista, De Gestis Mendi de Saa, Literatura Novilatina, José de Anchieta.

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