Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

_________________________________________________________________________________________________________________________________


Índice da edição     Índice geral     Portal Brasil-Europa     Academia     Contato     Convite     Impressum     Editor     Estatística     Atualidades

_________________________________________________________________________________________________________________________________

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 122/37 (2009:6)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2009 by ISMPS e.V. Edição reconfigurada © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2534


 


Resenhas


Pellegrini Filho, Américo. Folclore Escrito e Urbano. Taubaté: Cabral Editora e Livraria Universitária, 2007. 280 p.; 148 x 210 mm. ISBN 978-85-7824-002-8

Esta publicação apresenta um resumo da tese de doutoramento do autor, defendida em 1987 na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. O objetivo do trabalho foi o de demonstrar a existência de folclore escrito e urbano, uma vez que continua a ser visto por muitos como fenômeno das zonas rurais e transmitido exclusivamente por tradição oral. 

O autor coletou, para a sua demonstração, 3920 enunciados populares.O espectro temático é amplo, abordando assuntos que vão da morte, ao amor e à religiosidade. Nas suas palavras de apresentação, Leila Gasperazzo Ignatius Grassi, Diretora Presidente do Centro de Estudos da Cultura Popular (CECP), salienta que dos materiais, coletados entre 1970 e 1986, destacam-se no texto "as diversas formas de mídia utilizadas pelo comunicador popular para externar (...)  sua maneira de pensar e ser no mundo".

O trabalho é dividido em duas partes, dedicadas respectivamente à Teoria e à Análise, a primeira com dois capítulos (Problemas Teóricos; O Não Escrito e o Escrito), a segunda com nove (Epitáfios Populares; Fórmulas de Fiado; Frases de Veículos; Grafitos de Rua; Grafitos em Hotéis; Grafitos em papel-moeda; Inscrições religiosas; Latrinália; Mensagens em Jornais). A obra inclui, em apêndices, matérias jornalísticas sobre grafitos em vias públicas; iniciativas de agentes da cultura erudita relativa a grafitos e jornais pesquisados.

Na Introdução, o autor menciona que, no seu empenho em conhecer a cultura brasileira, passou a dedicar-se à pesquisa do folclore ou cultura popular. Constatou, porém, a existência de dificuldades e desacordos quanto à definição do termo. Um dos pontos de vista conflitantes diz respeito ao meio de transmissão do fenômeno folclórico, se apenas por via da oralidade e da imitação, ou se também por via escrita. Outra questão diz respeito à possibilidade ou não de haver folclore com autor conhecido, ou seja, a do anonimato como critério determinador.

Para esclarecer essas questões, o autor passou a coletar expressões populares escritas, elaborando, em 1968, um trabalho com o registro de 2112 dísticos de caminhão, pesquisa essa merecedora de menção honrosa no 23° Concurso Mário de Andrade de Monografias sobre Folclore da Discoteca Pública Municipal de São Paulo. A bibliografia pertinente ao assunto é bastante reduzida, citando o autor um estudo de Marcos Vinícios Vilaça (Em torno da sociologia do caminhão, Recife 1961) e outro de Mauro de Almeida (Filosofia dos pára-choques, 2a. ed., Rio de Janeiro 1974). O interesse pelas inscrições em veículos de carga manifestou-se em artigos vários, reportagens e monografias, levando a tentativas de classificação. Outros assuntos de interesse para a pesquisa tratados por outros autores foram o dos grafitos de rua e o de sanitários públicos. Entre estes, o autor destaca o estudo de Gustavo Barbosa (Grafitos de banheiro, São Paulo 1984).

Particular menção é dada a Luiz Beltrão, autor de duas obras pioneiras (Comunicação e folclore, São Paulo 1971; Folkcomunição - a comunidade dos marginalizados, São Paulo 1980). Esse autor, tratando de formas de comunicação de grupos sociais marginalizados, realizou estudos de grande abrangência no sentido diacrônico e sincrônico, considerando diversas épocas, desde a pré-cabralina ao presente, e diversas esferas culturais, de festas tradicionais religiosas a assuntos cívicos, incluindo programas radiofônicos e de televisão. Segundo Pellegrini Filho, que considera criticamente a proposta teórica de Beltrão, esta poderia talvez ser enquadrada no conceito de folklife, sugerido por D. Yoder, ou no conceito mais amplo de cultura popular.

O autor, defrontando-se com os problemas metodológicos da área disciplinar do Folclore, procurou associar a sua preocupação pelo seu estudo com o seu interesse pelo estudo da comunicação social. Procurou efetuar uma análise comunicacional da documentação levantada. Baseou-se nessa análise em obras de D. K. Berlo, J. E. Diaz Bordenave, S. I. Hayakawa, G. Maletzke, C. Cherry, J. Marques de Melo e outros. No seu estudo, evitou dar ênfase a algumas formas de expressão já bastante consideradas, como é o caso da literatura de cordel, de pasquins e de mensagens contidas em papéis conhecidos como "pão-por-Deus". Procurou ordenar os registros, agrupando-os em categorias. Na análise de cada grupo de grafitos e na análise final, a sua preocupação concentrou-se no enfoque comunicacional. Na Análise, inicia por características gerais (aspectos formais do enunciado, existência ou não de complementos icônicos, influência erudita de origem, linguagem, função), passando a seguir ao veículo, ao emissor, ao receptor e à mensagem. Dessas análises, tira então conclusões parciais em cada capítulo.

As teses colocadas são: 1) existe folclore escrito; 2) existe folclore especificamente urbano; 3) existem manifestações folclóricas com autoria declarada; 4) há fatos folclóricos atuais e "progressistas"; 5) folclore não faz parte exclusivamente do universo cultural das chamadas classes baixas, e, 6) frequentemente, influências da cultura erudita e da cultura de massa são encontradas no folclore. (pág. 16)

Dos vários capítulos do livro, uma atenção especial deve ser aqui dada áquele que trata de grafitos de rua. O autor inicia o seu texto salientando o grande número de grafitos coletados, considerando-se que a prática cresceu de forma significativa desde a década de 1970. Entretanto, trata-se de uma forma de expressão muito antiga, e uma referência histórica diz respeito a inscrições feitas por cidadãos romanos numa estátua, contendo críticas sociais. Apesar de sua frequência e de marcar a imagem de muitas cidades brasileiras, o autor não encontrou obras de análise de grafitos em vias públicas na bibliografia brasileira. O assunto, porém, motivou reportagens, cartas de leitores, crônicas e reclamações de todo o tipo. Em geral considera-se mais os grafitos cujos emissores manifestam preocupação estética, que poderiam mais ser enquadrados na esfera da cultura erudita, ou seja, artistas de "performance instantânea". Tais grafitos não são considerados pelo autor.

Haveria três tipos de escritos de rua: grafismos como arte, frases da cultura erudita com sentido publicitário, grafitos folclóricos. Na sua análise, o autor registra que no Rio de Janeiro e em cidades próximas se fixou uma característica diferencial, havendo uma maior quantidade de palavras soltas que mais parecem rabiscos descontraídos, dificultando sua decodificação. Certas expressões talvez independam de mensagem, podendo ser identificação de gangues urbanas. Quanto à função, menciona que os grafitos de rua funcionam como modo de auto-afirmação, permitindo a expressão em público daquilo que pode ser do âmbio grupal. A população urbana teria descoberto uma mídia alternativa para comunicar conteúdos do seu dia-a-dia sem deixar de aproveitar a oportunidade para as constantes tiradas humorísticas. A incidência dos grafitos é tão grande que se incorporam à paisagem urbana.

Nas suas conclusões, o autor destaca primeiramente a improvisação da mídia utilizada. Salienta a sua opinião de que o servir-se de paredes alheias, de papel-moeda, de veículos, de lápides e outros suportes para a comunicação não constitui uso de "mídias alternativas", mas sim expressão de inventividade, dando aos objetos e equipamentos outra função àquela para a qual foram criados. Mesmo um meio de comunicação de massa, o jornal, é utilizado como recurso de comunicação pessoal e grupal, dando como exemplo ex-votos e mensagens em jornais.

A freqüencia de determinados assuntos revelam sentimentos, idéias dos emissores, não somente como casos pessoais, mas indicando tendências e atitudes da coletividade. Mesmo que grafitos em vias públicas se resumam a um só nome, esse fato já muito significa, pois representa um símbolo individual e uma mensagem. A transgressão de norma social adquire um siognificado, e aquele que escreve e desenha em paredes se assume e se impõe.

O autor lembra que os grafitos populares são produções que não implicam em mercado, embora suponha receptores. O emissor, quando escreve as suas mensagens, situa-se longe dos preceitos de marketing e da produção em larga escala. (pág. 252) "Criatividade, espontaneidade, aceitação coletiva, funcionalidade são aspectos ligados ao valor de uso, implícito em tantas manifestações folclóricas (e diferindo-as do sistema da indústria cultural e da cultura de massa, em que prevalece o valor da troca para bens produzidos por indivíduos que não os consomem)." (pág. 253)

Provas da recepção das mensagens em vias improvisadas são para êle as réplicas em grafitos em sanitários, a repetição de escritos consagrados, formulações políticas e expressões referentes a mulheres, assim como máximas da filosofia popular. O emissor dirige-se a uma ampla coletividade. A espontaneidade intensifica a forma de comunicação, facilitando a sua aceitação coletiva. Admitindo a existência de um processo imitativo, o autor refuta a existência de um líder de opinião. O folclore surge ao mesmo tempo como conservador e inovador, contrariando a suposição de que as manifestações folclóricas são sempre conservadoras. (pág. 256) Essas manifestações ocorrem em situação dialética com manifestações da cultura erudita e da cultura de massa. Nesse encontro de tipos de cultura se encontram potencialidades de ajustamento mútuo.

O autor considera como indispensável acentuar a constância do "animus jocandi", uma "pré-disposição de tratar os mais variados assuntos com toques de (...) humorismo" (pág. 259)

O autor conclui assim que existe folclore escrito, não apenas como exceção, ou referente à Literatura de Cordel, mas sim como formas escritas que devem ser consideradas de acordo com sua mídia (págs. 259-260). Conclui também que existe folclore especificamente urbano, não como resultado de migração rura-urbana, não como transporte de traços culturais de habitantes de zona rural para as cidades, mas como manifestações nascidas e vivenciadas em zonas urbanas, por habitantes nascidos nelas ou transferidos para elas. (pág. 260).

Também conclui que existem manifestações folclóricas com autoria declarada, contrariando assim o critério do anonimado como fator determinante do fato folclórico. Folclore/cultura popular não representaria um repositório de antiguidades, de coisas inservíveis que se conservam nos usos e costumes de coletividades como anacronismos ou sobrevivências. Se muitas manifestações tradicionais populares denotam conservadorismo, há sempre um espírito renovador, atualizador. Essas mudanças constantes são feitas tendo por referência uma linha de continuidade que seria a tradição. Seria errôneo considerar que o folclore seja próprio de determinados segmentos populacionais; existiem manifestações folclóricas que permeiam vários estratos. O folclore não faz parte exclusivamente do universo sóciocultural das chamadas classes baixas. Na comunicação folclórica coexistem mensagens dos mais diferentes conteúdos e de diferentes origens. (pág. 262). Há frequentemente influências da cultura erudita e da cultura de massa no folclore, ou seja coexistência e interação de tipos de cultura. (pág. 263)

O autor, no seu trabalho, oferece assim não apenas um vasto registro de expressões coletadas, documentando uma esfera da realidade cultural da atualidade brasileira. A sua intenção é sobretudo teórica, procurando sistematizar esse material, classificando-o segundo critérios refletidos, apesar das dificuldades decorrentes de sua heterogeneidade. Para o seu exame, procede interdisciplinarmente, utilizando-se de perspectivas e aportes analíticos da Comunicação Social e de enfoques e questionamentos dos Estudos do Folclore. As teses que coloca referem-se a questões de determinação e delimitação do objeto dessa última área disciplinar. Procura demonstrar que certos critérios determinadores desse objeto de estudo não resistem a exames conduzidos com maior atenção, entre êles aqueles definidos por oposições tais como rural/urbano, não-escrito/escrito, anônimo/de autor. Para isso, porém, foi obrigado a manter uma outra determinação e delimitação do objeto de estudo dessa área disciplinar, ou seja, o da divisão do complexo cultural em esferas, o de uma cultura denominada de erudita, o de uma cultura popular de massas e de uma cultura folclórica ou popular, consistuindo esta última o objeto da disciplina, a sua própria definição. Por maiores que sejam os esforços diferenciadores do autor, as dificuldades provenientes de determinações dos Estudos Culturais segundo tais categorizações levam a problemas praticamente insolúveis de distinções de esferas, de influências mútuas e de interpretação. A obra, assim, na sua refletividade e na sua abertura a questões da realidade atual, documenta não apenas de forma definitiva a inadequabilidade dos critérios apontados com justa razão pelo autor, mas sim também a crise teórica em que se encontra essa área dos estudos culturais empíricos.

A.A.Bispo