Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 122/8 (2009:6)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2009 by ISMPS e.V. Edição reconfigurada © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2505


 


Barroco Cossaco e Barroco Mineiro
Exercícios interculturais e interreligiosos de leitura e interpretação
Santo André de Kiev (Andrejewskaja zerkow)


Kiev. Foto A.A.Bispo 2009. Copyright
Este texto apresenta uma súmula de ciclo de estudos dedicados ao Leste Europeu nas suas relações com os Estudos Culturais Euro-Brasileiros desenvolvidos em Kiev, Ucrânia, em 2009. Odessa já fora alvo de visita de estudos anteriores (2003). Foi resultado de sessão dedicada às relações Ucrânia-Brasil do Colóquio Internacional pelos 450 anos de São Paulo, levado a efeito pela A.B.E. e pelo Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa através do seu centro no Brasil (IBEM) em cooperações com órgãos oficiais brasileiros, instituições de pesquisa, literatura e música e com a Universidade de Bonn, em 2004.


O ciclo deu prosseguimento a eventos anteriormente realizados em diferentes países do Leste da Europa. Esses estudos tiveram o seu início com uma primeira visita à Berlim à época da divisão da Alemanha entre República Federal da Alemanha e República Democrática Alemã, em 1975, seguindo-se viagem de estudos a esta última nos anos oitenta. Dentre os países considerados do Leste, destacaram-se no decorrer dos anos a Rússia, a Polônia, a Hungria, a então Tchecoslováquia e os países Bálticos. No corrente ciclo, tratou-se sobretudo de observar as novas condições que se abrem com as mudanças políticas do Leste para os estudos referenciados pelo Brasil. A orientação teórico-cultural insere-se na tradição da sociedade dedicada à renovação dos estudos culturais (Nova Difusão 1968), a atual Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais - Academia Brasil-Europa.





              

Kiev. Foto A.A.Bispo 2009. Copyright

Imagens de Santo André, Kiev.
Trabalhos da Academia Brasil-Europa. Fotos A.A.Bispo 2009

 
Significado do estudo do Barroco para os estudos euro-brasileiros

O estudo do Barroco no Brasil representa uma das áreas da pesquisa e dos conhecimentos de maior significado dos estudos histórico-culturais em geral do país. Vem merecendo há décadas uma especial atenção em determinadas esferas disciplinares, sobretudo no âmbito da música, da arquitetura e das artes plásticas. Em alguns casos, como no da música, tem até mesmo levado à constituição de círculos especializados de pesquisadores, músicos práticos e aficcionados em geral.

Sob determinados aspectos, poder-se-ia até mesmo dizer que o interesse pelo Barroco levou a um grau de desenvolvimento que empresta à época correspondente e a seu patrimônio uma importância maior do que o de outros períodos históricos nos estudos da cultura e das artes do Brasil. A produção intelectual nessa área talvez seja até mesmo desproporcional na sua especialização e na diferenciação e profundidade das reflexões com relação àquela de outros contextos históricos. Essa valorização extraordinária do Barroco diz respeito sobretudo àquelas regiões do país que possuem maior herança arquitetônica, artística em geral e musical da época correspondente, cabendo aqui uma posição saliente a Minas Gerais.

Consideração da história das reflexões

A atenção e o fascínio pelo Barroco no Brasil possuem uma história própria e não podem ser compreendidos sem essa história. Sem o estudo do vir-a-ser e do desenvolvimento da pesquisa e das reflexões nas várias áreas disciplinares e no seu todo não se pode considerar adequadamente os conceitos empregados, as diferentes aproximações, as correntes de pensamento, os procedimentos e as orientações quanto a análises e interpretações. Não apenas o Barroco como objeto de estudo, mas o próprio estudo do Barroco necessita ser considerado sob visões interdisciplinares e globais, constituindo tarefa de particular relevância para o estudo das relações culturais entre a Europa e o Brasil.

Estudo do Barroco em relações euro-brasileiras

A Academia Brasil-Europa é predestinada, pela própria tradição a que se vincula a emprestar particular atenção às questões teóricas que se relacionam com o Barroco nas suas dimensões globais. Personalidades de relevância particular da história da pesquisa do Barroco no Brasil, entre elas sobretudo Francisco Curt Lange (1903-1997), influenciaram fundamentalmente os trabalhos da instituição nas décadas de 70, 80 e 90 do século XX e determinaram a tarefa à organização de dar prosseguimento às reflexões e ao progresso dos conhecimentos.

Tal intento implica também em constante reexame de posições e tendências, de revisão de pressupostos e práticas. Segundo o seu escopo, as atenções são dirigidas sobretudo a questões relacionados com processos, no caso com a processualidade cultural do Barroco, ou melhor, de sua inserção em processos interculturais em contextos globais, em particular euro-brasileiros. Esse escopo não é resultado de desenvolvimentos recentes.

Processos difusivos, interdisciplinaridade e o Barroco

O exame de processos difusivos e das consequências para a prática da pesquisa, da interpretação de seus resultados e da prática constituiu expressamente o objetivo da sociedade Nova Difusão, entidade registrada em São Paulo, em 1968, predecessora da atual organização Brasil-Europa. Assim, já em 1969, essa entidade realizou um festival de Música Barroca, em São Paulo, sob o patrocínio do Departamento de Cultura da municipalidade e em colaboração da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Esse festival foi acompanhado por reflexões que procuraram não apenas integrar a pesquisa do Barroco brasileiro - inclusive em regiões até então pouco consideradas ou periféricas -, com o desenvolvimento do Barroco europeu, como também trazer à consciência a necessidade a de focalizá-lo sob o aspecto da análise de processos difusivos mais amplos.

Esses intuitos constituiram escopo do centro de pesquisas em musicologia fundado estatutariamente como departamento da organização e que levou à instituição do centro de pesquisas em musicologia - o primeiro nas suas características, antecessor do atual ISMPS. O trabalho desse centro levou a pesquisas, a conferências e concertos de obras desconhecidas ou pouco divulgadas de todas as épocas do Brasil.

A razão desse trabalho intenso com pesquisadores culturais foi resultado do próprio escopo da instituição, ou seja, o de dirigir a atenção à necessidade de inserção das pesquisas das várias esferas disciplinares em processos mais amplos, o que exige não apenas a superação de fronteiras disciplinares, mas sim também o de divisões do próprio objeto das pesquisas, no caso das esferas erudita, folclórica e popular (Veja O Estado de São Paulo XVII/797, Suplemento Literário, 5 de novembro de 1972). Essa orientação à processualidade de fenômenos culturais levou também a novas perspectivas relativas à prática de execução e de interpretação, resultados que levaram à instituição da primeira disciplina dedicada específicamente à Prática de Execução em curso superior no Brasil e à realização de cursos e concertos junto à nova sede do centro de música brasileira, agora sob a égide da Faculdade de Música do Instituto Musical de São Paulo, em 1973.

Relações com os estudos do Colonialismo

A atenção dirigida à inserção do Barroco em processos históricos mais amplos relacionou-se naturalmente desde o início com as reflexões voltadas aos estudos coloniais em geral. Também aqui procurou-se superar concepções marcadas por noções de épocas da história política (Brasil-Colonia), ou seja, como períodos encerrados, e, correspondentemente, por noções de épocas estilísticas com designações questionáveis ("Música Colonial"), dirigindo a atenção à questão do colonialismo na sua processualidade.

Essa reorientação das atenções a processos coloniais possibilitou também a vinculação das reflexões àquelas voltadas à imigração. Essa compreensão ampla do Barroco e do Colonialismo, transepocal e transnacional, superadora de limites disciplinares e de categorizações do objeto, teve a sua expressão na jornada destinada especificamente a esse complexo de questões no Simpósio Internacional de Música Sacra e Cultura Brasileira, em 1981, e no contexto do qual se fundou a Sociedade Brasileira de Musicologia. Em colaboração com o instituto de pesquisas da organização pontifícia de música sacra, procurou-se, nesse evento, trazer à consciência que esse complexo de processos difusivos, receptivos e atuantes nas suas metamorfoses, fenômeno estudado pelas pesquisas e reflexões culturais, relacionava-se estreitamente com o processo de expansão do Cristianismo.

Relações com a história missionária

A própria história missionária, porém, não deve ser compreendida como via de direção única, mas como um desenvolvimento que é marcado por influências recíprocas, sendo que a experiência ganha na prática nos países de missão influenciaram o pensamento voltado à missiologia em Roma e em outros centros europeus de ordens religiosas. Assim, experiências ganhas e desenvolvimentos ocorridos em países extra-europeus repercutiram na própria Europa, sobretudo em época que o Catolicismo europeu se viu confrontado com a exigência da missão interna, da recatolização, ou seja, com desenvolvimentos da época da Contra-Reforma.

Reciprocidade de processos receptivos

Essa necessidade da consideração da reciprocidade de processos receptivos, e da consideração de questões da Antropologia cristã na Antropologia Cultural em geral foi salientada em simpósios da Comunidade Européia realizados em Bruxelas, em 1983/84.

Seria, portanto, por demais simplificante considerar as influências recebidas em período mais tardio do processo histórico relacionado com o Barroco, ou seja de meados do século XVIII, apenas sob a perspectiva da recepção de tendências estilísticas européias. A própria similaridade de expressões artísticas de regiões centro-européias inseridas em processos recatolizadores com aquelas do Brasil deve ser considerada sob o pano de fundo de um desenvolvimento missionário interno na Europa que havia sido influenciado pelas experiências ganhas em regiões extra-européias.

A questão que aqui se impõe é, portanto, o do estudo dos fundamentos teológico-culturais de um processo marcado pela dinâmica de influências recíprocas, e este foi um dos objetivos do Congresso Internacional dedicado aos Fundamentos da Cultura Musical no Brasil, realizado no Rio de Janeiro em 1992, pelo ano dos 500 anos do Descobrimento da América.

Mecanismos processuais e imagologia

Uma pesquisa de fundamentos ou de base, porém, que implica em contínua reflexão sobre a própria epistemologia e procedimentos, dedicando-se à análise de processos vinculados com a expansão do Cristianismo, vê-se confrontada com a necessidade de compreensão da linguagem simbólica das expressões, na sua estrutura e relações com o tempo histórico. A pesquisa não pode deixar de preocupar-se com a interpretação adequada do sentido dos sinais, o que exige a consideração de uma hermenêutica própria, inerente à ordenação imagológica. Essa problemática, tratada em publicações e diferentes eventos, em particular no âmbito de colóquio internacional dedicado a questões de Antropologia Simbólica, realizado no Brasil, em 1998, preparou o tratamento da temática que determinaria o congresso internacional de abertura dos trabalhos científico-culturais pelos 500 Anos do Brasil, em 1999: Música e Visões.

Vigências do Barroco no presente

O papel extraordinário que cabe ao Barroco compreendido na sua processualidade para os estudos brasileiros, euro-brasileiros e, devido às influências mútuas, também europeus, levou a que o primeiro evento de abertura do século XXI da Academia Brasil-Europa, no ano 2000, fosse dedicado ao tema "Problemaas e Perspectivas do Barroco no III Milênio".

Como a compreensão dinâmica do fênomeno e a superação de esferas da prática musical, difundidas nas épocas anteriores, haviam levado a diferentes tentativas de compreensão de desenvolvimentos da música popular brasileira a partir de características do Barroco histórico e, vice-versa, de desenvolvimentos da música artística a partir de práticas populares, com consequências amplas para a execução, interpretação e criação, pareceu ser uma exigência do tempo trazer à consciência a necessidade de reflexões mais profundas sobre a conveniência de manutenção de um processo que, vindo do passado, ainda mantém a sua vigência. Levantou-se a questão se seria o caso de proceder-se a reinterpretações e reorientações no sentido de torná-lo apto a enfrentar as necessidades do momento e do futuro, sobretudo aquelas relacionadas com o complexo Cultura e Natureza.

Questões em consequência à União Européia

Nesse debate, levantou-se necessariamente a questão dos vínculos do Barroco com a Catolicidade, salientados pela pesquisa em função da história da expansão do Cristianismo ocidental no mundo extra-europeu, da história missiológica nas suas reciprocidades e, sobretudo nos seus elos com a Contra-Reforma. Considerando-se, porém, a ampla diversificação confessional do Brasil na atualidade, e o adiantado processo secularizador no país e na Europa, pergunta-se como se poderia compreender - e justificar - que uma cultura musical estreitamente relacionada com questões de identidade continuasse a manter um processo em vigência vinculado, nas suas origens, assim como nos seus mecanismos e sentidos à latinidade católica?

Essa questão assume particular relevância considerando-se a ampliação da União Européia com a integração de países do Leste, onde não o Catolicismo, mas sim a Ortodoxia é predominante. Como se justificaria o Barroco em países primordialmente ortodoxos, se este for entendido como resultado da expansão cristã do Ocidente no passado, de suas repercussões na Europa e de seus elos com a Contra-Reforma? Qual seria a posição desses países do Leste após o fim da União Soviética relativamente ao patrimônio barroco do passado? Haveria um fascínio e entusiasmo comparável àquele constatado no Brasil, tentativas até mesmo de nele ver princípios que atuam no presente e que determinam o futuro de espressões arquitetônicas e artísticas em geral, mesmo em esferas e em expressões sem conotações religiosas?

Circunstâncias do Leste Europeu

Para o tratamento dessas questões realizou-se, em 2003, uma viagem de estudos a São Petersburgo, detinada a atualizar observações e reflexões encetadas à época soviética, em 1983. A constatação do valor reconhecido do patrimônio barroco e classicista do passado sob as novas circunstâncias políticas russas, manifestado na restauração de edifícios da época, tais como o Palácio de Inverno (Eremitage) e o Grande Palácio de Peterhof,  assim como no novo significado dado à Catedral de S. Pedro e S. Paulo, indicou a atualidade dos estudos do Barroco sob o pano de fundo da atual aproximação do mundo russo com o Ocidente, uma vez que S. Petersburgo revela mais do que qualquer cidade do Leste as relações com a Europa ocidental no passado.

Lembrando-se porém que o Barroco de São Petersburgo diferencia-se, nessa sua estreita vinculação com a Europa ocidental, daquele de Moscou e da Rússia Central (por ex. mosteiros Nowodewitschu e Donskoi). manifestando este muito mais evidentemente a interferência da tradição arquitetônica russa com o Barroco recebido através da Ucrânia, e considerando que o principal arquiteto de São Petersburgo, o italiano Bartolomeo Francesco Rastrelli (1700-1771) criou obras de excelência artística para Kiev, reconheceu-se que seria antes a Ucrânia o país mais adequado para o estudo intercultural do Barroco segundo os questionamentos desenvolvidos no âmbito dos estudos euro-brasileiros.

Ucrânia e o Barroco ucraniano

A posição intermediária da Ucrânia, atingindo na sua parte ocidental regiões da Europa Central, marcada esta pelo Barroco originado da Contra-Reforma e que teve um de seus ápices em cidades da atual República Tcheca, Eslováquia, Áustria, sul da Alemanha e sul da Polonia, também em regiões eslavas, explicaria um papel mediador da Ucrânia na transmissão de impulsos barroquizantes a regiões mais centrais da Rússia. Tratar-se-ia, nessa fase da passagem do século XVII a XVIII de elementos antes ornamentais e, se estruturais, sem maior significado sob o ponto de vista das concepções teológicas, tais como a da integração do campanário no próprio corpo da igreja, culminando o octógono do traçado centralizante. Essa recepção poderia ser explicada através da ação de famílias nobres que procuravam demonstrar a sua potência financeira e a sua atualidade com relação ao Ocidente, até mesmo sobrepujando-o. Essa hipótese pode ser justificada pelo fato de ser esse Barroco testemunhado por construções na propriedade da família Naryschkin, da qual procedeu Natalia Naryschkina, mãe de Pedro o Grande (1672-1725).

Barroco russo e Europa Ocidental

Enquanto, assim, esse caminho do processo difusivo passa pela Ucrânia como região intermediária à Europa Central, o Barroco de São Petersburgo indica uma outra via, que conduz diretamente a Paris, ou melhor, à atividade de artistas de origem italiana atuantes na França. Já não se trata, aqui, de um desenvolvimento resultante ou vinculado diretamente à ação contra-reformatória, sobretudo de Jesuítas, nas regiões centrais da Europa. Trata-se antes de um desenvolvimento estilístico já em fase avançada de sua ampliação à construção profana, de um processo de secularização da linguagem e da simbologia, empregado em palácios e edifícios representativos.

Um teocentrismo das concepções passara, nesse processo secularizador, a servir de veículo de expressão do absolutismo político. Se esse procedimento explicativo puder ser corroborado por pesquisas mais aprofundadas, ter-se-ia aqui um testemunho de que um edifício de concepções de fundamentação ontológica, que manifesta visualmente a transformação e configuração da matéria à unidade última, a-temporal e ontológica, contém, em si, o risco de, com a perda de seu significado religioso, servir à fundamentação de sistemas autoritários. Significativamente, a recepção do Barroco em São Petersburgo, onde se manifesta sobretudo em edifícios palaciais, ocorreu em época marcada por tendências absolutistas.

Barroco em Kiev

Kiev. Foto A.A.Bispo 2009. Copyright

Barroco na Catedral de Santa Sofia
Fotos A.A.Bispo 2009

 


Barroco no Mosteiro das Cavernas
Fotos A.A.Bispo 2009

 
Kiev possui um significativo patrimônio barroco, marcado sobretudo por expressões de reformas efetuadas em igrejas e antigos mosteiros, tais como o Mosteiro das Cavernas, aqui também nos afrescos da Catedral da Santíssima Trindade, assim como a Catedral de Santa Sofia e o Mosteiro de São Miguel.

Se a influência do estilo barroco tardio e rococó proveniente de São Petersburgo é dominante, alguns elementos são provenientes do barroco de Moscou, entre êles as cúpulas em forma de botão de flor ou de pêra que marcam a paisagem urbana. Essa nova fase do Barroco ucraniano, pela sua leveza, tendência a usos de motivos decorativos e rocailles, indica o elo com o desenvolvimento estilístico francês.

Entre as igrejas representativas do Barroco tardio ucraniano, além da igreja de Santo André, podem ser mencionadas, entre outras, a da Natividade da Mãe de Deus, em Kozelets (1752-63) e igrejas católicas dominicanas em Ternopil (1745-1749) e Lviv (1747-64), aqui também a Catedral de São Jorge (1745-70).

Mediador: Bartolomeo F. Rastrelli

Bartolomeo Francesco Rastrelli, nascido em Paris mas de ascendência italiana, transferiu-se para São Petersburgo acompanhando o seu pai, Carlo Bartolomeo Rastrelli, em 1716, escultor que realizou obras para Pedro o Grande, Czar (1682-1721), primeiro imperador do Império Russo (1721-1728), criador de São Petersburgo. Com experiência de vida ganha na Europa ocidental, sobretudo nos Países Baixos, o Barroco promovido por Pedro o Grande na reforma ocidentalizante da cultura russa e da própria Ortodoxia, parece não poder ser vinculado diretamente aos jesuítas, uma vez que promoveu a expulsão dos padres da Companhia.  Dentre os arquitetos europeus que atuaram em São. Petersburgo salientou- se Domenico Trezzini.

Bartolomeo F. Rastrelli, contando com experiências adquiridas em viagens pela França, Itália e Alemanha, foi nomeado arquiteto da Côrte em 1730. Realizou, entre outros, trabalhos para a imperatriz Anna Iwanowna (1693-1740). Sob Elisabeth I (1709-1762), a última dos Romanow, imperatriz de 1741 a 1762, atuou intensamente na arquitetura de São Petersburgo, além de projetar e executar grandes encenações e eventos festivos, inclusive para a coroação da imperatriz.

O efeito teatral, com o sentido para o espetacular e representativo, a visão para o todo, a inclusão da luz na configuração dos espaços, o jogo de formas e a ornamentação festiva caracterizaram a sua linguagem arquitetônica e o estilo que é designado por vezes de Barroco de Elizabeth. Diferentemente de Pedro o Grande, Elisabeth era religiosa ao extremo e procurava diminuir a influência estrangeira na Côrte. Compreende-se, assim, que Rastrelli tenha estudado a antiga arquitetura sacral russa, empregando a forma das igrejas de cinco cúpulas. Realizou as suas maiores obras em meados do século:  o Grande Palácio em Peterhof/Petrodvorets (1747-52), o Palácio de Catarina em Tsarskoe Selo (1752-1757), o Palácio de Inverno (1754-1762), o Palácio Mikhail Vorontsov (1749-1757) e o Palácio S. Stroganov (1752-4). Dessa época datam também as obras de Rastrelli em Kiev, a igreja de Santo André (1747-1753) e o Palácio Mariinskyi (1752-1755).

Santo André de Kiev

A igreja de Santo André em Kiev marca a configuração urbana de Kiev e a sua inserção na natureza: Eleva-se em colina à margem do rio Dniepr. Situa-se no alto da rua de mesmo nome, no bairo de Podil, hoje centro de artes e artesanato.  Projetada por Rastrelli, a sua construção foi executada por excelentes artesãos ucranianos e dirigida por I. Michurin, sendo realizada entre 1747 e 1753. Foi consagrada em 1767, ainda que de forma incompleta. Com o traço em forma de cruz, eleva-se em dois andares, constituindo uma construção central ladeada por quatro torres delgadas, coroadas com cúpulas. O seu exterior é decorado com colunas de capitéis coríntios, cornices e pilastras. De particular magnificência é o seu interior, especialmente a iconostasis, ornamentada profusamente. As pinturas foram efetuadas entre 1751 e 1754 por Aleksei Antropov (1716-1795) e seu ajudante, Dmytro H. Levytsky.


Palácio Mariinsky, Kiev.
Trabalhos da Academia Brasil-Europa. Fotos A.A.Bispo 2009

 
Palácio Mariinsky

O Palácio Mariinsky, em Kiev, é um dos principais exemplos de arquitetura profana do Barroco tardio e Rococó na Ucrânia. Situa-se também em posição elevada, acima do parque que cobre os barrancos que descem ao rio Dniepr, de onde se goza de amplo panorama da planície que se esprai na outra margem. Atualmente em reformas, o edifício é utilizado como palácio de recepção de chefes de Estado, previsto para servir de residência do Presidente, situado ao lado do edifício do Parlamento. Rodeado de jardins e bosques, marca a área oficial da região central de Kiev, o distrito de Pechersk.

Rastrelli, no seu projeto, baseou-se no palácio do Conde Oleksii Rozumovsky (1709-1771), próximo de Moscou. Foi construído sob a supervisão de I. Michurin, P. Neelov, e I. Hryhorovych-Barsky, entre 1747-55.

O edifício original apresentava um segundo andar de madeira, acima do térreo em pedras, tendo sido destruído por incêndio no início do século XIX. Foi restaurado e atualizado em 1870, de acordo com o estilo neo-Luís XVI por ocasião da visita do imperador Alexandre II (1818-1881) e da imperatriz Maria, de origem alemã (Marie von Hessen-Darmstadt, 1824-1880), quando recebeu a denominação dessa imperatriz. Após a Segunda Guerra, foi reconstruído na década de 90 do século XX.

Identidade cossaca e o Barroco

Uma consideração histórico-social do Barroco ucraniano e, sobretudo, histórico-cultural que atente a questões de identidade não pode deixar de considerar os fundamentos da cultura cossaca e o desenvolvimento histórico que levou à formação, no século XVII, do Hetmanat dos cossacos. Essa configuração quase que estatal passou a resistir à soberania polonesa, tendo posteriormente se integrado ao império czarista, com autonomia relativa. Até o século XVIII, os cossacos ucranianos e russos eram em parte independentes do Czar e apenas gradualmente foram integrados como unidades de cavalaria livres ao exército russo.

A história dos cossacos remonta a guerreiros livres, camponeses ucranianos e serviçais russos que fundaram, a partir do século XV, nas estepes do Sul da Rússia e da Ucrânia, povoados de credo ortodoxo, transformando-se em campôneos militantes, que se defendiam contra os ataques de nômades de origem asiática, sobretudo tartaros da Criméia.

Sendo a Ucrânia Ocidental pertencente à Polonia e a Oriental à Lituania, a região intermediária era marcada por um vácuo de poder, constantemente ameaçada pelos tártaros que se haviam estabelecido na Criméia. Os grupos que se reuniam para sobreviver nas estepes tornaram-se o cerne dos cossacos eslavos ou ucranianos.

Até o século XVIII, os cossacos não consistuiam uma classe social, mas definiam-se através de sua atividade como militantes das estepes, mais tarde como guerreiros, com privilégios concedidos pela Polonia e pelo Czar. Se originalmente houve cossacos de diferentes credos religiosos, sob a pressão lituana e polonesa, passaram a se opor de forma cada vez mais intensa ao Catolicismo e Judaismo. Nesse contexto, tornaram-se elementos de uma autonomia ucraniana, definida como diferente de tudo o que fosse polonês e católico. Tem-se salientado que se criou um mito cossaco, caracterizado por antinomias: Polonês-Lituano/Cossaco, Católico/Ortodoxo, grandes proprietários/camponêses, etc.

Dentre os principais territórios dos cossacos encontrava-se a área do Dniepr. No ano de 1648, o líder da revolta contra a soberania polonesa-lituana foi assumida pelo Hetman dos cossacos de Saporogo, Bogdan Chmelnizki. Seguiram-se ataques e represálias contra judeus, uma vez que se afirmava estarem estes sob a proteção do rei da Polonia. Para evitar uma derrota, juraram fidelidade ao Czar de Moscau. Esse juramento foi posteriormente interpretado sob diferentes pontos de vista pela Rússia e pela Ucrânia.

Relações com o Ocidente e com a Rússia

Figura exponencial da história cossaca é a do Hetman Iwan Mazepas (1687-1708), vinculado com o período de florescimento econômico e cultural do Hetmanat. Mazepas, proveniente da nobreza ucraniana, após formação em Kiew, realizou estudos no Colégio dos Jesuítas de Varsóvia.

Nesse Colégio, travou conhecimento com os princípios teológicos e os procedimentos da Companhia, com a sua orientação pragmática de utilizar-se de elementos culturais e de expressões artísticas para fins da propagação da fé, e, consequentemente, com as tendências barrocas da arquitetura e das artes. Mazepas teria assimilado aqui estrategias de ação e de instrumentalização da cultura para fins mais altos.

No seu domínio cossaco, caracterizado pelo fomento da Ortodoxia em oposição a tudo que fosse polonês e católico, teria passado a empregar essa metodologia de conquista espiritual, adaptando-a à atração de almas a serviço da Ortodoxia. Além do mais, a serviço do rei da Polonia e através de suas viagens pela Europa Ocidental ganhara uma visão das formas de expressão e das tendências do mundo católico da época.

Como pessoa enriquecida - um dos homens mais ricos da Europa na época - entrou a serviço dos líderes da região do Dniepr, sendo escolhido em 1687 para a liderança dos cossacos, com o apoio de Moscou, mantendo relações de amizade com o Czar Pedro e atuando em guerras ao lado da Rússia. Mais tarde, em 1708, passou para o lado sueco nos ataques contra a Rússia. Foi, assim, uma pessoa que, politicamente, mudou de lado frequentemente. Mais tarde, sob Catarina II,de origem alemã (Sophie Auguste von Anhalt-Zerbst-Dornburg, 1796-1762) a quasi-autonomia de um quasi-Estado dos cossacos chegou a seu fim, ou seja o fim do Hetmanat acompanhou o processo de unificação do império russo.

Paradoxias e perspectivas para a interpretação teórico-cultural do Barroco

Dessa situação histórica, aqui naturalmente apenas esboçada, pode-se tirar algumas conclusões para a interpretação do assim-chamado Barroco Cossaco. A paradoxia de ser essa forma de expressão utilizada em igrejas ortodoxas, apesar de ser profundamente vinculada nas suas origens ao Catolicismo e sua expansão, e isso justamente em época marcada pela antinomia entre os países católicos da Polonia e Lituania e o Hemanat cossaco, parece apenas poder ser explicada por um tipo de análise voltada ao complexo de formação e transformação de identidade no qual os cossacos se inseriam.

A situação cossaca era marcada por labilidade e ímpetos de afirmação. A labilidade poderia ser explicada de uma situação causada pela transformação cultural no passado, quando foram cristianizados, identificando-se com o mundo ortodoxo, superando o estado não-cristão anterior e ao qual outros povos permaneceram ligados. Talvez assim se explique o extremo antagonismo com tártaros da Criméia, mongóis, muçulmanos e judeus. Tornaram-se, com essa transformação cultural e por uma exigência de auto-afirmação devido a elos emocionais ainda existentes com o mundo cultural abandonado, por assim dizer mais ortodoxos do que os ortodoxos, isso porém no sentido antes de fatores identificatórios de natureza social.

Explicar-se-ia, assim, o fato de terem extrapolado os limites da distinção confessional entre ortodoxos e católicos, acentuando o cunho de rivalidade e inimizade. Em comunidades marcadas pela mistura étnica, vivendo em área praticamente sem controle de poder, em liberdade de ação, desenvolveram estruturas leigas do exercício religioso, marcadas por uma certa ambivalência com relação ao clero. Com o enriquecimento, resultado da ação livre e aventureira, em situações semi-legais, que incluiam também atos de desmando e violência, teria crescido a necessidade de auto-afirmação perante preconceitos e desprestígios com a demonstração de capacidade no domínio de técnicas e modos de expressão.

O virtuosismo do Barroco Cossaco tardio e a sua aparente tendência à exteriorização, levando quase que a um exagêro da sua manifestação, e o cunho quase que teatral e profano parecem testemunhar esse desenvolvimento. Explicar-se-ia, assim, o paradoxo do emprêgo do Barroco de conotação católica em igrejas ortodoxas, não apenas por motivos teológicos, mas também relativamente à situação de antagonismo então existente.

Se essa hipótese puder ser corroborada através de análises mais pormenorizadas, ter-se-ia aqui uma visão do Barroco ucraniano não apenas como expressão epocal, não apenas como indício de influências estilísticas da Europa Central ou de São Petersburgo, mas sim como uma forma de expressão inserida em complexo processo que, apesar de todas as suas transformações, manter-se-ia atuante através dos séculos.

Talvez fosse possível encontrar aqui elementos para análises mais adequadas da complexa história posterior dos cossacos, marcada no século XX por desenvolvimentos de difícil compreensão, entre êlespor  uma profunda animosidade relativamente ao marxismo e que levou até mesmo a participações do lado nacionalsocialista alemão na Segunda Grande Guerra, apesar do desprestígio que gozavam os eslavos orientais na ideologia racial. Posteriormente, alguns cossacos passaram à França, onde se integraram, fato explicável pelo fascínio que desempenhara Paris nos anelos de projeção cossaca do passado.

Cossacos e historiografia nacional ucraniana

No âmbito da emancipação da Ucrânia, a historiografia de cunho nacional, baseando-se em trabalhos de interpretação histórica, entre outros de Mychajlo Serhijowytsch (1866-1934), tem procurado salientar uma continuidade que justifica uma identidade nacional ucraniana, traçando um elo entre o antigo Rus de Kiev, o Hetmanat dos cossacos, a República Popular Ucraniana e a atual Ucrânia independente. A época cossaca tornou-se assim um momento de importância no discurso histórico-político de cunho nacional da emancipação, apesar ou devido às suas características de "Inconfidência", estando presente nas artes e representada em cédulas do dinheiro, aqui, por exemplo, através da figura de Mazepa.

Cotejos com a situação nas Minas Gerais

Em cotejos interculturais, e considerando os desenvolvimentos sob a perspectiva brasileira, constata-se a existência de singulares similaridades com situações conhecidas das Minas Gerais. Também aqui tem-se um desenvolvimento ocorrido em território pouco controlado, distante dos grandes centros, marcado pela atividade livre de aventureiros, pela situação de mistura étnica, pelo alcance de riqueza e pelo escoamento da mesma devido a elos de dependência, por uma identidade cultural marcada pela religião mas fundamentada antes em irmandades leigas do que na ação do clero, por um extraordinário Barroco tardio cuja eclosão não pode ser explicada pela presença de jesuítas, pelas suas características por muitos vistas como exteriorizantes, de cunho teatral ou profano, adaptadas em geral a traçados arquitetônicos e princípios construtivos mais simples ou recebidos da tradição, por manifestações de contemporaneidade com o pensamento francês da época, assim como por anelos de liberdade e emancipação. Também a historiografia de cunho nacional procurou mais tarde criar uma continuidade histórica através da valorização da Inconfidência e de Tiradentes.

Contribuição à compreensão de processos

Não se pode deixar de salientar, e isso expressamente, que as diferenças são muito maiores do que as similaridades e de que um tal cotejo poderia e deveria ser visto como intento quase que absurdo devido à diferença de contextos e de pressupostos, de situações geográficas e históricas, de formação étnica e de confissão religiosa. Todo o procedimento comparativo, sobretudo sem a consideração da respectiva contextualização, é questionável e apresenta riscos.

Entretanto, sendo aqui o Barroco um elemento comum, pode-se entender esse cotejo intercultural como um exercício para o aguçamento da atenção às possibilidades de interpretação do Barroco. Como tal, pode trazer à consciência do significado de exames do Barroco não tanto no sentido mais convencional de uma história de estilos ou de épocas, mas na sua inserção em complexo processo de formação de identidades e diferenciações, marcado por instabilidade e impulsos de auto-afirmação, e que continua a manter a sua vigência, apesar das mudanças de suas formas de expressão.

Uma atitude de reflexão crítica por todos aqueles envolvidos nesse processo representa uma exigência para a atualidade, uma vez que pode detectar e desativar potencialidades indesejáveis, sobretudo aquelas que dizem respeito às relações entre a Estética e a Ética.

(...)

As discussões terão prosseguimento

Antonio Alexandre Bispo




  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais - Academia Brasil-Europa (A.B.E.) - e do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (Institut für Studien der Musikkultur des portugiesischen Sprachraumes, I.S.M.P.S. e.V.), visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens: http://www.brasil-europa.eu


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