Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 122/6 (2009:6)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2009 by ISMPS e.V. Edição reconfigurada © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2503


 


Palavra na imagem e Imagem escrita
Linguagem visual do Ocidente e a imagologia do invisível visionalizado no ícone
Pela passagem dos 450 anos da traslação do ícone da Theotokos




Este texto apresenta uma súmula de ciclo de estudos dedicados ao Leste Europeu nas suas relações com os Estudos Culturais Euro-Brasileiros desenvolvidos em Kiev, Ucrânia, em 2009. Odessa já fora alvo de visita de estudos anteriores (2003). Foi resultado de sessão dedicada às relações Ucrânia-Brasil do Colóquio Internacional pelos 450 anos de São Paulo, levado a efeito pela A.B.E. e pelo Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa através do seu centro no Brasil (IBEM) em cooperações com órgãos oficiais brasileiros, instituições de pesquisa, literatura e música e com a Universidade de Bonn, em 2004.


O ciclo deu prosseguimento a eventos anteriormente realizados em diferentes países do Leste da Europa. Esses estudos tiveram o seu início com uma primeira visita à Berlim à época da divisão da Alemanha entre República Federal da Alemanha e República Democrática Alemã, em 1975, seguindo-se viagem de estudos a esta última nos anos oitenta. Dentre os países considerados do Leste, destacaram-se no decorrer dos anos a Rússia, a Polônia, a Hungria, a então Tchecoslováquia e os países Bálticos. No corrente ciclo, tratou-se sobretudo de observar as novas condições que se abrem com as mudanças políticas do Leste para os estudos referenciados pelo Brasil. A orientação teórico-cultural insere-se na tradição da sociedade dedicada à renovação dos estudos culturais (Nova Difusão 1968), a atual Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais - Academia Brasil-Europa.





Atualidade do conceito de ícone nos estudos da imagem

Os estudos da imagem e de suas acepções desempenham importante papel nas reflexões teórico-culturais da atualidade. Um de seus aspectos, sobretudo em considerações de fenômenos culturais do presente, diz respeito ao "ícone" na cultura popular e sua função na era da globalização. Entretanto, o uso do conceito nesse sentido não pode deixar de ser considerado de forma diferenciada relativamente a seu emprêgo no sentido estrito do têrmo, e isso dirige a atenção à iconologia religiosa.

Reflexões sobre o ícone nesse sentido próprio do termo envolvem questões estéticas nas suas relações com concepções do mundo e do homem. Essas questões são de natureza teológica e de antiga tradição. Foram transmitidas através de complexos caminhos difusivos na história da cultura, em particular daqueles partidos de Bizâncio. Sobretudo os estudos interculturais relativos a regiões marcadas pela Ortodoxia não podem ser desenvolvidos sem um mais aprofundado exame das concepções relacionadas com o ícone. Este é o caso dos estudos do Leste Europeu, uma área que atualmente adquire particular significado devido às modificações político-culturais que ocorrem nos países respectivos e à ampliação da União Européia.

Cultura do ícone e os estudos relativos ao Leste Europeu

O visitante de nações onde predomina a Ortodoxia constata, apesar de toda a contemporaneidade cosmopolita nas diferentes expressões da arquitetura, da música, das artes e da cultura do quotidiano, uma cultura do ícone que se intensifica com a redescoberta ou revalorização da religiosidade no contexto da reconscientização de identidades histórico-culturais e nacionais após o término do regime soviético.

Essa renovado significado religioso do ícone manifesta a potência de uma imagologia que se manteve através dos séculos e se distingue, sob muitos aspectos, da linguagem visual do Ocidente.

O observador ocidental passa a sentir a necessidade de compreender melhor essa forma de representação e culto, pois compreende que ela se relaciona com questões  gerais e fundamentais, indispensáveis para o estudo mais aprofundado dos respectivos contextos culturais.

Ícones em igreja na cidade baixa de Kiev.
Pochtova Ploshcha.
Trabalhos da Academia Brasil-Europa. Fotos A.A.Bispo 2009

                                      

450 anos do ícone Pochayiv da Mãe de Deus

O ano de 2009 foi marcado no universo da Ortodoxia pela passagem dos 450 anos da traslação do ícone da Theotokos de Pochayiv a Volyn. Este ícone, venerado como milagroso, adquire particular significado para os estudos interreligiosos e aquelas das relações entre o Leste e o Ocidente, pois também é reconhecido pela Igreja Católica e venerado no Brasil. Os 450 anos de sua traslação foi celebrado não apenas na Ucrânia mas também em várias cidades do Exterior, primordialmente nas cidades canadenses com significativas comunidades ucranianas, entre elas Montreal, Toronto, Ottawa, Vancouver, Edmonton, Calgary, Regina e Winnipeg.

A sua história é vinculada ao Mosteiro de Pochayiv, localizado na parte ocidental da Ucrânia, na Galícia. Esse mosteiro, fundado no século XIII, conheceu um período de florescimento em fins do século XVI e início do XVII. Embora o mais antigo documento seja de 1527, supõe-se ter sido fundado três séculos antes por monges do Mosteiro das Cavernas de Kiev. (Veja artigo a respeito nesta edição)

A imagem foi recebida como presente do metropolita grego Neophyte, que fêz pouso numa casa na região de Pochayiv, durante a sua viagem a Moscou, em 1559. Durante três décadas, o ícone permaneceu numa capela, até que, segundo a tradição, dele passou a irradiar uma luz extraordinária, com forças curativas. Em procissão solene, o ícone foi levado ao mosteiro, onde permaneceu através dos séculos.

Significado para os estudos das relações entre o Leste e o Ocidente

A história do ícone e do mosteiro de Pochayiv está estreitamente vinculada com a história das relações interconfessionais entre o Leste e o Ocidente, com as tentativas de catolização do Leste e da restauração e expansão da Ortodoxia. Um dos principais vultos dessa história foi Ivan Zalizo. No século XVII, com o nome de Job, passou a liderar a comunidade monástica, restaurando a disciplina conventual, dedicando-se à propagação da Ortodoxia oriental.

No século XVIII, o mosteiro foi dirigido por religiosos greco-católicos. Em 1773, o Conde Mikolaj Bazyli Potocki solicitou ao papa reconhecer o ícone como milagroso e São Job como santo, sendo a primeira petição acatada. Em 1795, passando a região a fazer parte do Império Russo, deu-se início ao processo de retorno do mosteiro à Ortodoxia Russa. Entretanto, a tipografia e as escolas religiosas continuaram a utilizar-se do latim.

Pochayiv tornou-se um dos principais centros de peregrinação dos ortodoxos de todo o império e dos países balcânicos. O ícone transformou-se também numa imagem simbólica da Ortodoxia no Ocidente e emblema na propagação do Pan-Eslavismo. A imprensa de Pochayiv, que desempenhou papel importante na difusão de literatura religiosa na Galicia e Volhynia, foi transferida em 1924 para os Estados Unidos, estabelecendo-se no Mosteiro de St. Job de Pochayiv em Nova Iorque.

Significado para os estudos culturais euro-brasileiros

Segundo a tradição, durante ataque de turcos, Maria e São Job de Pochayiw atuaram miraculosamente na salvação do mosteiro. Essa intervenção divina marcou profundamente as concepções espirituais relacionadas com o ícone. Essas concepções podem ser examinadas sob perspectivas teórico-culturais, uma vez que representa mais uma expressão relacionada com o conflito entre cristãos e muçulmanos, confronto que tem sido estudado sob vários aspectos em publicações e eventos relativamente à sua inserção na ordenação simbólica de complexos culturais cristãos. (Veja a respeito textos em edições anteriores desta revista)

Como tem sido discutido em publicações e eventos realizados pela Academia Brasil-Europa, entre êles em sessões realizadas em 2002 (Paraty) e em 2004 (São Paulo), o estudo dos fundamentos dos edifícios de concepções e imagens que possibilitam análises mais adequadas das múltiplas expressões da "luta entre cristãos e mouros" surge como de particular relevância na atualidade e necessária para a depotencialização de perigos resultantes de compreensões superficiais da linguagem simbólica. O ícone em questão permite o tratamento dessas questões também na esfera da Ortodoxia e das relações entre o Leste cristão e o Ocidente.

O ícone na História das Artes do Ocidente

Ao tentar aproximar-se da cultura do ícone, o observador constata, não sem surprêsas, que não são recentes as suas relações e interações com a arte cristã do Ocidente. A história da recepção do ícone na Europa Ocidental é significativa e, ao mesmo tempo, múltiplas foram as influências de correntes estilísticas ocidentais na arte do ícone. Talvez a maior surprêsa represente a constatação da influência do ícone na arte não-religiosa do Ocidente e o papel que a êle se atribui no desenvolvimento da expressão de artistas significativos da Modernidade, tais como W. Kandinsky (1866-1944), M. Chagall (1887-1985) e El Lissitzky (1890-1941).

O tratamento diferenciado de ramificações históricas, de encontros, reencontros e de interferências de culturas imagológicas adquire aqui uma atualidade inesperada. Os estudos de fundamentos concepcionais do ícone passam a ser relevantes para o tratamento de correntes estéticas da arte contemporânea, salientando-se aspectos relativos à representação de superfície e à redução de elementos visuais na obra de arte.

De uma perspectiva histórico-artística a um enfoque teórico-cultural

Ícones e suas reproduções tornaram-se há muito objetos de procura de colecionadores. Diversos são os motivos para tal interesse. De coleções maiores e mais bem organizadas desenvolveu-se o sentido pelo ícone como obra de arte, ainda que aqui a apreciação estética exija critérios de reconhecimento de valor diferentes daqueles da arte ocidental.

Pela constatação dessa dificuldade, cedo reconheceu-se que uma perspectiva marcada exclusivamente por correntes de pensamento da História das Artes não se mostra, no caso, adequada a reflexões mais profundas e diferenciadas. Assim, já em 1968 realizou-se uma exposição de ícones orientada teórico-culturalmente, um acontecimento significativo no desenvolvimento de cooperações interdisciplinares. Essa exposição, realizada no Palácio de Raesfeld, na Alemanha, foi organizada juntamente com o Werkgroep culturele grescontacten do Conselho Cultural de Gelderland, Países Baixos. Designada pelo título de "A Palavra na Imagem", a exposição orientou-se pela constatação de que uma exposição de ícones significa expor o Sagrado, retirar a imagem da esfera velada do "locus iste" e transportá-la à luz do dia, ou seja, o revelar um mistério. Trata-se-ia, assim, de um empreendimento quase que não-santo. Haveria porém lugar para o Sagrado na vida contemporânea? A estética, a literatura fechariam frequentemente os olhos para a Sacralidade, mas, ao mesmo tempo, apenas das esferas culturais mais profundas poder-se-ia redescobrir o sentido do Sacro. Assim, a exposição precisava ser necessariamente orientada culturalmente, sendo acompanhada por um colóquio ecumênico de Ciência das Religiões, no qual a atenção foi dirigida à questão da Sacralidade no mundo moderno.

 

Significado das reflexões relativas ao ícone para o Brasil

Essa orientação teórico-cultural do estudo do ícone, que proporciona a superação de impasses causados por enfoques da História da Arte do Ocidente, não é de significado apenas para a Europa. Também é de relevância para os estudos euro-latinoamericanos e, em particular, para os euro-brasileiros. Esse significado é múltiplo. Por um lado, o Brasil possui representantes da Ortodoxia, sobretudo entre imigrantes das diferentes nações do Leste. Participa ou participará, como outros países do Ocidente, das novas possibilidades que se abrem com os reintensificados contatos com o Leste Europeu, tendo a necessidade de uma maior compreensão de sua cultura. Sobretudo, porém, esse estudo aguça a capacidade diferenciadora dos estudiosos, despertando a atenção para questões imagológicas na própria cultura, seja com relação a seus fundamentos em remoto passado, seja através de desenvolvimentos mais recentes.

Diferenças da linguagem visual em expressões culturais

O ícone, significando etimologicamente imagem ou representação, entendida como parábola, adquire teologicamente um sentido muito mais profundo do que aquele emprestado às imagens e representações pictóricas de santos e temas religiosos na tradição cristã ocidental. Estas representam mais ou menos de forma realista figuras da história sagrada, adquirindo um cunho muitas vezes educativo, ilustrativo, dramatizante, inspirador e despertador de emoções. Se o respeito venerador dessas representações pode ser constatado e foi fomentado no passado, manifestado popularmente em expressões emocionais e afetivas, seria expressão de abuso uma veneração mais profunda ou mesmo uma adoração de imagens.

Por outro lado, em expressões tradicionais lúdicas, cultivadas no decorrer do ano religioso, a linguagem visual possui outras características. Aqui, as representações dizem respeito ao homem natural ou ligado à carne, ou seja, ao tipo, e é tarefa do cristão folgar com o grotesco de sua natureza a partir dos critérios colocados pelo seu anti-tipo, o modêlo do homem espiritual. Essa característica da ordenação visual de muitas das expressões do patrimônio de folguedos católicos vem sendo consideradas em estudos e eventos de natureza antropológico-simbólica desenvolvidos no âmbito dos trabalhos da Academia Brasil-Europa.

Ambos os tipos de imagens, aquelas que representam o tipo a partir de sua relativação pelo anti-tipo, e aquelas que representam diretamente modêlo histórico do anti-tipo pertencem a esferas do patrimônio cultural da cultura cristã ocidental, sobretudo católica, uma àquela do culto e da piedade, outra àquela das expressões festivas. Estas últimas surgem como sinais que indicam algo diferente do que aparentam ser, enquanto que as outras pintam ou retratam o representado, ainda que de forma atualizadora, aproximando-o neste caso da situação histórica daquele que o contempla.

Palavra na imagem e ícone como escrita

O ícone, diferentemente dessas tradições imagológicas, tem sido visto antes como imagem do invisível visualizado em contemplação interna. Não seriam produtos de uma cultura do olhar, dirigido a aparências exteriores, mas de uma cultura do enxergar ou do ver, aqui entendido no sentido mais profundo do termo. Essa concepção, tornando presente imagens espirituais, faz com que o ícone se sacralize, se torne um mistério, até mesmo liturgia. O pintor de ícones surge como um escritor do Evangelho em cores e, assim como um escriba que, copiando o evangelho, deve proceder de forma a mais fiel possível com relação ao original. O ícone tem portanto características de escrita, de texto, devendo ser lido diferentemente do que no caso por assim dizer encenatório da tradição ocidental.

Programas imagológicos dos ícones

A principal imagem do programa imagológico dos ícones é a de Cristo, sobretudo a da sua face que não teria sido pintada por mão humana, como transmitida pela lenda de Abgar. Também particularmente frequentes são a imagem do Cristo Pantokrator e do Cristo-Emmanuel. No Leste Europeu, em particular, no caso, na Ucrânia, o observador constata a frequência e a intensidade de representações de Maria. Estas surgem em diferentes "versões escritas" e que remontam a determinados tipos fundamentais. Entre elas, salienta-se a representação da Mãe de Deus de Wladimir, do século XII, de proveniência grega. Além do mais, o observador se surpreende com a variedade de outras imagens e temas, sobretudo de anjos, patriarcas e profetas.

Perpetuação da cultura bizantina e a questão de sínteses culturais

O ícone e as suas concepções teem sido vistos como testemunho da perpetuação da cultura bizantina no presente. Seria, segundo essa interpretação, uma síntese de concepções canônicas de Beleza da Antiguidade com a espiritualidade cristã de cunho ascético e que se teria desenvolvido entre os séculos VI e XVIII. O termo "síntese", porém, parece ser aqui inadequado. Antes poder-se-ia talvez partir da idéia de uma cristianização de cânones antigos ou mesmo de uma recuperação de uma dimensão mais profunda da arte imagológica perdida através dos séculos. Segundo as tentativas de traçado de caminhos na história da difusão do ícone, este teria passado dos grandes centros urbanos da Antiguidade tardia, entre eles Alexandria e Antioquia à esfera de Bizâncio, a Constantinopla e à Tessalônia, onde se desenvolveu até a queda de Constantinopla no século XV. Difundiu-se na região balcânica, Sérbia, nas ilhas gregas, sobretudo em Creta, atingindo mais tarde um período de florescimento no mosteiro de Athos. Seguindo o caminho natural em direção à Rússia, estabeleceu-se em Kiew, entre séculos XI e XIII, além de em outros centros (Wladimir, Nowgorod, Moskau, etc.). No ano de 988, com o batismo de Wladimir I por sacerdotes gregos, introduziu-se a pintura de ícones no Rus de Kiev.

Aproximação à Antropologia teológica do ícone.

As reflexões teológicas sobre o ícone - e a imagologia de fundamentação bíblica em geral - devem iniciar com a concepção antropológica básica de que o Homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, formulada na Gênesis. Um ponto de partida das reflexões na proibição da representação de imagens, difundida em tentativas de elucidação teológica, não leva aos fundamentos do edifício de concepções. Segundo a tradição interpretativa (entre outros de Santo Agostinho), pode-se entender essa concepção no sentido de ser imagem por possuir razão, e de ser semelhança por ter vontade criadora. A imagem de Deus, porém, é o Filho (Logos); o homem, como imagem, pode ser apenas entendido como imagem da imagem. Ao representar Jesus Cristo, Maria e santos, o pintor reproduz não uma imagem realista de um homem histórico, mas uma imagem no sentido de imagem da imagem, ou uma imagem que deixa resplandecer em si a imagem primeira de Deus. Sendo que o homem apenas recupera a dignidade perdida da situação original da Criação em santidade, essa imagem é santa.

Entende-se, aqui, entre outros aspectos, a fé na força vivificadora ou curativa do ícone, o que se manifesta, por exemplo, na tradição de sua criação pelo apóstolo Lucas, o evangelista médico, acompanhante do apóstolo Paulo, e na veneração particularmente difundida dos santos Cosme e Damião, protetores de médicos e farmacêuticos. Por essa razão, o ícone não surge como simples obra de arte aos olhos dos fiéis, mas sim como uma imagem sagrada.

Essa aproximação à Teologia do ícone diz respeito porém apenas ao cerne do edifício imagológico. Necessita ser aprofundada e, sobretudo, diferenciada sob o aspecto dos elementos que concorrem à representação central e das muitas influências experimentadas no decorrer dos séculos. Assim, não poderia ser em princípio aplicada aos anjos, pois a esses não se refere a expressão da Gênesis quanto à criação em imagem e semelhança. As criaturas angelicais que frequentemente envolvem o ícone principal, necessitam ser consideradas assim a partir de outros critérios imagológicos, por exemplo simbólicos ou de sinais. A representação de anjos e arcanjos, por exemplo de São Miguel, frequentemente encontrado, poderiam ser talvez considerados nas suas relações com conceitos de luz. Sobretudo com a influência da arte ocidental dos últimos séculos, a influência da representação naturalística ou de cunho ilustrativo torna-se perceptível em representações pictóricas de santos que, da arte do ícone, guardam apenas uma certa estaticidade e o caráter de superfície, ou seja, falta de espacialidade.

Imagologia de fundamentação teológica e concepções estético-filosóficas

No contexto das discussões levadas a efeito no Ano Schiller relativas às concepções sobre a educação estética do homem (Veja artigos nesta edição), poder-se-ia cotejar o sistema elucidado pelo clássico alemão com as concepções totalmente diversas inerentes à tradição do ícone. Para Schiller, a imagem do homem ideal parte do homem real, natural, dos sentidos, e o caminho do seu desenvolvimento é aquele que corresponde a um direcionamento da matéria, caracterizado pela variedade e pela temporalidade, à forma, à unidade, à atemporalidade, expressão máxima da matéria configurada e da forma materializada, um escopo infinito, jamais completamente alcançado.

Numa estética teológica do ícone, o ponto de partida é outro, não da matéria, mas sim do Criador. Também aqui poder-se-iam tecer considerações a partir dos conceitos de forma e matéria, e, nesse caso, tratar-se-ia de uma forma que não seria forma ideal como produto da abstração do homem, mas sim forma por excelência. O ícone como matéria configurada e forma materializada, sendo a forma divina, eleva a matéria à sua mais alta expressão. Pode-se compreender, assim, a importância dada à matéria no ícone, seja na escolha de madeira da vinha, seja no uso de azeite de oliva para o seu tratamento. O fato de o Evangelista S. Lucas, o pintor do ícone pela tradição, ser também associado ao elemento terra na linguagem simbólica adquire neste contexto um significado especial.

Entre o edifício imagológico expresso na estética de um Schiller e a tradição imagológica representada pelo ícone há uma diferença fundamental. Essa diferença diz respeito a todo o sistema de concepções antropológicas e de visões do mundo. Com a recepção de princípios próprios à arte do ícone no Ocidente, em particular através de certas tendências do Moderno e com a influência da arte ocidental no universo cultural marcado pela ortodoxia levanta-se a questão do relacionamento entre esses dois edifícios contrastantes de concepções imagológicas, de suas possíveis interferências e de como essas poderiam ser tratadas do ponto de vista teórico.

(....)

As discussões terão prosseguimento

Pintura externa da Catedral do Mosteiro das Cavernas de Kiev. Trabalhos da Academia Brasil-Europa. Fotos A.A.Bispo 2009



Antonio Alexandre Bispo





  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais - Academia Brasil-Europa (A.B.E.) - e do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (Institut für Studien der Musikkultur des portugiesischen Sprachraumes, I.S.M.P.S. e.V.), visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens: http://www.brasil-europa.eu


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