Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 122/21 (2009:6)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2009 by ISMPS e.V. Edição reconfigurada © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2518


 


Rêdes sociais na História Político-Cultural
Vínculos entre as famílias reinantes na Europa no período guilhermino
Alemanha e Grã-Bretanha. "Prussianidade", Ética do Dever e Ética do Sucesso


Prosseguimento de reflexões encetadas em Sydney em 2009, a partir de releituras das recordações de vida da filha de Guilherme II, Duquesa Viktoria Luise (1892-1980)


Arquivo A.A.B.

 


Foto A.A.Bispo. Sydney 2009. Copyright

Este texto apresenta uma súmula de estudos motivados pelos 150 anos de Guilherme II (1859-1941). Sem objetivos políticos ou de engrandecimento da personalidade do último imperador da Alemanha, os trabalhos justificaram-se pela importância da época guilhermina para o Brasil, sobretudo sob o aspecto das regiões coloniais. Nesse sentido, inscreveram-se no programa da Academia Brasil-Europa dedicado a estudos do mundo de língua alemã e mundo de língua portuguesa.


A orientação teórico-cultural insere-se na tradição da sociedade dedicada à renovação dos estudos culturais (Nova Difusão 1968), a atual Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais - Academia Brasil-Europa.






Foto A.A.Bispo. Sydney 2009. Copyright

Sydney, Austrália.
Monumento à rainha Vitória defronte à Galeria Vitória.
Trabalhos do ciclo Atlântico-Pacífico da Academia Brasil-Europa 2009.  Fotos A.A.Bispo

 
Significado de elos histórico-culturais entre o mundo de língua alemã e o de língua inglêsa

Os estudos de processos interculturais em contextos que dizem respeito às relações entre a Europa e países do mundo geograficamente não-europeu dão necessariamente especial atenção a questões da história colonial e imigratória. Essas questões não podem ser tratadas exclusivamente sob a perspectiva das regiões colonizadas e da imigração, mas devem ser inseridas nos contextos respectivos dos países colonizadores e de emigração. Nesse sentido, com relação ao Brasil, os estudos de situações européias e de processos internos europeus surgem como uma exigência da pesquisa.

Com as novas condições criadas pela união européia e sua ampliação, visões supra- e transnacionais adquirem particular atualidade. Aqui reside o escopo da organização Brasil-Europa que, através da Academia Brasil-Europa, vem desenvolvendo há anos estudos teóricos que procuram superar perspectivas exclusivamente bi-laterais baseadas nas configurações atuais de estados nacionais.

A história mais recente do Colonialismo europeu é marcada, neste sentido mais amplo, por desenvolvimentos ocorridos nos países europeus do século XIX e que se revelam como estreitamente relacionados com a própria história nacional de vários países. 

Sobretudo o Império Britânico, com a sua presença em várias regiões do mundo, a sua prosperidade e o seu desenvolvimento técnico-científico despertou em várias nações desejos de posse de colonias no mundo extra-europeu para a ampliação de esferas de influência, para o enriquecimento nacional e para o aumento de prestígio e poder. Pequenas nações, tais como os Países Baixos e a Bélgica, puderam assumir através de suas colonias posições muito mais relevantes no concerto dos países europeus do que as suas dimensões territoriais fariam supor.

Muitos desses empreendimentos coloniais foram realizados sob pretextos científicos e civilizatórios, foram precedidos e acompanhados por desenvolvimentos técnicos, por um necessário aumento de conhecimentos das regiões a serem exploradas, por um incremento do interesse na Europa com relação a outros povos e com a procura de estabelecimento de relações com povos a serem contatados.

Empreendimentos coloniais e navegação

Os empreendimentos coloniais tiveram como pressuposto sobretudo o desenvolvimento da navegação. A Grã-Bretanha foi durante longo tempo potência naval por excelência, pela sua técnica de construção, pelos seus estaleiros, pela presença de seus navios em todas as partes do mundo. Essa situação predominante, porém, foi seriamente questionada com o extraordinário desenvolvimento que a marinha alemã experimentou na última década do século XIX e nos anos do século XX anteriores à Primeira Guerra. (Veja texto a respeito nesta edição)

A tensão criada pela nova concorrência poderia ser vista como um dos fatores que levaram ao abalo das relações entre os impérios alemão e o britânico, criando ressentimentos que co-determinaram o confronto na Primeira Guerra. Essa oposição entre os dois impérios surge à primeira vista como singular, uma vez que ambos possuiam estreitos elos e, - ao contrário da França - uma forma de govêrno monárquica, ou seja representavam uma configuração de estado que seria abolida nas potências centrais após a Primeira Guerra.

Uma orientação teórico-cultural da pesquisa histórica dirige a atenção a fatores que possibilitam análises mais diferenciadas das relações entre a Alemanha e a Inglaterra e suas consequências para os estudos culturais em contextos internacionais. Pouco se tem levado em consideração, nos estudos relativos à Alemanha e de suas relações com o Brasil, - assim como para a consideração das relações entre inglêses e alemães no Brasil e em outros países do mundo -, o quanto o império alemão foi vinculado à Grã-Bretanha através da rêde social determinada por laços de parentesco das famílias reinantes.

Arquivo A.A.B.

Inauguração do monumento à rainha Vitória em New-Castle on Tyne, 1906

 
Elos da época guilhermina com o mundo vitoriano

Como a filha de Guilherme II salientou nas suas recordações de vida (Herzogin Viktoria Luise, Ein Leben als Tochter des Kaisers, 12. ed., Göttingen-Hannover: Göttinger Verlagsanstalt, 1973), os vínculos familiares mais estreitos da família imperial alemã com outras reinantes na Europa eram aqueles existentes com a Casa Hannover-Saxe-Coburg da Inglaterra. A autora salienta que a mãe de seu pai, ou seja, a sua avó, era uma princesa inglêsa, Viktoria (1840-1901), filha da Rainha Vitória (1819-1901). Quando Guilherme II nasceu, chegou-se até mesmo a cantar, em Londres, uma nova estrofe no hino inglês:

"Hail the auspicious morn,/ To Prussia's throne is born / A Royal heir! / May he defend its laws, /Joined with Old England's cause, / This wins all men's applause!" (op. cit. 35)

As recordações mais antigas de Guilherme II de sua infância remontavam à Inglaterra e diziam respeito ao Príncipe Alberto de Saxe-Coburg e Gotha, Duque da Saxônia (1819-1861), marido da rainha Vitória, desde 1857 Príncipe consorte. A rainha Vitória nunca havia escondido a sua ascendência alemã e, com o seu casamento com um príncipe da casa de Saxe-Coburg, acentuara os seus elos com o mundo de língua alemã. Ela possuía o título de Duquesa da Saxônia e introduzira as armas da Saxônia no estandarte real inglês.


Chegada de Eduardo VII para a inauguração do monumento da rainha Vitória em New-Castle on Tyne

 
Como a filha de Guilherme II salienta, o seu pai esteve muitas vezes com os seus parentes inglêses, utilizando ali com naturalidade o traje escocês. Também a rainha Vitória sempre o tratara com afeto de avó. Em situações políticas sensíveis, Guilherme II teria sempre procurado manter a confiança da rainha, com demonstrações de respeito e veneração que um neto dedica à sua avó. A rainha Vitória foi até mesmo madrinha de batismo da filha de Guilherme II, Viktoria Luise, a autora aqui citada. Os príncipes alemães realizaram visitas à Grã-Bretanha, quando então brincavam com os príncipes inglêses, seus primos e primas, situações que permaneceram inesquecíveis na memória familiar. Quando tornou-se conhecido, em 1901, que a rainha Vitória se encontrava no leito de morte, o imperador alemão dirigiu-se imediatamente a Londres, apesar de comemorar-se então os 200 anos da Coroa real da Prússia. A rainha Vitória faleceu nos braços de Guilherme II. (op.cit. 36)

As recordações da filha de Guilherme II adquirem aqui particular significado por trazerem à tona de forma expressiva a proximidade cultural e emocional do império alemão com o mundo vitoriano. Na história cultural, pouco tem-se atentado a essas relações. Esses elos permitem interpretar de forma mais adequada a cultura do período guilhermino no contexto de interações entre tradições prussianas e aquelas da época vitoriana.

Quando por todas as antigas colonias britânicas no mundo se defronta com a imagem sempre presente da rainha Vitória como símbolo de uma época de particular significado para muitas nações, esses laços com o mundo de língua alemã não deveriam ser esquecidos.

Relações com os Estados Unidos. "Cátedra Roosevelt" na Alemanha


Os tradicionais elos entre o império alemão e o britânico podem explicar em parte também as relações da Prússia com outros países de língua inglêsa, em particular com os Estados Unidos. Assim, a filha de Guilherme II salienta nas suas recordações a simpatia que o imperador alemão devotava ao presidente Theodore Roosevelt (1858-1919), simpatia essa que se baseava na força moral que sentia haver no presidente americano. Entre ambos houve um intenso intercâmbio de idéias sobre questões políticas e culturais.

Essa simpatia levara à criação de uma Cátedra Roosevelt, que possibilitava a um professor norte-americano lecionar em universidades alemãs. Na ereção dessa cátedra, Roosevelt lembrou da amizade histórica entre a Prússia e os EUA. Muitos americanos haviam estudado na Alemanha e agora ocupavam postos de liderança no seu país, sobretudo nos estados do Norte. Em 1910, um ano após o término de sua presidência,  Roosevelt e o casal imperial alemão participaram de uma solenidade acadêmica na Universidade de Berlim. Nessa ocasião, Roosevelt proferiu um discurso sobre o tema "Movimento Mundial da Cultura". (op.cit. 47-48)


Visita do imperador Guilherme II e do rei Eduardo VII
no Saalburg

 
Deterioramento de relações no período eduardiano

O deterioramento das relações entre a Prússia e a Inglaterra com a subida ao trono de Eduardo VII (1841-1910) pode suscitar considerações sob o ponto de vista teórico-cultural. As razões apontadas pela filha de Guilherme II sugerem aqui problemas geracionais relacionados com processos culturais. (op.cit. 36-38)

Se as relações entre Vitória e Guilherme eram as de avó e neto, as do já sexagenário Eduardo VII e Guilherme eram as de tio e sobrinho. Um relacionamento amigável entre Guilherme II e Eduardo, existente quando da viagem que fizera Guilherme II a Londres após a sua intronização, mudou-se com a subida ao trono de Eduardo.

Esse abalo das relações teria sido resultado tanto de uma incongruência de formas de comportamento, como de uma necessidade do rei inglês em se diferenciar do longo período que o antecedeu. A sua relação com a rainha Vitória era turvada pelo fato de ter sido mantido afastado dos assuntos do govêrno após um caso amoroso que teve com uma artista. Isso explicaria em parte o seu desejo de diferenciar-se da era vitoriana, marcada que foi pela severidade de costumes, no que correspondia também ao mundo guilhermino. Assim, Eduardo procurou restaurar brilhantes formas de representação da monarquia britânica do passado.

Apesar de ser de direta ascendência alemã por parte de seu pai Alberto de Saxe-Coburg e Gotha, Eduard distinguiu-se sobretudo pela sua francofilia. O amor à França iniciou-se com a sua visita a Paris, em 1855. Conservou uma visão da França marcada pelo brilho do império de Napoleão III (1808-1873). Foi presidente da seção britânica da Exposição Universal de 1878, em Paris, evento que contou com grande participação da Grã-Bretanha e de suas colonias, e no qual o Império Alemão não esteve representado. Soube intensificar os elos das colonias com a Grã-Bretanha, em particular com a sua viagem ao Canadá, em 1860, e à India, em 1875/76. Esteve na Alemanha em 1868/69, quando visitou também Estocolmo, Viena e o Egito. Em 1903, em viagem a Paris, lançou as bases para uma Entente cordial entre a França e a Inglaterra, consolidada no ano seguinte. Em 1907, com a entrada da Rússia, transformar-se-ia em Entente tripla.

A filha de Guilherme II sugere, embora de forma discreta, uma imagem pouco positiva do caráter de Eduardo VII. Em 1907, quando o soberano britânico visitou a família imperial alemã, em Wilhelmshöhe/Kassel, apesar de ter sido recebido de forma particularmente cordial por Guilherme II, quando este mais uma vez salientou a sua convicção de que os elos familiares deveriam ser garantias da manutenção da paz, Eduardo VII dali viajou a Ischl, onde o imperador da Áustria se encontrava, para tentar convencê-lo secretamente a cortar a aliança com a Alemanha. Procurava, assim, já nessa época, de forma pouco aberta, isolar a Alemanha. Guilherme II tomou conhecimento apenas posteriormente desse intento, a êle relatado pelo próprio imperador da Áustria. A primeira visita oficial de Eduardo VII e da rainha Alexandra (1844-1925) à Alemanha deu-se apenas em 1909.


Palácio Friedrichshof:
Local de encontro de Guilherme II e Eduardo VII

 
Tentativas de manutenção do sistema baseado em elos familiares

Guilherme II era da opinião que a política entre a Inglaterra e a Alemanha deveria continuar a se basear no parentesco das casas reais, perpetuando os elos emocionais e de afeto familiar, que seriam para êle os fundamentos da paz no equilíbrio das nações. Eduardo, porém, mais realista, possuia outros critérios e também outro tipo de comportamento, menos emocional. Os modos de Guilherme II, o seu estilo pessoal, grandiloquente e afirmativo, passaram a ser vistos provavelmente como por demais familiar, muito pouco reservado e discreto perante uma pessoa que tinha o hábito de distância aristocrática e porte inglês de um cavalheiro, de um "Grandseigneur". (loc.cit.)

Em 1907, para tentar contornar situações conflitantes, Guilherme II dirigiu-se à Grã-Bretanha, entrando em contato com Eduardo VII, assim como com políticos, professores e jornalistas. Recebeu, nessa ocasião, o título de Doctor of Civil Law da Universidade de Oxford. O tenor de seu intento era o de trazer à consciência os elos culturais e religiosos entre as duas nações e que deveriam ser suficientes para garantir harmonia e amizade. Em Guildhall, pronunciou um discurso no qual acentuou o seu intento de manutenção da paz, afirmando que o principal fundamento da paz mundial residiria na manutenção das boas relações entre os dois países e que o seu mais sério desejo seria que o parentesco entre as duas famílias refletissem no relacionamento de ambas as nações, fortalecendo assim a paz no mundo.

Tais intenções foram porém anuladas com um artigo que deveria reproduzir uma troca de idéias com o General Stuart-Wortley (1857-1934), publicado no Daily Telegraph e que, pelo seu tom e suas formulações, muito prejudicaram o renome de Guilherme II na Inglaterra e na própria Alemanha. A sua filha, nas suas recordações menciona um papel negativo exercido nesse caso pelo Chanceler Bernhard von Bülow (1849-1929), que fora Secretário de Estado do Exterior desde 1897 e, de 1900 a 1909, e a quem teria cumprido rever o texto destinado à publicação (op.cit. pág. 54-55). A autora não esconde a sua falta de simpatia por von Bülow, que considerava uma pessoa não-sincera, apesar de sua aparente amabilidade e de sua exagerada atitude de devoção ao imperador. Teria sido um êrro de Guilherme II ter confiado tanto em von Bülow, ainda que fosse este um diplomata de muita experiência. Faltou ao imperador alemão menos credulidade e a capacidade de melhor conhecimento humano. (op.cit. pág. 57)

O episódio do Daily Telegraph foi um fator de importância na deterioração da imagem de Guilherme II e até mesmo relativamente à sua auto-imagem. Desde então, o imperador alemão passou a assumir uma atitude de maior reserva, mantendo-se em muitos casos em posição afastada, uma atitude de crescente quebra de ânimo que explicaria uma quase que entrega do poder a militares no decorrer da Guerra.

Pessimismo na Filosofia Cultural da História. Relendo Oswald Spengler


O panorama do desenvolvimento das relações aqui esboçado dirige a atenção à crise de um sistema baseado em redes de entrelaçamento familiar e às suas consequências para o estabelecimento de um estado de espírito pessimista relativamente ao caminho e ao futuro da Europa ocidental. Sob esse pano de fundo, poder-se-ia considerar as concepções histórico-filosófico-culturais de Oswald Spengler (1880-1936), autor da difundida obra Der Untergang des Abendlandes, cujo primeiro volume foi escrito em meio à Primeira Guerra Mundial.


A interpretação de Spengler baseia-se numa concepção de cultura guiada pela imagem de uma planta. A cultura nasceria como que de uma semente em boa terra, cresceria, floresceria, daria os seus frutos, cairia e morreria. Assim, as diferentes culturas teriam por assim dizer uma natureza orgânica, e as suas formações políticas, econômicas, éticas e espirituais poderiam ser comparadas com folhas, flores e frutos. A história do mundo não representaria assim um processo linear contínuo, em constante progresso, mas sim um complexo marcado pela dinâmica vital de organismos culturais, cada um deles com a sua "alma". A morfologia da história seguiria o vir-a-ser, o florescimento e o cair das culturas. A cultura ocidental, que teria uma alma de cunho fáustico, determinada pelo impulso ao ilimitado, representaria uma transição para o último grau civilizatório, correspondendo à senilidade, quando já não há mais criação maior nas artes, nas ciências e na religião, apenas o trabalho técnico-organizativo.


No segundo volume da obra, um comentário ao primeiro, o autor procuraria uma elucidação metafísica para o enigma das culturas. Esse intento, não realizado, deu lugar a uma história do homem desde a sua origem, da qual restaram alguns fragmentos. No fim de sua vida, como escritor político, escreveu o "Über Preußentum und Sozialismus", com um capítulo sobre o conceito de "Prussianidade". Nesse texto, de interesse para o estudo histórico de concepções relativas a identidades, o autor procura elucidar histórico-culturalmente os elos e as diferenças entre o mundo prussiano e o de inglês-americano (Oswald Spengler, "Über den Begriff des Preussentums",  A. Hübscher (ed.), Deutsche Geisteswelt II, Hanau: W. Dausien, 1986, 266-277)


"Prussianidade" e mundo anglo-saxão

A Prussianidade (Preussentum) não seria para Spengler apenas definida pela região geográfica, ainda que tenha sido na Prússia o local onde tivesse encontrado a sua forma maior de expressão. Prussianidade seria um sentimento de viver, um instinto, um complexo espiritual e de alma. Para êle, nem todo o inglês assim nascido seria um inglês no sentido próprio do termo, nem todo aquele nascido na Prússia um prussiano. No termo Prussianidade residiria tudo o que o alemão possuiria quanto ao querer, ao dever e ao poder. Existiriam assim naturezas prussianas em toda a Alemanha, como seria o caso de um F. List (1789-1846), de um G.W.F. Hegel (1770-1831).

Na sua interpretação histórico-cultural e histórico-política, Spengler parte do povoamento das regiões eslavas ao Leste por alemães de todos os grupos. A região teria sido dominada sobretudo por aqueles alemães da Saxônia de Baixo, e, assim, o cerne do povo prussiano seria aparentado com o inglês. Os saxões, frísios e anglos foram aqueles que, em grupos dos Wikingers, em geral sob nomes normandos e dinamarqueses, submeteram o mundo celta britânico.

Entretanto, dois imperativos morais contrários ter-se-iam desenvolvido do espírito dos Wikingers e das ordens religiosas dos cavaleiros alemães. Uns traziam a idéia germânica em si, outros sentiam-na acima de si: independência pessoal e comunidade supra-pessoal, o que poderia ser chamado de tendências ao individualismo e ao socialismo. Por detrás desses conceitos existiriam as mais altas virtudes: de um lado, auto-responsabilidade, auto-determinação, força de decisão e de iniciativa, de outro fidelidade, disciplina, esquecimento de si e auto-disciplina. Dois seriam os intuitos diferenciadores: o ser livre e o servir. Nada seria mais difícil do que tais imperativos, e povos cujo espírito foram marcados pelo "querer ser livre" e pelo "poder servir" poderiam ousar um grande destino.

Paralelos da identidade prussiana com a ibérica

O servir representaria o antigo estilo prussiano, aparentado com o costume espanhol, aqui alcançado através das lutas medievais contra os inimigos da Cristandade. Não o eu, mas o nós, o sentido de comunidade é que determinaria tal atitude. Aqui não se trataria de cada um por si, mas todos por todos, de liberdade em obediência. A armada prussiana, o funcionalismo prussiano, tudo seria produto de um pensamento disciplinador.

Do outro lado, o que foi recebido dos Wikingers teria sido levado ao Oeste americano, uma continuação tardia das viagens à Groelândia do período Edda. A expansão do mundo de língua inglêsa no continente americano representaria uma enorme emigração de germanos com a sua tendência ao longínquo e à expansão sem limites. Era, porém, uma expansão separada da terra-mãe e portanto sem o basalto interior, e, embora trazendo traços da antiga diligência e nobreza, era sem raízes.

Tipo inglês e Tipo prussiano

Com essa interpretação histórico-cultural de associações orgânicas, Spengler procurou explicar o caminho configurador de um tipo inglês e de um tipo prussiano. Seria a diferença entre um povo cuja alma ter-se-ia formado da consciência de existência insular e de outro que protegia a sua terra que, sem fronteiras naturais, poderia ser atacada por todos os lados. Na Inglaterra, o Estado organizado teria sido substituído pela ilha. Um país sem Estado apenas poderia surgir sob essas condições. A alma inglêsa teria sido despertada em auto-consciência no século XVII. O povo prussiano teria sido configurado no século XVIII pelos Hohenzollern que, vindo do sul, receberam o espírito da região, tornando-se servidores da idéia da ordem do Estado.

Maximo e mínimo no pensar um Estado suprapessoal de cunho social, Estado e Não-Estado, tais seriam a Inglaterra e a Prússia como realidades políticas. Sem obrigatoriedade escolar, sem obrigatoriedade militar, sem seguros, assim é que a Inglaterra havia caminhado através do tempo. Essa inimizade contra o Estado teria a sua expressão no termo "society", usado em lugar de "state". Como "société" passara à França à época do Iluminismo. O iluminismo alemão passara a utilizar-se do termo "Gesellschaft", no sentido de "human society". Na Inglaterra, a noção de Estado teria sido substituida por aquela do homem privado livre que, sem Estado, exige a luta sem escrúpulos pela existência. H.Th.Buckle (1821-1862), Th. R. Malthus (1766-1834), Ch. Darwin (1809-1882), vendo a luta pela existência como forma fundamental da "society", teriam tido razão sob o ponto de vista de sua cultura. Esta teria sido a prática de Guilherme o Conquistador, em 1066, também a das companhias comerciais britânicas que exploraram o globo, por último o interior da África do Sul. O homem particular seria o conceito complementar de "society".

Ética do Sucesso e Ética do Dever

Como resultado dessa ética decorrente do desenvolvimento histórico-cultural, o inglês, fechado na sua ilha, teria alcançado uma unidade de atitude exterior e interior, o que nenhum outro povo da Europa Ocidental teria conseguido. Teria assim surgido uma sociedade aristocrática, com ladies and gentlemen unidos por um sentimento comum forte, um tipo comum de pensar, sentir e agir. Desde 1750, essa atitude teria dado o tom à civilização moderna, primeiramente na França, podendo-se aqui pensar no estilo Empire. Essa comunidade seria determinada por um sentimento comum do sucesso, da felicidade, não do dever, como na Prússia. Os inglêses tornaram-se assim os "olímpicos" do comércio, reunidos em ceia festiva tais como os Wikingers com os seus sucessos, não como as mesas os cavaleiros medievais. A riqueza tornou-se condição para o pertencer à sociedade, sendo ao mesmo tempo marca, objetivo, ideal e virtude.

Somente a Inglaterra possuiria para o Spengler o que se poderia denominar de cultura social. Uma sociedade prussiana desse tipo não existiria. O estilo prussiano teria levado a uma consciência de comunidade determinada não pela tranquilidade, mas pelo trabalho, pela classe como comunidade de trabalho, pela profissão como consciência do ser útil para o todo, para o Estado. A Ética não seria aqui a do sucesso, mas a do dever, o que se expressaria no funcionalismo e nos costumes de trabalho. O pertencer a uma determinada esfera social não se determinava aqui pela riqueza, mas pela posição no todo.

A igualdade, salientada pelo burguês francês da Revolução, não corresponderia nem à distância inglêsa, nem à alemã. Ao esnobismo inglês corresponderia o gosto alemão por títulos. Expressão mais evidente dessa diferença seria o traje, para o inglês a roupa civil, característica do indivíduo particular, de uma Ética do ter, para o prussiano o uniforme, expressão não da existência particular, mas do serviço à comunidade, não do sucesso da atividade de vida, mas da própria atividade. O francês, avesso a impulsos fáusticos, teria a sua expressão na moda feminina.

A atitude de servir em obediência e em negação de si, livre na alma de delimitações da vida mundana, com plenitude profunda de sentimento e em pureza de coração, seria aquela que poderia ser encontrada na rainha Luise (1776-1810) ou em Guilherme I (1797-1888). O prussiano teria uma piedade sem dogmas, não exteriorizada, e que se manifestava no agir com o sentido do dever. O inglês, independente, teria formado uma religião leiga com a bíblia por fundamento, e tudo o que fazia era visto sempre como correto eticamente. O sucesso surgiria aqui como manifestação da graça divina. A responsabilidade pela moralidade da ação seria entregue a Deus, ao contrário do pietista alemão, que tomaria a si a responsabilidade pelos seus atos.

Para os inglêses e os americanos, o objetivo do trabalho seria o sucesso, o dinheiro, a riqueza. O trabalho surgiria apenas o caminho a ser seguido de forma tão confortável quanto possível para alcançá-lo. A luta pelo sucesso seria assim inevitável, mas a consciência puritana justificaria todos os meios. Quem se encontrasse pelo caminho seria simplesmente posto de lado: indivíduos, classes e povos, pois esta teria sido a vontade de Deus. Para o prussiano e para a Ética de cunho social, o dever deve ser cumprido pelo trabalho.

A Ética capitalista, inglêsa, diria: torne-se rico, assim não precisará mais trabalhar. Essa Ética teria levado à criação do tipo do "yankee", com o seu fascinante otimismo prático. A outra Ética, ao contrário, assustaria. Uma seria para um país sem estado, para egoístas e naturezas de Wikinger, com a tendência a contínuas lutas, tais como se manifestaria no esporte inglês e o que corresponderia a um darwinismo econômico. A outra equivaleria à idéia da luta pela felicidade não de cada um, mas do Todo. 

A cultura da Europa Ocidental teria sido assim sobretudo marcada por duas escolas filosóficas, a inglêsa do egoísmo e sensualismo, ao redor de 1700, e a prussiana do idealismo, ao redor de 1800. Th. Hobbes (1588-1679) pronunciara a sua teoria do selfish system do egoísmo, a otimista filosofia Whig da utilidade geral, e A.A. Shaftesbury (1671-1713) visualizara o gentleman, o Tory, a personalidade soberana que vive em bom gosto. Para os alemães, o verdadeiro seria I. Kant (1724-1804), com o seu desprezo pela felicidade, pelo útil e com o seu imperativo categórico do dever, e Hegel, que, com o seu sentido pelo real, teria colocou no centro de seu pensamento histórico o destino dos estados.

(...)


Síntese de trabalhos apresentados por estudantes em seminários. As discussões terão prosseguimento




  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais - Academia Brasil-Europa (A.B.E.) - e do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (Institut für Studien der Musikkultur des portugiesischen Sprachraumes, I.S.M.P.S. e.V.), visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens: http://www.brasil-europa.eu


  2. A A.B.E. é entidade exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias. É, na sua orientação teórico-cultural, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. A Organização de Estudos de Processos Culturais remonta a entidade fundada e registrada em 1968 (Nova Difusão). A A.B.E. insere-se em tradição derivada de academia fundada em Salzburg pelos seus mentores, em 1919, sobre a qual procura sempre refletir.