Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 122/14 (2009:6)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2009 by ISMPS e.V. Edição reconfigurada © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2511


 


Significado e problemas dos estudos guilherminos em contextos euro-brasileiros
Reflexões em Doorn, Província de Utrecht, Países Baixos, 2009, a partir de releituras das recordações de vida da filha de Guilherme II, Duquesa Viktoria Luise (1892-1980)


Vitoria Luise. Arquivo ABE

 



Doorn. Foto A.A.Bispo 2009. Copyright
Este texto apresenta uma súmula de estudos motivados pelos 150 anos de Guilherme II (1859-1941). Sem objetivos políticos ou de engrandecimento da personalidade do último imperador da Alemanha, os trabalhos justificaram-se pela importância da época guilhermina para o Brasil, sobretudo sob o aspecto das regiões coloniais. Nesse sentido, inscreveram-se no programa da Academia Brasil-Europa dedicado a estudos do mundo de língua alemã e mundo de língua portuguesa.

A orientação teórico-cultural insere-se na tradição da sociedade dedicada à renovação dos estudos culturais (Nova Difusão 1968), a atual Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais - Academia Brasil-Europa.






Doorn. Foto A.A.Bispo 2009. Copyright

Colunas à esquerda e à direita.
Imagens da Casa Doorn, Países Baixos.
Fotos H.Hülskath 2009

 
Doorn. Foto A.A.Bispo 2009. Copyright
Significado dos estudos guilherminos

Por diversos motivos justifica-se uma consideração especial do último imperador da Alemanha, Guilherme II (1859-1941), nos estudos culturais em contextos internacionais. Basta lembrar que todo um período histórico-cultural é designado pelo seu nome, o guilhermino, com êle se associando características da arquitetura e das artes, da literatura e da vida cultural e social em geral, e que tiveram também repercussões em outros países, entre eles o Brasil. A fase histórica assim designada foi uma época de grande desenvolvimento da Alemanha, época de prosperidade material e de intensa vida científico-cultural, ponto alto da história do Império alemão iniciado com a vitória na Guerra Franco-Prussiana, fase encerrada com a tragédia da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), com a derrota, com a abdicação e a proclamação da república.

Pesquisa de base, Ciências e Técnica. Institutos Kaiser Wilhelm

A época aqui considerada conheceu grandes empreendimentos científicos e culturais, assim como a fundação de várias instituições de pesquisa. Êle próprio cultivou interesses científicos, entre outros no âmbito da Arqueologia.

Já no início da época de seu govêrno teve a consciência de viver em período de transição, marcado pelo desenvolvimento da técnica. A abertura para o mundo possibilitada pelo progresso dos meios de transportes e, em particular, pela navegação, exigia uma nova atitude, voltada ao progresso, ao novo, às ciências e à técnica.

O século XX surgia para êle como um "século do motor", sendo que as novas circunstâncias exigiam o desenvolvimento da pesquisa. Assim, Guilherme II fomentou a equiparação das Escolas Técnicas com as Universidade, valorizando as primeiras pelas grandes tarefas que se impunham, não apenas propriamente técnicas, mas sim também sociais.

A consideração especial de Guilherme II nos estudos histórico-culturais já se justificaria pelo fato de ter ficado o seu nome associado a uma das mais relevantes instituições de fomento da pesquisa científica de base, a Kaiser-Wilhelm-Gesellschaft, fundada em 1911, redenominada após a Segunda Guerra Mundial em Max-Planck-Gesellschaft (1948). O seu primeiro diretor foi Fritz Haber (1868-1934), que dirigiu o Instituto de Química física e Eletroquímica.

Política de desenvolvimento científico e de fomento da excelência

De particular significado é o escopo de política científica e de pesquisa que guiou a fundação desses institutos. A idéia motor era a de que institutos de pesquisa isolados deveriam completar o trabalho das universidades e das escolas superiores. Procurou-se concretizar aqui um ideal já propugnado por Wilhelm v. Humboldt (1767-1835). Esses institutos deveriam dedicar-se exclusivamente à pesquisa, independentemente das tarefas de ensino que cabem às universidades e escolas superiores. Os especialistas, livres de atividades didáticas e administrativo-universitárias, poderiam gozar da liberdade de voltar-se em tempo integral ao desenvolvimento de pesquisas de base, dispondo para isso dos mais modernos recursos técnicos e de um corpo de colaboradores. O objetivo era o de criar as bases necessárias para o maior possível desenvolvimento técnico e científico. Tal política científica era, assim, voltada ao futuro.

Ao mesmo tempo, representava também o intuito de criação de uma elite científica e técnico-científica. Para a realização de tal escopo, aplicou-se um princípio de institucionalização e organização disciplinar inovativo, diferente dos procedimentos usuais. Os institutos não deveriam ser fundados segundo princípios abstratos de divisão disciplinar ou segundo programas temáticos idealizados por órgãos ou planejadores, procurando-se a posteriori pesquisadores para integrá-los, mas, ao contrário, deveriam ser instalados ao redor de personalidades de comprovada competência.

Com esse princípio, baseando-se realisticamente nos recursos humanos de talento e dedicação já existentes, e valorizando-os, procurava-se promover a especialização e fomentar a excelência. Esse princípio tornou-se conhecido pelo nome do primeiro presidente (1911-1930) da Sociedade Kaiser Wilhelm, Adolf von Harnack (1868-1934). Guilherme II manteve relações estreitas com Adolf von Harnack, sendo por êle constantemente informado dos mais recentes desenvolvimentos, empenhando-se no levantamento de fundos. A von Harnack seguiram-se Max Planck (1930-1936), Carl Bosch, - Presidente da I.G.-Farben - (1937-1940) e o industrial Albert Vögler (1941-1945).

Continuidade de instituições

Em 1912, foram inaugurados os dois primeiros institutos em Berlim-Dahlem, ambos com o seu nome, o Kaiser-Wilhelm-Institut de Química, e o de Química física e Eletro-Química. O Instituto Kaiser-Wilhelm de Química é hoje o Otto-Hahn-Bau do Instituto de Bioquímica na Universidade Livre de Berlim. O Instituto Kaiser-Wilhelm de Química física e Eletroquímica é hoje o Fritz-Haber-Institut da Sociedade Max-Planck. O Instituto Kaiser-Wilhelm de Biologia, também fundado em 1911 em Berlim-Dahlem, é o hoje o Instituto de Biologia da Universidade Livre de Berlim. O seu edifício foi utilizado como prédio central da universidade de 1948 a 1994, sendo hoje ocupado por institutos jurídicos.

O Instituto de Pesquisa do Carvão, fundado em 1912 em Mülheim an der Ruhr, é hoje o Instituto Max-Planck de Pesquisa do Carvão. O Instituto de Fisiologia do Trabalho, fundado em 1912 em Berlim, foi transferido em 1929 a Dortmund e integrado no atual Instituto Max-Planck de Fisiologia molecular. O Instituto de Física, fundado em Berlim-Dahlem, em 1917, tornou-se Instituto de Física da Universidade Livre de Berlim (1948-1982), sendo o edifício hoje usado para o arquivo da Universidade. O Kaiser-Wilhelm-Institut de Pesquisa do Ferro, fundado em Aachen, em 1917, foi transferido em 1921 para Düsseldorf.

Além desses, pode-se citar, como empreendimentos institucionais da época, o Instituto de História da Arte, de 1913, Bibliotheca Hertziana, de Roma, o Instituto de Pesquisa do Cérebro, fundado em 1914 em Berlim e o Instituto de Psiquiatria, fundado em 1917 por Ludwig III (1845-1921) da Baviera, em Munique, agregado à sociedade Kaiser-Wilhelm em 1924.

Doorn. Foto A.A.Bispo 2009. Copyright
Significado para os estudos da imigração

O longo período de Guilherme II foi também marcado por um direcionamento mais intensivo das atenções ao Exterior, às relações com outros povos e países, o que também refletiu na vida científica, cultural e de divulgação. O desenvolvimento da construção naval e o dos empreendimentos de viagens levou também a uma substancial transformação das condições da emigração.

Nas comunidades alemãs da América do Sul, em particular nas regiões colonizadas por centro-europeus no Brasil, a época guilhermina marcou profundamente a vida das comunidades então em fase de desenvolvimento e consolidação. O retrato do imperador era mantido em posição de honra nas sedes de associações de canto, de tiro, de esportes e outras, um manifesto elo simbólico com o país de origem dos imigrantes que se manteve em alguns casos por muito tempo após a proclamação da república na Alemanha. Publicações e outros materiais impressos dessa época foram guardados cuidadosamente em acervos familiares, entre êles a história de 500 anos dos Hohenzollern, publicada em 1915 com o sentido de fortalecer a lealdade para com a dinastia prussiana em meio à Guerra (Otto Hintze, Die Hohenzollern und ihr Werk: Fünfhundert Jahre vaterländischer Geschichte, 8a. ed., Berlin: Paul Parey, 1916)

A consideração da época guilhermina é, portanto, de especial significado tanto para os estudos científico-culturais, para aqueles da emigração e da história colonial da Alemanha como também para os estudos da imigração a partir da perspectiva brasileira. É impossível desenvolver estudos mais aprofundados a respeito da memória das regiões colonizadas por alemães no Brasil, do processo de permanência e transformação de identidades dos imigrados, assim como de uma história intercultural refletida e crítica no contexto das relações Brasil-Alemanha sem exames mais diferenciados da imagem de Guilherme II e da época por êle marcada.

      

Dificuldades e problemas

Entretanto, os estudos dessa época, apesar de seu significado múltiplo para a história intercultural, encontram particulares dificuldades. Essas dificuldades não resultam tanto de questões de fontes, também existentes em outros casos; são, sobretudo, elas próprias de natureza cultural. Trata-se, antes de mais nada, de problemas de imagem de Guilherme II, estreitamente vinculados com a avaliação histórico-política de sua ação, problemas esses que representam barreiras subjetivas e objetivas aos pesquisadores.

A imagem negativa do último imperador alemão pode ser explicada sob diferentes aspectos. Em primeiro lugar, naturalmente, trata-se de uma das consequências da Primeira Guerra Mundial, uma vez que Guilherme II permaneceu identificado com a potência vencida, visto pelos vencedores como um dos principais responsáveis pela hecatombe, símbolo do inimigo odiado. Em junho de 1919, assinou-se o ditado de Versailles, que no seu artigo 227 determinava que os aliados e os poderes associados abriam processo contra Guilherme II. Deveria ser instalado um tribunal de julgamento, com juízes a serem nomeados pelo USA, pela Grã-Bretanha, pela França, Itália e pelo Japão. Nos países da Entente desenvolveu-se uma campanha que exigia o enforcamento do imperador. Do lado alemão, além de razões político-partidárias, a sua imagem ficou prejudicada pelo fato de não apenas ter ficado vinculada à guerra perdida, mas sim também por não ter morrido no campo de batalha junto aos inumeráveis soldados, obtendo abrigo e exílio no Estrangeiro.

Essa falta de heroicidade na sua imagem de vencido e exilado torna-se ainda mais negativa sob o pano de fundo da imagem por êle mesmo fomentada nas décadas anteriores, marcada por atitudes, símbolos e uma retórica de cunho de afirmação de poder, com demonstrações e encenações brilhantes, repletas do pathos de virtudes soldadescas e patrióticas, salientadas por uma linguagem pessoal pouco-diplomática, com expressões, afirmações e dizeres pouco cuidadosos.

A sua imagem é em geral associada ao militar e ao militarismo, à falta de modéstia e moderação, ao desejo e à expressão de poder, tendo como uma de suas expressões uma arquitetura marcada pelo volume, pelo pêso, pela grandiloquência de suas associações historicistas, características sentidas e criticadas como manifestações de falta de cultivo, civilidade e gosto estético sobretudo pelos franceses e países por êles influenciados. O pesquisador sem simpatias por militarismos, tendo perante de si tal quadro, e confrontado com indícios que provam aspectos pouco amáveis na personalidade de Guilherme II, sente-se inibido em dedicar maior atenção à sua figura, uma certa distância que se une ao receio de se ver inserido em determinadas correntes e tendências às quais não pertence.

Political Correctness

Há, assim, um outro fator que não poderia ser desprezado na consideração dos problemas que se levantam ao estudo cultural da época e da pessoa de Guilherme II: o da "correção política", ou melhor, o da inconveniência de seu tratamento. Se o pesquisador constata, em algumas publicações sobre o último imperador, que este teria sido, sob determinados aspectos, um preparador de espíritos para posteriores ocorrências altamente questionáveis, então sente-se ainda menos motivado em ocupar-se com um complexo de questões de tal forma difícil de ser analisado adequadamente, correndo riscos por toda a parte de incorrer em falsos julgamentos, de ferir susceptibilidades e de ser êle próprio aproximado de posições que não representa, enfim, de lembrar de um passado sentido como desagradável e que muitas vezes parece querer ser silenciado.

Tais questões de correção política, da conveniência do tratamento do tema colocam-se naturalmente de forma mais sensível se o trabalho histórico-intercultural, em particular aquele relativo às relações entre a Alemanha e o Brasil, for marcado, continuar ou passar novamente a ser marcado de forma mais intensa por instituições de representação e divulgação cultural de cunho oficial ou de proximidade a instâncias ministeriais e diplomáticas. Sociedades bilaterais, centros de estudos, emissoras e revistas que, procurando e sentindo a necessidade de apoio e projeção vinculam-se a esses órgãos ou utilizam-se de seus canais para a divulgação de suas atividades, sentem naturalmente um particular desconforto em considerar temas de tal forma sensíveis.

Escopo científico

Somente uma pesquisa intercultural autônoma, desenvolvida em âmbito especificamente científico, resultado de processos auto-organizativos de pesquisadores legitimamente qualificados e preocupados com a dignidade da própria ciência,  - tal como propugnado pela Academia Brasil-Europa - pode ter a independência suficiente para a consideração distanciada e diferenciada de complexos de questões sobrecarregados emocionalmente, marcados por imagens e associações pouco positivas e, no caso, pela projeção anacrônica no passado de conhecimentos ganhos e de julgamentos derivados de acontecimentos e ocorrências posteriores. Esse estudo é, porém, necessário no caso de Guilherme II e sua época, independentemente do fato de ser ou não desejável, considerando o seu significado para os exames da história intercultural e, mais especificamente, da imigração e da colonização alemã no Brasil.

Huis Doorn/Haus Doorn/Casa Doorn

A mais significativa instituição de cunho museal e memorial para reflexões relativas a Guilherme II é a Casa Doorn, situada na cidade de Doorn, na província de Utrecht, Países Baixos. Essa casa, pequeno palácio, foi onde residiu ex-imperador no seu exílio. Situa-se em meio a um grande parque e abriga hoje um museu. Guilherme II foi primeiramente abrigado no palácio Amerongen, tendo adquirido a casa de Doorn da baronesa Heemstra de Beaufort, em 1919.

A história da presença de Guilherme II em Doorn inicia-se com as inseguranças derivadas do pedido de extradição dos países vencedores. A decisão do govêrno dos Países Baixos era incerta, e a opinião pública ambivalente. Alguns achavam que Guilherme II deveria fugir para não cair nas mãos da Entente, idéia não aceita pelo ex-imperador. Esse chegou à conclusão que não poderia haver um julgamento correto por um tribunal onde os processantes eram os próprios juízes. No início de 1919, um grupo de americanos tentou até mesmo sequestrá-lo, a partir de Luxemburgo, chegando a entrar no castelo de Amerongen. O govêrno dos Países Baixos, apesar das pressões, decidiu não entregá-lo.

O museu continua a ser o principal ponto cultural de interesse da localidade de Doorn. O interior da residência foi conservado em grande parte no seu estado original, representando um testemunho do modo de vida do exilado, que ali viveu de 1920 a 1941. Guilherme II manteve, ainda que em pequenas dimensões, uma pequena Côrte, com sala de audiência, escritório do adjudante, alas separadas para o soberano, saguão onde realizava um serviço religioso diário na presença de todos os serviçais, biblioteca, grande cozinha e salas de refeições, onde se mantinha o cerimonial, sala de fumo, aposentos para a primeira e a segunda esposa, etc.

Os móveis, as obras de arte e as coleções de objetos e documentos provieram em grande parte do patrimônio familiar que, após a proclamação da república alemã, permitiu-se que lhe fosse enviado. Entre as muitas obras de interesse histórico e artístico, salientam-se o quadro da coroação do Príncipe Frederico III (1831-1888) de Brandenburgo a primeiro rei da Prússia, a coleção de receptáculos para rapé, de Frederico Grande (1712-1786), cartas da rainha Vitória, fotografias da família e pinturas diversas, entre elas dos fiordes noruegueses, região de particular preferência do imperador. Especial atenção merece a biblioteca ali conservada.

O museu permite assim que se vivencie a atmosfera e o ambiente intelectual do ex-soberano em exílio, rodeado de lembranças e fragmentos do passado e esperando o restabelecimento da monarquia na Alemanha. Nesse sentido de um prolongamento do passado, com a manutenção de modos de vida, de uma espécie de culto e cerimonial, de uma conservação no estrangeiro de uma memória viva e de um simbolismo da antiga Alemanha - de forma paralela aos desenvolvimentos contemporâneos no próprio país -, o museu da Casa de Doorn motiva questionamentos teórico-culturais diversificados. O seu significado, nesse sentido, supera aquele histórico-patrimonial e artístico dos objetos e das obras que abriga.


Igreja da cidade de Doorn, Utrecht.
O edifício contém fragmentos de pinturas murais do passado católico, testemunhos da destruição iconoclasta da época da Reformação.
Fotos A.A.Bispo, 2009

 
Mausoleu de Guilherme II e lápides de animais de sua estimação

No parque, encontra-se o mausoléu contendo os restos mortais de Guilherme II, por êle próprio projetado. Estes, segundo a sua determinação, devem retornar à Alemanha apenas quando nela for reinstaurada a forma monárquica de govêrno. Por ocasião da passagem dos 150 anos de seu nascimento, ali se realizou uma cerimônia em sua memória.

Na área defronte ao mausoléu, abaixo da águia simbólica, encontram-se as sepulturas dos cães que o acompanharam em vida, uma expressão de amor à criatura que coloca o ex-imperador aos olhos dos visitantes em luz muito mais favorável do que aquela que irradia de textos grandiloquentes do passado.

Reconstruções da história cultural do exílio em Doorn

Sobre a cultura doméstica, sobre o quotidiano do ex-imperador em Doorn, de suas posições quanto ao desenvolvimento posterior na Alemanha pode-se obter informações da literatura e, em particular, de testemunhos daqueles que ali estiveram.

Pode-se citar, aqui, por exemplo, um depoimento de Friedrich Wilhelm von Rauchhaupt (*1881), Professor de Direito Internacional e Comparado  e Direito Hispano-americano, de Heidelberg. (Friedrich Wilhelm von Rauchhaupt, Kaiserjagd vor hundert Jahren, em Rudolf Pörtner, Kindheit im Kaiserreich: Erinnerungen an vergangene Zeiten, Düsseldorf, Wien, New York 1987, 13-20). Participando de um Congresso em Utrecht, esse professor foi convidado a visitar Doorn. Ali, foi recebido por um ex-General alemão. Guilherme II constatou a sua chegada do terraço, anunciou porém que apenas ia recebê-lo depois do serviço religioso. Era um domingo de manhã, e ca. de 50 pessoas estavam presentes na grande sala onde se realizavam os cultos. O próprio Guilherme II o celebrou e fêz a pregação, por êle mesmo preparada. Após o culto, todos os participantes foram convidados para o almoço e para a recepção. As observações do ex-imperador, cheias de humor, contribuíam para descontrair a atmosfera. Na própria conversa com o ex-monarca, Rauchhaupt constatou o seu considerável conhecimento na área de Direito, em particular naturalmente do Direito alemão. Possuia uma memória excelente, lembrando-se de episódios ocorridos há mais de 40 anos.

Esse significado da religião para Guilherme II, marcada pelo rigorismo da tradição protestante a que se vinculava, determinou também em parte o seu relacionamento com a comunidade local de Doorn. A igreja da cidade guarda, no seu interior, mobiliário em parte doado por Guilherme II.

Das discussões: Diferentes interpretações da queda do sistema

O ambiente de Doorn surge como favorável para reflexões referentes às causas culturais e às ocorrências históricas que levaram à Primeira Guerra e à ruína do sistema. Um ponto de partida para a discussão das diferentes perspectivas e interpretações que aqui se oferecem é o livro de recordações da própria filha de Guilherme II, a Duquesa Viktoria Luise (Herzogin Viktoria Luise, Ein Leben als Tochter des Kaisers, 12. ed., Göttingen-Hannover: Göttinger Verlagsanstalt, 1973). Em capítulo intitulado de "Só e abandonado", a sua filha descreve os últimos momentos de Guilherme II como imperador alemão. Nesse capítulo, oferece uma interpretação dos fatos e do papel exercido pelo Chanceler Max von Baden (1867-1929) que, segundo as suas próprias palavras, não coincidia com aquela do seu próprio pai.

A inesperada declaração da liderança superior do exército de que a Guerra estava perdida, foi sentida como um choque em Spa e causou pânico em Berlim. Os chefes de partidos foram informados, causando consternação profunda. A opinião pública não havia sido informada a tempo relativamente à gravidade da situação. A morte de milhões de soldados, a fome e as dificuldades de anos haviam sido em vão. O pior, na opinião da autora, é que desapareceu a confiança em toda e qualquer liderança.Teria sido essa perda de confiança da opinião pública que arrastara a antiga ordem à ruína.

Segundo a filha de Guilherme II, o Chanceler Max von Baden estaria consciente que se processava uma revolução, e teria procurado configurá-la de forma pacífica, salvando o imperador e a dinastia dos Hohenzollern. Enquanto conservadores falavam abertamente de sua renúncia ao trono, o imperador teria, a seu lado, homens da democracia social que se mantinham leais. Por essa razão, Max von Baden teria tomado a si o sacrifício de assumir um papel ativo no processo da abdicação. Embora sendo tarde, procurara alcançar uma paz que permitisse que a nação continuasse a viver. Sacrificara-se, assim, segundo a visão da filha de Guilherme II.

Nessas condições, a autora salienta o papel da propaganda na derrubada do sistema. Essa fora dirigida tanto pela Entente como pela Rússia. O pedido da Alemanha para armistício de 3 de outubro, teria sido tratado de forma dilatada pelos aliados. Entendiam o pedido de suspensão imediata dos combates como expressão do esgotamento total da Alemanha. Numa primeira nota, o presidente W. Wilson (1856-1924) exigira como pressuposto a aceitação dos 14 pontos de janeiro de 1918 e saída das tropas dos territórios ocupados. Numa das notas, porém, Wilson passou a declarar de modo claro que a monarquia alemã era por êle vista como uma regime despótico, e que a deposição do imperador representava uma das condições a serem preenchidas antes da paz. A revolução deveria ser esperada a partir do próprio povo alemão. Exigia-se ou supressão da monarquia ou capitulação. A monarquia caiu e, apesar disso, exigiu-se a capitulação. (op. cit. pág. 193) 

(...)


As discussões terão prosseguimento







  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais - Academia Brasil-Europa (A.B.E.) - e do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (Institut für Studien der Musikkultur des portugiesischen Sprachraumes, I.S.M.P.S. e.V.), visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens: http://www.brasil-europa.eu


  2. A A.B.E. é entidade exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias. É, na sua orientação teórico-cultural, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. A Organização de Estudos de Processos Culturais remonta a entidade fundada e registrada em 1968 (Nova Difusão). A A.B.E. insere-se em tradição derivada de academia fundada em Salzburg pelos seus mentores, em 1919, sobre a qual procura sempre refletir.