Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 122/10 (2009:6)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2009 by ISMPS e.V. Edição reconfigurada © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2507


 


Comparação de Comparatísticas
Da Etnografia de orientação literária às novas tendências dos Estudos Culturais
Museu da arte decorativa popular ucraniana e Centro ucraniano de culturas tradicionais


200 anos de nascimento de Theodor Benfey (1809-1881)




Kiev. Foto A.A.Bispo 2009. Copyright
Este texto apresenta uma súmula de ciclo de estudos dedicados ao Leste Europeu nas suas relações com os Estudos Culturais Euro-Brasileiros desenvolvidos em Kiev, Ucrânia, em 2009. Odessa já fora alvo de visita de estudos anteriores (2003). Foi resultado de sessão dedicada às relações Ucrânia-Brasil do Colóquio Internacional pelos 450 anos de São Paulo, levado a efeito pela A.B.E. e pelo Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa através do seu centro no Brasil (IBEM) em cooperações com órgãos oficiais brasileiros, instituições de pesquisa, literatura e música e com a Universidade de Bonn, em 2004.


O ciclo deu prosseguimento a eventos anteriormente realizados em diferentes países do Leste da Europa. Esses estudos tiveram o seu início com uma primeira visita à Berlim à época da divisão da Alemanha entre República Federal da Alemanha e República Democrática Alemã, em 1975, seguindo-se viagem de estudos a esta última nos anos oitenta. Dentre os países considerados do Leste, destacaram-se no decorrer dos anos a Rússia, a Polônia, a Hungria, a então Tchecoslováquia e os países Bálticos. No corrente ciclo, tratou-se sobretudo de observar as novas condições que se abrem com as mudanças políticas do Leste para os estudos referenciados pelo Brasil. A orientação teórico-cultural insere-se na tradição da sociedade dedicada à renovação dos estudos culturais (Nova Difusão 1968), a atual Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais - Academia Brasil-Europa.






Kiev. Foto A.A.Bispo 2009. Copyright
Situação crítica dos estudos culturais da sociedade do observador


Com as recentes tendências dos estudos culturais, a área de estudos tradicionalmente designada pelo nome de Folclore (Ciência do Folclore ou Folclorologia) vem passando já há décadas por profundos questionamentos quanto a definição de objeto de estudos, de escopo, de diferenciação com relação a outras áreas disciplinares, de procedimentos metodológicos e de revisão de posições e de correntes de pensamento.


Essa discussão tem repercussões na situação da área de estudos no conjunto de outras disciplinas de natureza científico-cultural da área das Ciências Humanas. Questões relativas à sua inserção no sistema universitário relacionam-se com o seu reconhecimento acadêmico de disciplina conduzida segundo critérios de rigor e de reflexão teórica e metodológica adequados a um procedimento científico. Essa discussão tem consequências para o renome da disciplina, o prestígio de seus pesquisadores e, assim, para o exercício profissional e para a formação de novos especialistas.


Essa singular situação é altamente prejudicial para o desenvolvimento de uma Ciência da Cultura/Culturologia no sentido específico do tema, uma vez que o complexo de questões relacionado com a área até hoje designada pelo termo Folclore dela constitui parte importante, senão privilegiada. As razões dos problemas por que passa essa área disciplinar são múltiplas, e não apenas relacionadas com a sua denominação e definição do seu objeto de estudo.


Problemas da instrumentalização da pesquisa


Uma dessas dificuldades, talvez a principal, é resultado da instrumentalização de expressões culturais populares e tradições para fins políticos e político-culturais em geral, com repercussões no edifício teórico respectivo, tornando mesmo a observação empírica na área particularmente susceptível a interpretações de natureza ideológica.


Compreende-se que, numa área disciplinar que se refere "à cultura da sociedade do observador",  - diferenciando-se aqui da Etnologia -, e na qual necessariamente questões de identidade desempenham papel relevante, há sobretudo o perigo de que a natureza científica do seu estudo seja prejudicada por ufanismo patriótico e por posições nacionalistas. Se, com um referenciação de seu campo de estudos às tradições e expressões tradicionais da cultura popular corre-se o risco de posições tradicionalistas, a menção ao popular, à cultura popular e ao povo abrem portas a teoretizações políticas e sócio-políticas, tanto de direita, quanto de esquerda.


Nacionalismo nas suas diversas acepções


Em alguns países da Europa Ocidental, entre êles a Alemanha, o uso político-cultural de tradições populares e a orientação política da Volkskunde à época do Nacionalsocialismo prejudicou a longo prazo o prestígio da disciplina. Apesar da existência de institutos e de museus, a Volkskunde, ainda que sob outras designações, tais como a de Etnologia Européia, não readquiriu no sistema universitário a posição a que faz jus.


Em vários outros países foi essa área disciplinar colocada a serviço do Nacionalismo, em particular de épocas totalitárias, e concepções nacionalistas marcaram correntes de pensamento e a literatura específica. Esse foi o caso de Portugal e do Brasil. Entretanto, apesar de tendências a uma nova redeterminação disciplinar do complexo de questões tratado sob o termo de Folclore, a denominação se mantém na maioria dos países latino-americanos.


A situação de crise da área disciplinar pode ser, porém, constatada sob muitos aspectos. Apenas reflexões aprofundadas sobre questões de identidade e diferenciação, nas suas várias implicações e conotações, inclusive com referência ao próprio observador, poderão apontar caminhos para a solução dos problemas.


Observar os observadores


Para isso, porém, torna-se necessário sobretudo um observar do observador. A atenção passa a ser dirigida ao estudo dos pressupostos históricos, histórico-culturais e sociológicos que levaram à formação de rêdes, condicionando a produção científica e a formulação de interpretações e teorias em outros contextos. A observação de situações em outros países, de estruturas de trabalho e de procedimentos práticos e teóricos é caminho importante para o tratamento dessa tarefa. Pressupõe a aproximação entre pesquisadores de diferentes contextos culturais, contribui assim à cooperação e ao intercâmbio. Para os latino-americanos, uma possibilidade privilegiada que aqui se abre é a observação da situação nos países do Leste europeu.


Situação de mudança no Leste da Europa


A observação adequada do estado dessa área disciplinar no Leste europeu exige que se considere a fundamental reviravolta política por que passaram nas últimas décadas e o reflorescimento de tendências nacionais das novas nações emancipadas. À época da União Soviética, a cultura popular e o seu estudo haviam recebido particular atenção sob a perspectiva de concepções marxistas, ou seja, foram colocados a serviço de fins políticos e tratados sob critérios ideológicos. A emancipação política dos países do Leste europeu, sendo acompanhada por um despertar de sentimentos patrióticos nacionais, e em parte por uma reconstrução de identidades nacionais, levou a uma revalorização de expressões da cultura tradicional, entretanto agora sob o signo das novas circunstâncias. Apesar de reorientações de interesses - por exemplo através de uma nova atenção a tradições religiosas - o significado de danças tradicionais, de trajes, de instrumentos musicais populares não apenas se manteve, mas até mesmo cresceu em alguns países, por exemplo naqueles do Báltico. Essa sobrevivência e mesmo recrudescimento em anos posteriores ao sistema totalitário surpreende sob muitos aspectos e levanta questões.


A singularidade desse fato consiste sobretudo na transformação teórica que necessariamente acompanhou a radical mudança política. A situação é, porém, ainda difícil de poder ser analisada, tudo indicando haver resquícios de correntes do passado recente, tendências provindas de passado ainda mais remoto, recepções de novos impulsos do Ocidente e desenvolvimentos próprios. Os países do Leste europeu oferecem assim possibilidades privilegiadas para observação de transformação de rêdes de pesquisadores e de correntes políticas sob diferentes condições políticas e de inserção política das reflexões culturais. Para os pesquisadores latinoamericanos, a visita aos vários museus, instituições de pesquisa da cultura tradicional e de grupos de cultivo de tradições nos países do Leste europeu surpreende pela sua estruturação e qualidade. Uma cooperação intelectual e um intercâmbio mais intenso seriam altamente desejáveis, o que apenas é dificultado pela barreira do idioma.


Estudo de caso: Ucrânia


Para os pesquisadores e interessados em história da cultura popular e na museologia especializada, a Ucrânia é sobretudo conhecida por abrigar o maior museu ao ar livre de cultura camponesa e popular do Leste Europeu, o de Pirogovo. Em meio-ambiente marcado por prados e bosques, reedificaram-se ali construções tradicionais e históricas. Entre elas, salienta-se a mais antiga cabana ucraniana, de 1587, e a mais antiga igreja construída em madeira do país. As construções, na sua maioria de proveniência rural dos séculos XVI ao XIX, foram trazidas de várias regiões do páis e restauradas. Abrigam objetos da vida quotidiana de camponeses do passado e exposições de técnicas de trabalho e de artesanato. A organização do museu segue critérios de divisão histórico-etnográfica em áreas.


O museu pode ser comparado nas suas concepções gerais com os muitos museus ao ar livre de países europeus do Ocidente, em partircular da Alemanha. Entretanto, há aqui uma tendência mais de cunho formativo voltada ao fortalecimento de uma consciência nacional. Constata-se a preocupação de não apenas oferecer ambientes e retratos da vida do passado para fins de informação e recreação instrutiva, mas sim de possibilitar uma visão viva da cultura tradicional, mantendo-a, ao mesmo tempo, em vida. A esse escopo contribui o cultivo de tradições literárias, lendas e contos, e, significativamente, também textos de autores que pesquisaram e se utilizaram do folclore, assim como poesias de cunho nativista e regionalista. Esse intituito permite entrever concepções tradicionalistas a serviço da consciência nacional através da recriação de atmosferas de uma vida considerada como mais propriamente ucraniana do passado.


Etnografia e Etnologia


Kiev. Foto A.A.Bispo 2009. Copyright
Dentre as instituições de Kiev que maior interesse oferecem para pesquisadores de expressões tradicionais e de cultura popular em geral salientam-se o Museu de artes ornamentais e o Museu de culturas tradicionais. Embora afins, ambas as instituições, vizinhas, apresentam diferenças quanto a seu escopo e o trabalho que nelas se desenvolve. A primeira, situada no areal do Mosteiro das Cavernas de Kiev, é dirigida mais à Etnografia no sentido tradicional do termo, assim como particularmente usual nos países do Leste no passado. A tendência ao visual, aos objetos apresentados na sua exterior materialidade e estética é associada à procura e demonstração de similaridades e diferenças na ornamentação através de cotejos.


O intuito sistemático de demonstração de características e constâncias torna-se especialmente evidente na seção de tecidos, que abre a exposição, e onde, em longas peças pendentes, os diferentes motivos são dispostos um ao lado do outro. Assim preparado, o visitante é levado à seção de trajes típicos, de festa e regionais. Ainda que preparados por textos descritivos, a apresentação é guiada pelo tratamento temático, não pelo de contextos.


A importância do ver, do cotejo visual de ornamentos e motivos manifesta-se na impressionante coleção de ovos de Páscoa pintados do Museu, onde a variedade de motivos, orgânicos ou geométricos, de cores, de técnicas de incisão e de pintura, é apresentada em centenas de exemplares ordenados em grupos segundo estilos.


O mesmo pode ser constatado em outras seções, inclusive na apresentação de instrumentos musicais. A concepção organológica segue aqui princípios comparativos que foram usuais nos países ocidentais do passado, onde o próprio instrumento, com as suas características materiais e construtivas, assim como de produção sonora, surge por assim dizer em visão positivista como principal objeto das atenções e espécie de catalisador cultural.


O segundo museu, o das culturas tradicionais, corresponde mais às concepções da Etnologia Cultural e disciplinas afins, tais como hoje mais se conhece na Europa Ocidental. Além da maior consideração de funções e contextos, tratados também em exposições especialmente dedicadas a determinados complexos temáticos - por exemplo de bonecas com trajes regionais - constata-se um maior interesse por questões de cunho sociológico, de emigração, de vida na imigração, de memória de grupos populares e minorias.


Comparativística. Desencontros quanto a designações


Numa tentativa de aproximação às concepções que orientam o trabalho voltado às culturas tradicionais na Ucrânia, poder-se-ia partir do significado que é dado à Comparativística como área de estudos. Esta designação surge com conotações positivas de área disciplinar marcada por interesses amplos, de abertura teórica a impulsos internacionais e adequada aos processos de globalização do presente, empenhada hoje na superação de delimitações eurocêntricas.


Para o observador familiarizado com a situação e o debate em outros países europeus, o termo pode causar estranheza e despertar associações ambivalentes. Assim, na Alemanha, país de origem da Musicologia Comparada ou Comparativa, passou-se a criticar o termo desde que, sob a influência de correntes norte-americanas do pensamento, essa área disciplinar passou a ser designada por Etnomusicologia. Através dessa discussão, levada por pesquisadores assim formados na Alemanha ou nos Estados Unidos, e retomada ad nauseam em publicações e simpósios que procuram salientar o significado do termo Etnomusicologia, a comparação, o comparativo e o comparativismo passaram a receber conotações negativas.


O confronto com correntes de pensamento no Leste europeu pode contribuir ao esclarecimento dessa situação e abrir caminhos para uma reorientação teórico-cultural de várias disciplinas.A tendência comparatista dos estudiosos ucranianos não foi sempre bem vista durante o período soviético, sendo considerada como reacionária e cosmopolita. O próprio termo foi evitado, utilizando-se a concepção de Tipologia comparativa, de Pesquisa comparativa ou de Relações intraliterárias e influências recíprocas.


Hoje, a Comparatística é representada na Ucrânia por vários intelectuais. Entre êles Dmytro Zatonskyj, especialista em assuntos alemães e que já foi vice-presidente da Associação Internacional de Literatura Comparada. As suas publicações muito contribuem para que a Ucrânia seja conhecida e considerada nos meios acadêmicos da Europa, em particular na Áustria. Outro erudito representante do Comparatismo é o eslavista Hryhorij Werwes. Também dedica-se à história e à metodologia da literatura no contexto global eslavo, inserindo-a também no contexto geral das relações internacionais.


Comparação na literatura, mitologia e canções

Os estudos relativos às tradições populares da Ucrânia apresentam na sua fase inicial, como em muitos outros países, uma influência do desenvolvimento na Europa, em particular na Alemanha e na França. A perspectiva metodológica predominante foi sobretudo literária. As obras e concepções de Johann Gottfried Herder (1744-1803) e dos irmãos Jacob Grimm (1785-1863) e Wilhelm Grimm (1786-1859) levaram também aqui a um interesse especial pela pesquisa de contos populares, de lendas, da mitologia e da história cultural. De significado foram também as concepções de intelectuais franceses, entre eles Hippolyte Taine (1828-1893), através de sua obra sobre as fábulas de La Fontaine (1621-1695) e pelos seus artigos na muito difundida Revue des Deux Mondes.


Pesquisador de influência na Ucrânia foi o filólogo alemão Theodor Benfey (1809-1881), tradutor de mitos da Índia (Pantschatantra, 1859), em cujo prefácio e nos seus comentários forneceu subsídios para o desenvolvimento de estudos de cunho comparativo-culturais, fundamentando a pesquisa comparatística de estórias populares no país, sobretudo no sentido de um estudo de migrações de temas. Influenciou, assim, a obra do pesquisador russo Fjodor Buslajew (1818-1897).


Theodor Benfey, de origem judaico-alemã, dominando o hebraico, com formação em Göttingen e em Munique, passou de seus interesses pelos Clássicos e pela Filologia semita ao estudos do Sânscrito e do Russo. Deste idioma, traduziu a obra de V. P. Vasilev a respeito do Budismo. Como filólogo, realizou um trabalho sobre os nomes de meses hebraicos, demonstrando serem derivados do persa. Um artigo sobre a Índia e o Léxico de Raízes Gregas (1839-1842) trouxeram-lhe renome e valeram-lhe um prêmio do Instituto da França. Em 1848, editou o Sama-veda, seguido por um Manual de Sanscrito (1852-1854) e pela edição do já citado Pantschatantra (1859). Em 1866, publicou o Dicionário Sânscrito-Inglês. Em 1869, tratou da história da pesquisa filológica alemã, em particular dos estudos orientais.


Estudo comparativo de cantos populares


Essa linha de desenvolvimento do pensamento e da pesquisa, de fundamentação literário-comparativa, influenciou também o estudo das canções populares. Assim,  pesquisador, historiador e escritor Mykola Kostomarow (1817-1885), na sua "Mitologia eslava", de 1848, procurou estudar o desenvolvimento do canto popular ucraniano no contexto dos povos eslavos, emprestando especial atenção a questões de simbolismo.


Comparações, migrações, raízes e conteúdos nacionais


Um folclorista, filólogo e historiador de relêvo foi Mychajlo Drahomanow (1841-1895). Um de seus principais temas foi o da análise de relações entre conteúdos nacionais e internacionais em diferentes contextos culturais. Desenvolveu um projeto monumental, os "Estudos sobre o Folclore e a Literatura ucraniana", publicado em Lemberg, entre 1889-1907, dos quais apenas foram publicados quatro volumes. Procurou encontrar raízes indo-européias da cultura ucraniana através da análise de textos, traçando um panorama do desenvolvimento espiritual do povo ucraniano e das migrações de motivos e de temas no decorrer dos séculos. No seu estudo sobre o Bunjaka, de 1900, procurou comparar a lenda ucraniana com o mito do rei Midas. Ao contrário do que muitos autores tentavam, procurou estudar a difusão dessa lenda não pela suposição de um local de nascimento original de vários povos, mas sim pelas suas relações políticas, econômicas e culturais. Chegou até mesmo a interpretar fatos da cultura do quotidiano na Ucrania sob o pano de fundo de estudos indo-europeus. Tentou, sobretudo, mostrar a inserção da cultura ucraniana em processos europeus no seu todo.


Essa tendência do antigo comparatismo, levando à procura de raízes em passado remoto, sobretudo indo-européias, é resultado da recepção de correntes de pensamento do Ocidente e que também se fizeram sentir na obra de pesquisadores brasileiros de fins do século XIX e início do XX.


Originalidade ou reelaboração


Outra personalidade de importância na corrente de pensamento voltada aos estudos mitológicos e histórico-culturais foi  Mykola Daschkewycz (1852-1908). A partir da comparação de textos ucranianos com russos e poloneses, chegou à conclusão que não seria a originalidade, mas sim a reelaboração quanto ao conteúdo de determinado material. Procurava, assim, vir de encontro à procura de uma identidade própria da Ucrânia, em partir de sua literatura, procurando nela encontrar um cunho próprio diferenciador das culturas vizinhas. Também aqui o pesquisador brasileiro constata paralelos com o pensamento de determinados estudiosos da cultura e folcloristas do Brasil que procuraram contornar a questão da originalidade nos estudos voltados à cultura popular salientando o aspecto da reelaboração ou reinterpretação de materiais recebidos.


Comparatismo, Nacionalismo e Internacionalismo


O escritor Iwan Franko (1856-1916), autor de multifacetada obra, desenvolveu uma concepção de literatura do mundo, tratando de questões de um Nationalismo formal e real (1889), assim como das relações entre o Nacionalismo e o Internacionalismo na literatura moderna (1898). Para êle, tarefa do pesquisador seria a de distinguir o Nacional e o Internacional e mostrar como o material e as formas estrangeiras podem ser assimiladas e nela ser integrados elementos característicos. Dedicou-se não somente à análise comparativa de obras de escritores europeus do Ocidente e eslavos. Colocou pela primeira vez a questão do significado das literaturas eslavas e a tese das relações recíprocas entre o nacional e o universal da humanidade no desenvolvimento cultural dos povos. A relevância de Iwan Franko para estudos da história do pensamento relativo à pesquisa cultural no seu todo foi salientada, sob o aspecto da literatura, em simpósio realizado em 1986 em Lemberg, sob o patrocínio da UNESCO.


Similar direcionamento poderia ser considerado no pensamento de outros pesquisadores, entre êles M. Drahomanow e M. Daschkewycz.


Comparatismo e Marxismo


Olexander Biletzkij (1884-1961) foi marcado na sua obra pela orientação de fundamentação ideológica marxista da época da República Soviética da Ucrânia, uma vez que era diretor do Instituto de Literatura da Academia das Ciências. Sob essa perspectiva, procurou salientar a dimensão internacional de pensadores ucranianos, intento expresso em vários títulos de suas obras (Schewtschenko e a Literatura Mundial, 1939; Schewtschenko e a identidade do mundo eslavo, 1952; Franko e a literatura da Índia, 1956; O significado mundial de Ivan Franko, 1956; A literatura ucraniana entre as outras literaturas do mundo, 1958).


Comparatismo e identidade na imigração


Dmytro Tschizewskij (1894-1977) foi um dos autores mais significativos daqueles da imigração ucraniana, tendo atuado em várias universidades européias, sobretudo alemãs, assim como em Harvard USA. Estudou, entre outros, o motivo do atirar da lança de cunho mágico entre os eslavos, entre os escandinavos e na India. Tratou da questão da verdade exilada na literatura antigo-ucraina, russa, tscheca, alemã e inglesa. Procurou salientar menos os aspectos sociológicos e mais os estéticos imanentes, analisando textos sob o aspecto tipológico.


Comparatismo, migrações temáticas e globalização


Um dos temas de maior significado da Comparatismo para os Estudos Culturais em geral diz respeito à questão de materiais temáticos e figuras migrantes ou permanentes. Pesquisas desse assunto são desenvolvidas sobretudo na Universidade Czernowitz, onde atua Anatolik Wolkow. Dentre os vultos tratados e que surgem em diferentes culturas do mundo, encontram-se muitos da Antiguidade e da Idade Média, salientando-se, no caso das relações com o mundo ibérico, a figura de Don Quixote.


Dentre os intelectuais que representam essa orientação, cumpre salientar Anatolij Njamtzu, que trata, nas suas obras, entre outros aspecos, do mito e da lenda na literatura global, do Novo Testamento na literatura mundial e da tradição cultural global na literatura do mundo.


Na comparatística ucraniana, assim, sob diferentes aspectos e segundo diferentes correntes de pensamento, consideram-se complexos culturais que extrapolam de muito a cultura nacional ou regional, entre êles o babilônico-assirio, o irano-taschikische, dando-se particular atenção à questão de migração de assuntos, temas e motivos.


Da orientação filológica à teórico-cultural

Apesar de todos os aspectos positivos das concepções do Comparatismo ucraniano e de suas contribuições aos estudos culturais em geral, trata-se de corrente de origens e de cunho filológico e teórico-literário. Os debates das últimas décadas - tais como aqueles que correspondem ao escopo da Academia Brasil- Europa - salientam a necessidade de uma mudança teórica e de método nos estudos culturais. De uma orientação filológica da Literatura Comparada deve-se passar ao desenvolvimento de uma Culturologia no sentido próprio do termo: não são os estudos culturais que devem ser inseridos ou guiados pela literatura, mas sim a pesquisa da literatura deve inserir-se nos estudos culturais. Para isso, porém, os estudos culturais devem aprender a diferenciar a sua crítica com relação ao procedimento comparativo, abandonar preconceitos e julgamentos generalizadores.

Comparações, mecanismos e processos

Um ponto de partida para essa mudança de perspectivas parece ser o da consideração mais aprofundadada da ordenação simbólica subjacente às festas tradicionais da Ucrânia. Os elos entre o ciclo das festas anuais com a vida humana, também com as suas estações ou fases, justificam o emprêgo de muitas dessas expressões tradicionais nas festas familiares, nos assim-chamados ritos de passagem, nascimento, casamento e morte.

A linguagem simbólica das expressões festivas ucranianas mereceria ser comparada com aquelas das tradições latinoamericanas, em especial brasileiras. Tais como estas realizam-se em geral por ocasião das grandes festas do calendário religioso e em dias de comemoração de santos de culto popular, entre eles o de São Jorge (Ivan Kupala). Os elos com o ano natural, com as suas referências a sentidos espirituais, manifestam-se sobretudo em expressões tradicionais da vida agrícola, entre elas das festividades de colheitas. Quanto à análise de significado a partir de exames formais coreológicos, cumpre salientar as interpretações de rodas dançadas.  A importância das danças populares da Ucrânia, entre elas a Hopak e Arkan, para a identidade cultural ucraniana evidencia-se sobretudo no seu cultivo em círculos de imigrantes ucranianos no continente americano.

A consideração dessas expressões festivas e de seus vínculos com ciclos temporais deu-se, no passado, em geral sob a perspectiva da sobrevivência cultural. Uma reorientação da atenção em direção a mecanismos subjacentes à ordenação simbólica poderá abrir caminhos para o entendimento de processos culturais que, independentemente das próprias expressões tradicionais, podem manter a sua vigência na atualidade.

Cooperação internacional no estudo da cultura popular

Sob esse direcionamento, a cooperação internacional, no caso brasileiro-ucraniana, seria sobretudo voltada à comparação de processos, ao reconhecimento de estruturas e mecanismos comuns e à constatação de suas diferenças e diferenciações no tempo. Esse procedimento poderia ampliar a análise cultural, possibilitando o pesquisador a incluir também expressões da cultura popular na esfera de seus estudos.

(...)

As discussão terão prosseguimento

Antonio Alexandre Bispo





  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais - Academia Brasil-Europa (A.B.E.) - e do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (Institut für Studien der Musikkultur des portugiesischen Sprachraumes, I.S.M.P.S. e.V.), visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens: http://www.brasil-europa.eu


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