Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 121/12 (2009:5)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2009 by ISMPS e.V. Edição reconfigurada © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2489


 


Brasileiros em Paris na Belle Époque

Magdalena Tagliaferro (1893 - 1986) e Reynaldo Hahn (1874-1974). A intérprete de espírito e as emoções de seu tempo
Imagem e ideal da mulher francesa em processos de transformação de identidades





Este texto apresenta uma súmula de ciclo de estudos dedicados às relações França-Brasil/Brasil-França realizados em diferentes cidades francesas em 2009. Foram aqui lembradas as preocupações pelos estudos culturais franco-brasileiros na linha de tradição que remonta à época da fundação da sociedade dedicada à renovação dos estudos culturais (Nova Difusão 1968), a atual Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais - Academia Brasil-Europa.


Na Europa, a partir de 1974, esses trabalhos e iniciativas receberam a colaboração de muitos estudiosos franceses no decorrer das décadas, e, entre os brasileiros residentes na França, deve-se salientar Luíz Heitor Correa de Azevedo pelo seu empenho no desenvolvimento institucional e pela sua participação em muitas iniciativas. Ao encontro de Royaumont em 1984 sob sua égide remontam impulsos que marcaram a orientação antropológico-cultural do ISMPS e da ABE.Os  trabalhos seguiram impulsos do Colóquio Filosofia Francesa Contemporânea e Estudos Culturais pela morte de J. Derrida (2005), do Congresso Internacional "Música e Visões" pelos 500 anos do Brasil e triênio subsequente (1999-2004) e eventos precedentes, devendo lembrar-se da Primeira Semana de Música França-Alemanha realizada por iniciativa brasileira em 1983 em Leichlingen/Colonia.


Pareceu ser oportuno, para sumarizar e favorecer o prosseguimento ao trabalhos em seminários europeus, recordar alguns nomes de brasileiros e de franceses que atuaram sobretudo em Paris na contextualização de sua época. Essa aproximação antes pessoal facilita os estudos para estrangeiros e traz à consciência o papel mediador desempenhado por muitos brasileiros que estudaram e viveram na França, trazendo impulsos ao Brasil que devem ser analisados sob o pano de fundo da época em que estudaram e atuaram. Os estudos tiveram como objetivo principal oferecer uma contribuição à formação de uma consciência histórica adequada àqueles residentes na França ou descendentes de brasileiros.






A pianista Magdalena Maria Yvonne Tagliaferro (Magda Tagliaferro) (1893 [4]-1986), uma das grandes personalidades da história da vida musical do século XX, merece uma especial consideração sob a perspectiva dos estudos culturais em contextos internacionais, em particular no âmbito das relações franco-brasileiras.

Transferindo-se a Paris no início do século, ali estudou, viveu e atuou por muitas décadas, alcançando prestígio na França e altos cargos em instituições francesas. Não pertence assim àqueles que realizaram estudos por tempo determinado e em estadias temporárias, mas àqueles brasileiros que se integraram na vida cultural da França, exercendo influência na formação de gerações.

A focalização de sua carreira a partir dos anos de sua formação no período anterior à Primeira Guerra Mundial pode aqui apenas oferecer um ponto de partida para considerações mais diferenciadas relativas às décadas que se seguiram. Magdalena Tagliaferro desempenhou importante papel na vida musical francesa do período posterior à Primeira Guerra e nos anos trinta. Testemunho do renome que alcançou em meados da década de vinte foi o fato de ter sido agraciada com a Legião de Honra da França, em 1928.

João de Souza Lima (1898-1982), chegado à capital francesa em 1919 (Veja artigo nesta edição), testemunhou o prestígio já alcançado de Magdalena Tagliaferro em Paris e o significado dos encontros realizados na sua casa em Fontainebleu:

"Grandes artistas brasileiros de há muito moravam em Paris, gozando de posição definitiva entre os grandes e aparecendo freqüentemente em público, em concertos e exposições, como: Madalena Tagliaferro, a pianista de personalidade exuberante, vibrante, que desfrutava um lugar de grande destaque entre os concertistas, incansável nas suas tournées, impondo a sua arte, suas interpretações e suas execuções cheias de vida. Sempre me dispensou a sua maior atenção, convidando-me freqüentemente para almoços em sua casa de Fontainebleau, onde encontrava os mais ilustres convivas; grande satisfação senti em poder dialogar por momentos com o grande violinista Jules Boucherit, considerado um dos melhores professores da época, e também com o compositor francês, aliás nascido em Caracas, Reynaldo Hahn, uma das personalidades marcantes da sua geração." (Souza Lima, Visão Poética da Vida através da música, São Paulo, 95)

Também a Storia della Musica nel Brasile, de Vincenzo Cernicchiaro, registrou, em 1926, o fato de Magdalena Tagliaferro residir e achar-se consagrada na França:

Oggidì Magdalena Tagliaferro, risiede nella capitale francese, ove il suo nome figura onoratamente a fianco dei più emeriti artisti." (V. Cernicchiaro, Storia della Musica nel Brasile, Milano 1926, 432)

Ponto alto de seu reconhecimento oficial foi a sua nomeação, nos anos trinta, a Professora da classe de aperfeiçoamento e virtuosidade do Conservatório de Música de Paris. Foi aqui nada menos do que a sucessora de Isidor Philipp (1863-1958). À época da Segunda Guerra Mundial, retornou ao Brasil, passando a desenvolver intensa atividade musical e atuar na formação de pianistas.

Sob égide oficial, passou a dar cursos regulares de interpretação, atividade que desenvolveu em diferentes centros musicais do país. Criou uma escola técnica e interpretativa que marcou e marca a vida musical do país. Recebeu o reconhecimento do Govêrno Brasileiro, através da Ordem de Rio Branco, e o da França, com a nomeação a Commandeur da Legião de Honra, em 1953. Atuou como artista até idade avançada; ainda em 1979 voltou a realizar um concerto no Carnegie Hall de New York. Das numerosas gravações, que realizou com renomadas orquestras de prestígio internacional, cumpre salientar aquela das obras de Gabriel Fauré (1845-1924) e que lhe valeu o Grand Prix de l'Academie du Disque Français, em 1981.

Já uma suscinta consideração de sua carreira artística demonstra a relevância de Magdalena Tagliaferro para os estudos histórico-musicais voltados à vida de concertos e à interpretação pianística. Intérpretes e prática de concertos, porém, não pertencem aos temas de maior significado nos estudos musicológicos da atualidade. Na procura de novos questionamentos e novas orientações metodológicas, tem-se procurado superar enfoques dirigidos a vultos e a personagens exponentes da vida musical como expressão de tendências já pertencentes a um passado da preocupação musicológica.

O interesse biográfico, em particular pela vida e atividades de intérpretes tem sido deixado assim a uma pesquisa musical de cunho de difusão, desenvolvida sobretudo por críticos, jornalistas culturais, intérpretes, amadores e por pesquisadores sem formação específica. Surgiu, assim, também na América Latina, uma literatura que, ainda que seja apresentada como sendo de cunho musicológico, não corresponde às tendências e aos critérios da musicologia na sua fase mais recente.

Uma orientação teórico-cultural da musicologia, superando perspectivas mais convencionais da musicologia histórica, pode abrir novos caminhos à reconsideração de intérpretes. Estes e outras personalidades da prática musical passam a ser analisados antes sob a perspectiva de sua inserção em processos culturais, em particular de formação e transformação de identidades, em sistemas de ordenação simbólica em diferentes contextos, em mecanismos de criação de imagens e de processos difusivos.

Uma orientação à observação da observação abre novos caminhos a estudos receptivos, dirigindo a atenção àqueles que se dedicam a apreciações, que produzem contribuições dedicadas à difusão e à valorização de artistas. Quais seriam os fatores que elucidariam a existência de aficcionados em determinados contextos culturais e epocais, qual a razão da receptividade de determinadas formas de expressão e de apresentação artística em determinadas esferas sócio-culturais, do surgimento e manutenção de culto à pessoa  e à imagem de intérpretes, quais as condições que levam à diferenciação de grupos de admiradores de determinados artistas, muitas vezes rivalizantes entre si?

Interpretação e as emoções de uma época

Magdalena Tagliaferro oferece, sob essa perspectiva, múltiplas possibilidades para estudos e análises. Poucas foram as intérpretes do século XX que, além de suas qualidades técnicas e interpretativas, mais do quer ela se destacaram pelo significado dado à performance, à presença e irradiação pessoal, ao fascinosum, à criação de situações de vibração em simpatia. Assim, Luís Heitor Correa de Azevedo, em junho de 1940, quando dos primeiros concertos de Magdalena Tagliaferro no Rio de Janeiro à época da Guerra, salientou a sua contribuição para que a temporada musical daquele ano obtivesse um tom festivo e cordial, entusiástico e caloroso.

"Só em casos excepcionais o nosso público se entrega àquelas expontâneas manifestações de ardente admiração e carinhosa simpatia que coroaram, desde o concerto de estréia, as audições da incomparável artista. No que se refere ao público da Cultura Artística, já foi dito que saiu do sério, pela primeira vez, e vimos em troca daquela atmosfera refrigerada pelo gôsto blasé de tantos connaisseurs circular uma aragem tépida, carregada de exuberâncias tropicais, que não tardou a degenerar em furacão... furacão bemdito e generoso, feito de admiração e entusiasmo, de compreensão e de glorificador assentimento." (Luiz Heitor, "Madalena Tagliaferro e a interpretação da música moderna", Música e Músicos do Brasil, Rio de Janeiro, 1950,  392-396)

Magdalena Tagliaferro diferenciou-se dos muitos brasileiros que estudaram e atuaram em Paris pelas características de sua personalidade e pela sua imagem, esta marcada pela irradiação pessoal e pela encenação de artista imbuída de gênio. Enquanto que outros brasileiros procuravam salientar-se ou impor-se no meio por qualidades então consideradas de distinção social e de erudição, tais como modéstia, sobriedade, discreção e auto-disciplina, Magdalena Tagliaferro construiu para si, de forma por assim dizer moderna para a época, uma imagem de mulher vibrante e de artista fascinante e fascinadora, quase que transportando para o mundo da virtuosidade pianística um tipo feminino representado no passado sobretudo pelas grandes cantoras líricas e artistas dramáticas.

Tal imagem, dando origem a mal-entendidos, a suposições repetidamente refutadas pela artista, necessitaria ser analisada de forma mais adequada sob perspectivas teórico-culturais atualizadas, sob o pano de fundo do universo cultural e artístico em que se formou e desenvolveu.

O mesmo Luiz Heitor Correa de Azevedo salientou que a difusão que fazia de obras de determinados compositores mais recentes poderiam ser explicadas pelo fato de ter vivido as emoções de seu tempo e convivido com vários de seus criadores.

"Não se pode afirmar, entretanto, sem atingir gravemente a maravilhosa complexidade de sua arte, seja ela uma especialista na interpretação de obras modernas; qualquer tentativa, nesse sentido, seria uma restrição a outros aspectos de sua sensibilidade interpretativa. Num discurso pronunciado em homenagem que lhe foi oferecida pelo Conservatório Brasileiro de Música, disse Madalena Tagliaferro que sentia a sua alma 'crivada de raças'; podemos dizer, igualmente, que ela está 'crivada de época' e que a sua mais fulgurante qualidade é, sem dúvida, a mais preciosa qualidade nas artes de interpretação: a universidade, a capacidade de sentir, igualmente, através do tempo e do espaço. Seria negar a grandeza da artista que nos deu as memoráveis interpretações da Sonata em si menor, de Chopin, e da Grande Sonata, de Schumann, classificá-la como 'especialista na interpretação dos modernos'. Entretanto é inegável que essa parte da literatura pianística, exigindo tanto senso pictórico, tanta inteligência, tanto refinamento e tão larga parte de comunicabilidade, encontra em Madalena Tagliaferro uma eleita, que em seu apostolado artístico não olvidou uma das mais nobres missões do intérprete: a divulgação da música de seus contemporâneos. E o faz com a autoridade consumada de quem tem vivido as emoções de seu tempo, e 'convivido' com os autores cuja obra se incumbe de propalar.

A sua prodigiosa capacidade de sobrepor os planos sonoros, os verdadeiros 'registros' que tem nos dedos, permitindo-lhe inauditas combinações, torna.-se, desde logo, o fator principal de seu êxito na interpretação de obras tão complexas como as dos modernos, às vezes fugindo à acomodação pianística e à normalidade das fórmulas técnicas possíveis. Lembremos, à guisa de ilustração, a sua sonoridade naquela página de Prelúdio de Debussy em que o tema aparece pp, sôbre um trinado, alternado com o curto motivo em quiálteras; ou a prodigiosa timbração da Dança da Vida Breve, de Falla." (loc.cit.)

Na sua argumentação, Luís Heitor Correa de Azevedo mostra o vínculo entre o fato de ter vivido as emoções de seu tempo com a vida da interpretação de Magdalena Tagliaferro, vida essa expressa através do seu senso rítmico. Essa vida interpretativa pareceria emanar da própria vida da artista, de suas pulsações, das alterações fisiológicas que a emoção produz.

"Estou convencido que as qualidades do intérprete relativas à movimentação rítmica ocupam o primeiro lugar, entre os fatores que conduzem ao sucesso, pela capacidade de impressionar o público. A qualidade do som nada pode contra a ausência desse senso rítmico que comanda accelerandos e rallentandos, bem como mil pequenas subtilezas, que são tudo, na tarefa de vivificar a música escrita. Conheço pianistas cuja arte é interessantíssima e empolga o público, pelas suas qualidades de ritmo, sendo, no entanto, muito singela, ou mesmo áspera, no que diz respeito ao som; o caso contrário não ocorre. O ritmo é sangue, é seiva; dêle vem a vida da interpretação. Essa vida, entretanto, parece que emana da própria vida do intérprete, de suas pulsações, das alterações fisiológicas que a emoção é capaz de produzir no ser humano. Ora, em Madalena Tagliaferro êsses imperativos emocionais snao por tal forma violentos que toda ela é ritmo, quando executa; pequenos reflexos nervosos agitam-lhe o corpo e se acentuam todas as vêzes que a página interpretada rompe a economia normal dos tempos e é animada pela caprichosa instabilidade da copnduta rítmica. E as suas interpretações beneficiam de um tão prodigioso dinamismo, ao mesmo tempo tão forte e tão subtil, que, através a magina das sonoridades em que as envolve, sentimos a eloquência persuasiva e subjugadora das formas de arte feitas para dominar. Lembremos, apenas, a progressão imprevisível daquêle accelerando final da Dansa do moleiro, de Falla, em que a pianista deixa o seu público com a respiração suspensa, incapaz de calcular o movimento a seguir." (loc.cit.)

Perspectivas teórico-culturais

Reflexões sobre a necessidade de uma consideração de Magdalena Tagliaferro em função de processos difusivos e sob a perspectiva da criação de imagens não são recentes. Em 1972, o editor desta revista, então professor da Escola Magda Tagliaferro, em São Paulo, encarregado de desenvolver um curso de Folclore para os alunos da instituição, questionou o sentido de um tratamento dessa disciplina segundo os preceitos convencionais tendo em vista a preparação específica, a socialização e o condicionamento cultural dos pianistas ali em formação. Embora ter Villa-Lobos a ela dedicado o seu Momo precoce, em 1929, assim como o Álbum N° 4 do Guia prático, embora ter Magdalena Tagliaferro executado obras de Villa-Lobos e de outros compositores brasileiros, já Luís Heitor Correa de Azevedo, no seu artigo citado, observava que a interpretação de música brasileira não poderia ser vista como ponto alto de sua arte.

"Se uma restrição pode ser feita à arte de Madalena Tagliaferro, no que se refere à música moderna, têmo-la em suas interpretações dos brasileiros. Villa-Lobos, especialmente, foi dado fora de uma tradição que já se vem firmando e que, no caso em apreço, afigurou-se excelente. O desconhecimento dessa música e o seu preparo, pela pianista, sem o amadurecimento que revela habitualmente a sua arte, pode explicar o senão. Mesmo entre os brasileiros, porém, Lorenzo Fernandez beneficiou de uma interpretação exemplar do Acalanto da Saudade, que nos foi dado com aquela doçura inegualável de som velado que a pianista já havia empregado em algumas variações da Sonata, de Mozart, ou em Jeunes filles au jardin, de Mompou." (op.cit. 392-394)

Estudos culturais, no caso de uma disciplina que, ao contrário da etnologia, se dedica a expressões culturais da sociedade à qual pertence o observador, necessitam considerar os fatores diferenciadores que tornaram os fatos tradicionais da cultura popular totalmente desconhecidos e até mesmo pouco compreensíveis para os estudantes. Tornava-se, em 1972, necessário coadunar o estudo de expressões da tradição popular com uma orientação mais recente da disciplina, que colocava em pauta a questão da cultura do quotiano e da cultura não sistematizada e formalmente dirigida, "espontânea".

A atenção dirigia-se aqui á consideração cultural do universo em que os alunos da escola se integravam, ao papel condutor exercido pela imagem de Magdalena Tagliaferro na compreensão da personalidade e das formas de expressão a serem desenvolvidas. Não se tratando de História da Música, a consideração histórica do vir-a-ser de Magdalena Tagliaferro não deveria estar no centro das atenções, estas se dirigindo antes às características e às continuidades e descontinuidades na configuração de um tipo de artista, da mulher intérprete representada pela pianista.

Essas preocupações correspondiam também àquelas então discutidas paralelamente à realização de um espetáculo (Blow Up) que percorreu vários estados do Brasil, incluiu numerosos nomes da música erudita e popular, de regentes e intelectuais e que tinha como objetivo a temática da criação de imagens e da produção medial de "estrêlas". Tais reflexões e debates tiveram continuidade nas décadas seguintes, voltando sobretudo a receber uma particular atenção no âmbito do seminário sobre Gender Studies para mestrandos e doutorandos em musicologia na Universidade de Bonn, em 2004. Aqui foram discutidos, sobre diferentes aspectos, o papel da mulher e o ideal-tipo feminino na vida musical do início do século XX na França e o papel do cultor refinado e aficcionado em Paris.

Reinaldo Hahn

Teatro Amanzonas. Local do concerto de Paulo Tagliafferro. Fotos A.A.Bispo

 
Paulo Tagliaferro

Um ponto de partida para os estudos referentes a Magdalena Tagliaferro é o da influência na sua personalidade de seu pai e do meio em que recebeu a sua primeira formação. Constata-se aqui, entretanto, o obstáculo representado pelo estado absolutamente insuficiente da pesquisa referente a Paulo Tagliaferro, intérprete e professor de piano e canto.

Um programa de concerto realizado por esse pianista no Teatro Amazonas, a 10 de agosto de 1907, ano em que Magdalena Tagliaferro conquistava o Primeiro Prêmio e a Medalha de Ouro no concurso do Conservatório de Paris, indica o tipo de repertório do pianista que orientara a formação da filha.

O fato de o concerto ser dedicado ao Dr. Constantino Nery, governador do Estado (1904-1908) e importante personalidade na política do Amazonas, indica o prestígio e a influência do artista, além de inserí-lo em determinada esfera político-cultural. Foi certamente devido a seus contatos que foi possível que a sua filha, após o sucesso da execução de um concerto de W.A. Mozart (1756-1791) e de obras de H. Herz (1806-1888) e F. Chopin (1810-1849), em 1903, realizasse, em 1905, uma excursão artística por várias cidades do país. Tudo indica que essa rêde de contatos caracterizava-se por uma proximidade ao meio musical de alemães e seus descendentes no Brasil.

Assim, o concerto de Paulo Tagliaferro em Manaus apenas pôde ser realizado devido à cessão de um piano de concerto da marca Rönisch pelo proprietário do Bazar Alemão daquela cidade. (Mário Ypiranga Monteiro, Teatro Amazonas. Manaus: Governo do Estado, 1966, 768).

O programa de Paulo Tagliaferro em Manaus, um dos eventos de maior ambições artísticas dessa época de florescimento econômico e cultural do Amazonas, então no apogeu da economia da borracha, iniciou-se sintomaticamente com o Prelúdio e Fuga em lá menor de J. S. Bach (1685-1750), em versão de F. Liszt (1811-1886), expressão da veneração de Bach em determinados círculos da vida musical brasileira em recepção ao movimento de valorização de sua música na França como paradigma de exemplaridade.

Seguiram-se: Warum? de R. Schumann (1810-1856); Saudades, do brasileiro Henrique Oswald (1852-1931); Idylle, de E. Chabrier (1841-1894); Sonata em lá, de D. Scarlatti (1685-1757), culminando com a Grande Sonata em lá bemol, de L. van Beethoven (1770-1827).

O programa, assim, revela um cuidado especial pela disposição coerente e até mesmo simbólica das obras, o pêso dado ao romantismo de vínculos poéticos, a atenção à música antiga representada por D. Scarlatti e a admiração por L. van Beethoven, correspondendo também aqui às tendências da vida musical francesa. Era, nessa disposição, um programa de grande atualidade.

Uma especial atenção merece a inclusão de uma obra de Emmanuel Chabrier no programa, compositor unido a correntes da poesia e da pintura, representante do entusiasmo pela Espanha, pelo pitoresco ibérico e ao universo dos admiradores de R. Wagner (1813-1883) na França.

A segunda parte do programa caracterizou-se por obras destinadas a por em evidência qualidades de interpretação e virtuosidade: várias obras de F. Chopin, um Noturno de J. Field (1782-1837), o Romance de Arthur Napoleão (1843-1925) e, para finalizar, a Grande Fantasia Triunfal sobre o Hino Nacional Brasileiro de L. M. Gottschalk (1829-1869).

Constata-se, nessa disposição do programa, uma intenção em fascinar os ouvintes, emocioná-los e empolgá-los. Assim, na disposição cuidadosamente arquitetada e fundamentada, manifestando reflexões sobre o significado cultural e musical das obras, o programa permite que se perceba uma tendência dramatúrgica ou de encenação, uma preocupação em fazer do concerto um espetáculo, mas um espetáculo de elevação de espírito e alma.

Tudo indica, portanto, que muitas das características dos programas, do estilo de apresentação e de compreensão do concerto como ato comunicativo em palco de Magdalena Tagliaferro já provinham de sua formação brasileira, ainda que correspondessem a correntes da vida musical da França de fins do século XIX e início do XX.

Raoul Pugno (1852-1913)

Raoul Stéphane Pugno fora o mentor de Paulo Tagliaferro e representava o seu principal vínculo com o Conservatório de Paris e a vida musical francesa. A consideração de sua personalidade e obra permite assim aproximações à esfera cultural em que se integraria Magdalena Tagliaferro na França.

Pugno, que possuía a nacionalidade italiana, unia na sua ascendência familiar os elos com a Itália por parte do pai com aqueles que o vinculavam com o mundo franco-alemão da Lotríngia. Talvez mais relevante do que a sua origem foi a sua proximidade com a prática do comércio musical, uma vez que o seu pai abrira uma casa do gênero no Quartier Latin, ambiente no qual Raoul Pugno obteve a sua primeira formação e os seus contatos com o mundo artístico.

Teria aqui adquirido um sentido pela importância da comunicação, do significado da imagem e da capacidade de travar conhecimentos com personalidades de diferentes esferas sociais e culturais. Ganhando o apoio do Príncipe Poniatowsky (1816-1873), desenvolveu os seus estudos na então renomada escola Niedermeyer e foi muito jovem admitido no Conservatório de Paris. Ali estudiu piano com um discípulo de F. Chopin, Georges Matthias, e órgão com François Benoist (1794-1878). Tornou-se, em 1871, organista da igreja St. Eugène, em 1877 regente do Théatre Vantadour e foi, de 1892 a 1901, professor de harmonia do Conservatório.

Como pianista, Raoul Pigno adquiriu renome internacional nos anos 90 do século XIX, salientando-se como intérprete de W. A. Mozart e F. Chopin. Com C. Debussy (1862-1918), executou, a quatro mãos, em 1893, o Rheingold de R. Wagner. Salientou-se também pelas suas apresentações conjuntas com o violinista Eugène Ysaye (1858-1931), a partir de 1896. Desse trabalho em conjunto cumpre salientar a atenção emprestada à execução de obras de L. v. Beethoven e de compositores contemporâneos franceses, entre êles E. Chausson (1855-1899), G. Fauré (1845-1924), C. Saint-Saens (1835-1921), A. Magnard (1865-1914) e L. Vierne (1870-1937). Com esse violinista, realizou extensas viagens de concerto, inclusive no Novo Mundo.  Nadia Boulanger (1887-1979) tornou-se importante parceira em empreendimentos artísticos de Raoul Pugno. Como prefeito de Gargenville em Yvelines, a partir de 1904, contribuiu a que essa região se tornasse centro de grande atratividade para artistas, entre êles Paul Valéry (1871-1945), Lili Boulanger (1893-1918), e Gabriele D'Annunzio (1863-1938).

À época de Armand Fallières (1906-1913)

Magdalena Tagliaferro chegou a Paris em época marcada por um espírito agitado de renovação, abertura e cosmopolitismo. Clément Armand Fallières (1841-1931), presidente da República de 1806 a 1913, de origem social modesta, que contava com o apoio das esquerdas, maçom e contrário à pena de morte, esforçou-se em reforçar a Entente tripla com a Inglaterra e a Rússia. A vida cultural de Paris alcançou nesses anos anteriores à Guerra grande intensidade e diversidade.

No Conservatório de Paris, Magdalena Tagliaferro passou a estudar com Antonin Marmontel (1850-1907), que assumira a classe de Raoul Pugno em 1901. Marmontel havia recebido a sua formação com o seu pai, Antoine François Marmontel, e este havia sido professor de vários pianistas brasileiros (Veja outros textos nesta edição), salientando-se também pelas suas obras didáticas e teórico-musicais. A pianista brasileira insere-se assim no rol dos discípulos desse mestre, entre eles Marguerite Long (1874-1966) e Robert Casadesus (1899-1972). Em 1907, recebeu o Primeiro Prêmio e a Medalha de Ouro no concurso do Conservatório com a interpretação de uma sonata de Carl Maria von Weber (1786-1826). 

Alfred Cortot (1877-1962)

Assim como outras pianistas da época, Magdalena Tagliaferro continuou a ter aulas particulares após os seus estudos no Conservatório, tornando-se discípula de Alfred Cortot (1877-1962). Cortot, de origem suíça pelo lado materno, formado pelo Conservatório de Paris, era uma das personalidades mais próximas ao universo wagneriano na França. Esse fato, também conhecido em Bayreuth, levou a que fosse convidado a co-repetitor dos Festivais de Wagner, em 1897.  Dirigiu Tristan und Isolde no Chateau d'Eau, uma obra que havia sido apresentada pela primeira vez em Paris em 1899.

Como discípula de Cortot, Magdalena Tagliaferro travou conhecimento mais profundo com o mundo do romantismo musical que possuía de sua formação, uma vez que o repertório de Cortot constava sobretudo de composições de Schumann, Chopin e Liszt.  A atenção do seu professor dirigia-se a aspectos técnicos de execução e de interpretação, levando a que este se tornasse um renomado revisor de obras em edições de estudo (Paris: Salabert; Milão: Curzi). Como discípula de Cortot, Magdalena Tagliaferro inseriu-se no rol de seus muitos alunos, entre outros Clara Haskil (1895-1960).

Em 1919, Cortot fundou a École Normale de Musique, de Paris. Nela passariam a lecionar também duas personalidades estreitamente relacionadas com Cortot e que também pertenceram ao universo de Magdalena Tagliaferro, entre êles Jacques Thibaud (1880-1953).

Com êle, Magdalena Tagliaferro recebeu o fundamento de sua metodologia de ensino técnico, caracterizada por grande sistematização de exercícios mecânicos, que transmitiria no futuro a seus discípulos, e, sob o ponto de vista interpretativo, as bases de uma compreensão artística romântica, plena de espírito, personalizada, não sem sentido por recursos teatrais nas apresentações. Mais tarde, esse tipo de interpretação seria vista por pianistas e críticos de outras escolas, também no Brasil, como excessivamente subjetiva, às vezes bastante livre com relação ao texto da partitura e à "limpeza" na execução técnica. Poder-se-ia talvez dizer que a principal atenção era antes dirigida não à leitura literal da obra, mas à hermenêutica, à interpretação de seu sentido intrínseco ou oculto.

Esse tipo de interpretação correspondia ao conceito de Obra de Arte e de sua atualização sonora na execução; a interpretação surge aqui como uma configuração da obra, uma co-participação no quase que mistério de seu vir-a-ser. Procurava-se uma música movida pelo espírito, que penetrasse com nos corações, que fosse capaz de levar os ouvintes ao estremecimento, agitando-os emotivamente em ardor e entusiasmo.

O papel feminino na vida artística

Os estudos histórico-culturais relativos à mulher teem salientado o significado do papel feminino na vida social e cultural dos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial. Os programas de concertos da época, trazem não apenas reclames de moda e de cosmética, mas sim também fotografias de artistas de renome trajadas com refinamento. O movimento feminino internacional levava à organização de congressos e revistas incluiam explicitamente uma seção destinada à vida feminina.

O historiador atento constata a frequência de nomes femininos na vida musical e, sobretudo, o papel até mesmo de liderança que muitas artistas passaram a desempenhar, entre elas as já citadas Nadia e Lili Boulanger.

Também Magdalena Tagliaferro atuou na sua vida artística ao lado de personalidades femininas de renome, entre elas com a violinista Denise Soriano (1916-2006), mulher do violinista Jules Boucherit (1877-1962), professor do Conservatório e frequentador do círculo de Tagliaferro em Fontainebleau.

Significativo para o novo papel desempenhado pela mulher na vida musical de Paris do início do século foi o da existência de um conservatório particular denominado de Conservatoire Femina-Musica. Essa instituição é conhecida sobretudo por ali ter ensinado Nadia Boulanger, nele iniciando a sua carreira de professora e orientadora e que seria posteriormente de extraordinária relevância para a formação de compositores do continente americano.

Nesse Conservatório, porém, atuaram várias outras personalidades femininas de renome, algumas delas contemporâneas e colegas de Magdalena Tagliaferro, entre elas Marguerite Long (1874-1966). A sua aluna do Conservatoire Femina-Musica, Yvone Lefébure (1898-1986), também discípula de A. Cortot nas suas classes avançadas no Conservatório de Paris, a partir de 1911, e sua aluna particular, entre 1919 e 1939, tornou-se uma das principais professoras da École Normale de Musique, próxima ao círculo de Tagliaferro.

Maria Gay (1879-1943) e Carmen

Nas atividades de Raoul Pugno, as suas discípulas e artistas colaboradoras desempenharam papel relevante, até mesmo assumindo posições de liderança em empreendimentos conjuntos. Entre elas, um cumpre salientar Maria Gay, mezzo-soprano catalã. O pianista travou conhecimentos com essa cantora na Espanha, em 1897/98. Com ela realizou gravações para gramofone, já em 1903. Maria Gay foi um dos vultos femininos mais em evidência no mundo lírico de fins do século.

Nascida Maria de Lourdes Lucia Antonia Pichot Gironés (1879-1943) era, desde 1897, esposa do compositor catalão Joan Gay i Planella. Com uma história de vida associada a movimentos revolucionários e nacionalistas, tendo sido até mesmo aprisionada, Maria Gay criou uma imagem de mulher emancipada, consciente de si, corajosa, atuante politicamente e empreendedora artisticamente, ao mesmo tempo, porém, sensual.

A sua imagem ficou aqui marcada pelo papel que desempenhou de Carmen, de Georges Bizet (1838-1875), na sua estréia em Bruxelas, em 1902. Representando Carmen com  atitudes provocantes, corporificando a moça cigana de comportamento sensual e algo impúdico, porém fascinante pelo seu magnetismo, muito contribuiu ao fascínio que esse tipo de mulher despertou no início do século XX. Também na sua vida pessoal, passando a viver com o tenor Giovanni Zenatello a partir de 1906, embora permanecendo casada com Juan Gay Planella, criou uma imagem de mulher que se fazia independente de convenções morais, de feminismo auto-consciente e sensualmente provocante.

Salomé de Henri Regnault (1843-1871)

O fascínio despertado pelo tipo de mulher fatal na primeira década do século XX não era fenômeno recente, mas sim situava-se numa longa tradição, na história dos vínculos e associações culturais entre a Espanha e a França. Inseria-se na corrente histórica marcada por esforços de procura e configuração de uma imagem latina a serviço da conscientização de identidade francesa, sobretudo quando esta se sentia abalada com uma supremacia política ou cultural alemã. O significado político-cultural desse tipo-símbolo de mulher nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial manifestou-se nas reações emocionais que se seguiram à venda do quadro da Salomé de Henri Regnault, e que levou até mesmo ao redescobrimento desse pintor morto em combate durante a Guerra Franco-Alemã de 1870/71.

"L'émotion qui s'est emparée de tous les amateurs d'art, lorqu'on apprit que la Salomé allait quitter la France, a rappelé l'attention sur la vie et l'oeuvre d'Henri Regnault. Tout se réunit dans cette magnifique et brève destinée, pour la rendre exceptionnelle: les dons incomparables d'une riche nature, l'ardeur de la jeunesse, la fécondité d'un beau génie, la noblesse d'une fin héroique. On ne peut songer sans de profonds regrets à la perte énorme que fit notre aert national, le jour où le jeune peintre, en qui s'était éveillé le citoyen, donna sa vie pour la défense de la Patrie." ("Le Peintre de la 'Salomé'", Lectures pour Tous: Revue Universelle et Populaire Illustrée 15e. Année/1, Paris: Hachette 1912, 29-38).

Sob a perspectiva da história cultural, Regnault desperta hoje particular atenção por ter sido êle, premiado com a viagem a Roma, o primeiro que obteve a permissão de realizar viagens para o conhecimento de outras culturas, o que o levou à Espanha e ao Norte da África.

A seu círculo de amizade pertenceram personalidades tais como C. Saint-Saens (1835-1921), o poeta simbolista H. Cazalis (1840-1909) e Augusta Holmès (1847-1903), merecendo esta última particular atenção sob o enfoque dos estudos de gênero. Quanto aos redescobrimento de Regnault anos anteriores à Primeira Guerra Mundial, e com o conhecimento dos acontecimentos que se seguiriam, o observador pode detectar traços indicadores de um estado de espírito exaltado, de glorificação do ardor e entusiasmo juvenil a serviço da França e do papel da Espanha a ser aqui exercido.

"Au moment où le romantisme agonisait sous les sarcasmes, Regnault fut le dernier de ceux qui vécurent en plein rêve, dans l'exaltation de leur coeur, voués à tout ce qui est beau, sentiments, actions, créations de l'art.
Combien de traits par où se révéle cette nature enthousiaste!"
. (op.cit. 30)

"Accompagné de son grand ami Clairin, il prend le costume espagnol, se coiffe du chapeau de torero, s'enveloppe de la cape, se méle á la foule dans les rues agitées de Madrid. Quand on les reconnaissait pour des Français, on leur demandait de chanter la Marseillaise. Et Regnault chantait la Marseillaise, de sa voix éclatante et passionnée. Ils devenaient populaires, vivaient parmi les barricades, assistaient á la prise du Palais Royal, à la distribution des armes, et recebeient des hallebardes et desépées de cour..." (op. cit. 30)

"Ce fut dans cette ivresse de lumière qu'il acheba sa Salomé, le grand succès du salon de 1870. Mêmes inquiétudes le tracassaient au départ de cette toile pour Paris que lors de l'envoi de Judith et Holopherne. Il craignait que Salomé, avec sa chevelure luxuriante, ébouriffée, hirsute, choquât le public. Aussi demandait-il à son pére de rédiger pour le tableau quelques lignes explicatives: Je tiens beaucoup, disait-il, à ce qu'on insiste sur la danse, parce que cela expliquera l'ébouriffage de la chevelure." (op.cit. 36)

A análise dessa obra deveria ser conduzida sob o pano de fundo da simbologia da luta entre Cristãos e Mouros, nos seus elos com a história da Reconquista, de tanto significado em época de preocupações pela Latinidade. Assim, Regnault, em outras obras, entre elas a Exécution sans jugement sous les Califes de Grenade, procurou reviver os mouros do passado, "riches et grandes, terribles et voluptueux". (op.cit. 36)

"Étude de femme" de Henri de Régnier (1864-1936)

Exames da imagem da mulher na França em fins do século XIX e início do XX não podem porém limitar-se a constatar a fascinação exercida por figuras tais como a de Carmen ou de Salomé. Torna-se necessário também considerar concepções do ideal feminino, à luz dos quais tais figuras eram interpretadas.

Um significativo testemunho do interesse pela questão do ideal da mulher é o fato de Henri de Régnier, da Académie française, ter realizado um "étude de femme", publicado na mesma revista, em 1912, onde tentou realizar uma análise psicológica dos processos que ocorrem no homem ao configurar o ideal feminino. A sua preocupação no concernente à imagem da mulher não dizia assim respeito à mulher real, mas sim a de uma imagem interior, criada no espírito do homem. A sua questão dizia respeito aos processos misteriosos que levavam à formação dessa imagem espiritual, desse ideal de mulher.

"Comment donc se forme en nous notre idéal féminin? Comment la femme de notre rêve se manifeste-t-elle à notre pensée? De quelle manière, par quelle voie, directe ou détournée, se montre-t-elle à nous? En avons-nous un jour la brusque révélation ou n'évoquons-nous son image que lentement et peu à peu? De quelles infiltrations secrètes s'alimente la plante mystérieuse dont la fleur épanouie nous enivrera de son parfum? A ces questions je crois pouvoir répondre, d'une double origine à la fois littéraire et artistique. Je ne veux pas dire par lá que nous le prenons tout à fait dans un livre et dans un tableau, mais il me semble bien certain que c'est de ce double appoint qu'il se détermine." (Lectures pour Tous: Revue Universelle et Populaire Illustrée, op.cit. 29-38)

Para Régnier, dois seriam os fatores que influenciariam de forma preponderante a formação do ideal da mulher no espírito do homem: a literatura e a obra de arte. Esta última seria o instrumento mais eficiente, ou seja, seria sobretudo através da visão de imagens é que se formaria uma imagem ideal no espírito do homem, fosse esta correspondente a um ideal representado, fosse a ele contraposta, em complementação ou oposição.

"C'est donc, à mon sens, par le livre et le tableau que se forme notre idéal féminin. Or, si le livre joue là un rôle qui n'est pas à négliger, je suis persuadé pourtant que l'oeuvre plastique exerce une influence déterminante bien plus considérable encore. (...)" (op.cit.)

A imagem espiritual, ideal da mulher seria, para Régnier, um resultado do sentimento de beleza do homem, da natureza interpretada pela arte.

"On peut conclure qu'il est un dérivé de notre sentiment de la beauté, de la nature interprétée par l'art. Et c'est aussi de cette part d'acquis que proviennent les variations qu'il subit (...)." (op.cit.)

Reynaldo Hahn (1874-1947) e gay-studies

O "étude de femme" de Régnier, tratando da questão do surgimento de uma imagem ideal feminina no espírito do homem e do papel nele desempenhado pelas artes, dirige a atenção ao homem sensível, de formação estética, capaz de ver o ideal por detrás ou para além do tipo humano. Trata-se, por assim dizer, do homem que se deixa fascinar por Carmen, Salomé ou pela mulher fatal em geral por orientar-se segundo o seu anti-tipo, ainda que de forma inconsciente.

Esse mecanismo, conhecido na ordenação simbólica da cultura ocidental, já considerado em diversos contextos de suas manifestações tradicionais, poderia ser examinado sob diversos aspectos. Sabe-se, pelos estudos de outras expressões culturais, que o gozo por assim dizer lúdico do tipo, que é representado de forma exagerada ou grotesca nas suas expressões sensuais ou conotadas negativamente, apenas é possível a partir de uma consciência de se estar incólume aos perigos por êle representados, de se estar liberto de suas algemas, de se estar por assim dizer renascido.

Talvez resida aqui um dos caminhos teórico-culturais que possam explicar o fascínio exercido por determinados tipos de mulher em homens que não sentiam inclinação para o sexo oposto em fins do século XIX e início do XX. Os estudos da mulher vinculam-se aqui aos gay-studies em análises relativas ao gênero sob enfoques teórico-culturais.

No caso de Magdalena Tagliaferro, uma personalidade deveria ser particularmente considerada neste contexto, a de Reynaldo Hahn.
Nos seus concertos, Tagliaferro sempre dedicando atenção à música moderna, incluiu frequentemente obras de Reynaldo Hahn, também no Brasil.

Esse músico e compositor, de extraordinária relevância na sua época, injustamente esquecido, surge como uma das personalidades da história da música que mais possibilidades oferecem para estudos das relações franco-latinoamericanas, de integração de migrantes e de processos de formação de identidades. Nascido em Caracas, filho de mãe venezuelana e de pai alemão, de origem judia, Reynaldo Hahn obteve a sua formação na França, à qual os seus pais emigraram em 1878.

Crescido em ambiente posterior à Guerra Franco-Prussiana, teve contato com tendências culturais voltadas à consolidação e à configuração de uma identidade francesa, e é compreensível que esse filho de imigrantes, admirador de C. Saint-Saens (1835-1921), o fundador da Société National de Musique, integrando-se, se tornasse por assim dizer mais "francês do que os franceses." No Conservatório, estudou, a partir de 1885, entre outros com A. Lavignac (1846-1916) e sobretudo J. Massenet (1842-1912), com o qual aprendeu não apenas música, mas a "arte de viver". Quanto ao processo de sua integração na sociedade parisiense cumpre mencionar que frequentou a casa da família de Lucien e Léon Daudet, da qual estavam próximos várias personalidades, entre êles Paul Verlaine (1844-1896).

Somente aos poucos é que se reconstroi a esfera musical e social em que se inseriu Reynaldo Hahn. A atenção tem-se dirigido aos salões e sua função na determinação de tendências culturais e estéticas. Os salões tinham a função de reunir pessoas da alta sociedade com artistas, compositores, intérpretes e escritores. Um exame mais cuidadoso demonstra a existência de diferentes salões, marcados por diversificados interesses e círculos de participantes e convidados, com diferentes regras, cerimoniais e tendências preferenciais. Haviam salões marcados pela atmosfera da antiga aristocracia, salões de orientação predominantemente literária e outros de preferências musicais.

Salão da Princesa de Polignac (1865-1943)

Obra que abriu caminhos para os estudos contextuais relativos a Reynaldo Hahn foi a biografia de Marcel Proust (1871-1922), seu amigo e companheiro, de Jean-Yves Tadié, baseada na sua aula inaugural proferida em 1990 na Universidade Oxford (Marcel Proust, Biographie, Paris: Gallimard, 1996; Marcel Proust Biographie, Frankfurt a.M. 2008). Nessa obra, considera-se o significado dos salões e círculos sociais liderados por determinadas personalidades da aristocracia na criação de esferas e tendências estéticas. Entre elas cumpre dar especial atenção àquela do Príncipe e da Princesa Edmond de Polignac.

Como Jean-Yves Tadié menciona, o Príncipe Edmond de Polignac (1834-1901), filho do último ministro de Carlos X, embora "não amigo de mulheres", casara-se com Winnaretta Singer (1865-1943), em 1893, filha de Isaac Singer, produtor de máquinas, e que "não amava homens". Polignac, também pianista e compositor, era adepto de idéias literárias, artísticas e políticas progressistas, defensor de A. Dreyfus (1851-1935), que, apesar de ser considerado pelos seus familiares como bizarro e frio, realizava reuniões que foram de influência na vida cultural da época. As reuniões davam-se na Villa Edmond de Polignac, em Fontaineblau. No Palazzo Manzoni, em Veneza, adquirido pelo Príncipe, organizavam-se "gondolate", passeios de gôndolas com música, também com a participação de destacados artistas, fato registrado por Reynaldo Hahn. O contato com o Príncipe de Polignac havia sido travado primeiramente por Marcel Proust na Villa Bessaraba, às margens do lago em Amphion, cujo coração era Anna de Noailles (op. cit. 414).

O salão da Princesa de Polignac caracterizava-se por uma orientação dirigida à vida musical da atualidade. Nesse salão, do qual Proust deixou uma descrição (1903), cultivava-se Bach, a antiga música francesa, a música alemã, e, dos contemporâneos, sobretudo G. Fauré (1845-1924) (op.cit. 469). Proust conheceu Fauré em 1895, época em que visitava regularmente os concertos de Paris em companhia de Reynaldo Hahn. Para Proust, a essência da música residiria na sua capacidade de despertar o substrato da alma. A música teria o seu início onde o temporal acaba; este seria o objeto das demais artes e da ciência, uma concepção que poderia ser considerada como sendo de fundo religioso (op.cit. 253). Entretanto, Hahn diferenciava-se de Proust quanto à fascinação deste por Wagner e pelo irracional (op.cit. 253). Ambos frequentavam  também o music-hall, apreciavam chansons de Félix Mayol, Yvette Guilbert e Aristid Bruant.

Hábitos e formas de expressão desse salão tornaram-se modêlos no círculo da influência dos Polignac. Assim, o entêrro de Edmond de Polignac, em 1901, tornou-se modêlo para o entêrro de outras personalidades, entre elas de Robert de Saint-Loup, da Comtesse de Greffulhe e da Duquesa de Germantes. O salão de Princesa de Polignac manteve a sua influência por muitos anos. Assim, em 1917, Proust teve a ocasião de ali conhecer a Pierre de Polignac, amante de música e das artes. Diplomata, enviado naquele ano à China, abandonou a carreira em 1920 para casar-se com a princesa do Mônaco, enlace promovido pelo Presidente da República (op.cit. 847).

A 11 de abril de 1907, Reynaldo Hahn apresentou, na casa da Princesa de Polignac, o seu ballet Le Bal de Beatrice d'Este, de 1905, em versão para piano. A execução decorreu em ambiente extravagantemente preparado, com o pianista sobre um palco coberto de tapetes e tapeçarias de estilo renascentista, sendo a sua interpretação realizada com gestos exagerados, com muitos movimentos, gesticulação patética, elevação dramática de braços e de mãos (op.cit. 587).

Para Hahn, a música é expressão e imitação de sentimentos. Ela não seria outra coisa do que psicologia. Por essa razão, a música mais importante seria a vocal, aquela que se une à palavra. Reynaldo Hahn tornou-se professor de canto na Ecole Normale de Musique, em 1920. Escreveu um livro sobre o canto, dedicado a M. Proust (Du chant, 1921). Dedicou-se, na sua diversificada obra, também à criação de operetas (Ciboulette, 1923), comédias para Yvonne Printemps (1894-1977), artista que se tornaria conhecida pelos sua atitude de Diva e seu modo de trajar extravagante. Também como crítico tornou-se pessoa influente no meio musical parisiense nos primeiros anos posteriores à Primeira Guerra.

Alguns observadores brasileiros constataram, nas concepções transmitidas por Magdalena Tagliaferro em cursos de interpretação, princípios da estética do canto de Reynaldo Hahn.

(...)

Texto com base nos trabalhos apresentados no Forum França-Brasil/Brasil-França 2009 do respectivo Programa da Academia Brasil-Europa

Antonio Alexandre Bispo



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