Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 121/15 (2009:5)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2009 by ISMPS e.V. Edição reconfigurada © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2492


 


Brasileiros em Paris após a Segunda Guerra Mundial

Luís Heitor Correa de Azevedo (1905-1992), Paulo Carneiro (1901-1982)
e a reorganização da cooperação internacional em áreas científico-culturais




PAris. Foto 1980 A.A.Bispo. Copyright
Este texto apresenta uma súmula de ciclo de estudos dedicados às relações França-Brasil/Brasil-França realizados em diferentes cidades francesas em 2009. Foram aqui lembradas as preocupações pelos estudos culturais franco-brasileiros na linha de tradição que remonta à época da fundação da sociedade dedicada à renovação dos estudos culturais (Nova Difusão 1968), a atual Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais - Academia Brasil-Europa.


Na Europa, a partir de 1974, esses trabalhos e iniciativas receberam a colaboração de muitos estudiosos franceses no decorrer das décadas, e, entre os brasileiros residentes na França, deve-se salientar Luíz Heitor Correa de Azevedo pelo seu empenho no desenvolvimento institucional e pela sua participação em muitas iniciativas. Ao encontro de Royaumont em 1984 sob sua égide remontam impulsos que marcaram a orientação antropológico-cultural do ISMPS e da ABE. Os  trabalhos seguiram impulsos do Colóquio Filosofia Francesa Contemporânea e Estudos Culturais pela morte de J. Derrida (2005), do Congresso Internacional "Música e Visões" pelos 500 anos do Brasil e triênio subsequente (1999-2004) e eventos precedentes, devendo lembrar-se da Primeira Semana de Música França-Alemanha realizada por iniciativa brasileira em 1983 em Leichlingen/Colonia.


Pareceu ser oportuno, para sumarizar e favorecer o prosseguimento ao trabalhos em seminários europeus, recordar alguns nomes de brasileiros e de franceses que atuaram sobretudo em Paris na contextualização de sua época. Essa aproximação antes pessoal facilita os estudos para estrangeiros e traz à consciência o papel mediador desempenhado por muitos brasileiros que estudaram e viveram na França, trazendo impulsos ao Brasil que devem ser analisados sob o pano de fundo da época em que estudaram e atuaram. Os estudos tiveram como objetivo principal oferecer uma contribuição à formação de uma consciência histórica adequada àqueles residentes na França ou descendentes de brasileiros.






Luis Heitor Correa de Azevedo

Luís Heitor Correa de Azevedo em encontro preparatório à fundação do ISMPS,
Colonia 1985
Foto Arquivo A.B.E.

 
Os estudos da presença cultural brasileira em Paris do período posterior à Segunda Guerra Mundial devem dedicar especial atenção a Luís Heitor Corrêa de Azevedo (1905-1992).  Este então Professor catedrático de Folclore da Escola Nacional de Música da Universidade do Brasil transferiu-se para Paris em 1947, uma época em que a capital francesa ainda se recuperava das destruições e das experiências traumáticas da Guerra vencida vitoriosamente.

Em 1947, após os primeiros anos de euforia, a situação tornou-se novamente tensa, com dissenções entre os antigos aliados e o bloqueio de Berlim. A Europa era de novo sombria, austera e inquietante (L.H. Correa de Azevedo, Minhas Memórias da UNESCO - a música nas relações internacionais 1947-1965, in D. Martins Lamas (Org.), Luíz Heitor Correa de Azevedo: 80 Anos, Sociedade Brasileira de Musicologia/Instituto Nacional de Música/FUNARTE, São Paulo 1985, 31-45, 33). 

Luís Heitor Correa de Azevedo foi uma das personalidades de maior influência na construção de novas de rêdes de contatos e intercâmbios internacionais após a Guerra, no desenvolvimento de projetos internacionais de cooperação que influenciaram décadas da vida cultural e intelectual, no fomento das relações franco-brasileiras sobretudo na área da música e da biblioteconomia, e na orientação de brasileiros que se dirigiram à França.

Tornou-se um vulto de excepcional significado não apenas para os círculos de brasileiros na França e para as relações culturais entre a França e o Brasil, mas sim também para a história do trabalho internacional voltado à cultura. Foi um dos membros fundadores da Sociedade Brasileira de Musicologia, do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa e tomou parte decisiva no processo de revitalização da Academia Brasil-Europa. O seu nome merece uma posição de destaque numa história das relações culturais em contextos euro-brasileiros.

Poder-se-ia talvez compará-lo, no significado de sua atuação nas relações entre a França e o Brasil, com o papel desempenhado por Manuel de Araújo Porto-Alegre (1806-1879) na primeira metade do século XIX e aquele exercido por F.-J. de Santa Anna Nery (1848-1901), na segunda metade do século XIX (Veja respectivos artigos nesta edição).

Diferenciou-se desses, porém, também pelas circunstâncias da época, marcadas agora pelos esforços de reconstrução e nova estruturação de rêdes e instituições. Tal situação poderia ser vista antes em paralelo àquela posterior à Primeira Guerra, quando a França saíra também vitoriosa, dando início a uma fase de particular predominância cultural francesa no mundo e trazendo muitos intelectuais e artistas brasileiros a Paris.

Diferenciou-se porém de um J. de Souza Lima (1898-1982) e de outros representantes da cultura brasileira da época pelo fato de não ter vindo como estudante ou com a intenção de mostrar a sua obra e fazer carreira na Europa, mas sim como intelectual e pesquisador de personalidade já definida e prestígio já reconhecido, de ampla formação intelectual na área dos estudos culturais. Tornou-se um dos principais responsáveis pela criação do Conselho Internacional de Música e pela publicação da série Archives de la musique enregistrée, entre muitos outros empreendimentos. Deu aulas no Instituto de Altos Estudos da América Latina, na Universidade de Paris, de 1954 a 1958. A partir de 1969, foi membro do Conselho Internacional de Música, e pertenceu a seu comitê executivo em Paris.

Luís Heitor Corrêa de Azevedo veio como convidado para dirigir os serviços de música da UNESCO. Na situação da época, quando as rêdes de cooperação européias e atlântico-européias ainda se encontravam destruídas, quando os elos de confiança e os vínculos pessoais e intelectuais entre os países que haviam sido oponentes ainda estavam estremecidos, quando a escolha de uma personalidade européia poderia trazer o risco de ferir susceptibilidades e por em perigo o trabalho internacional, tornava-se oportuna a escolha de um intelectual e pesquisador da América Latina. Além do mais, Luís Heitor Corrêa de Azevedo havia estado nos Estados Unidos à época da Guerra.

Em 1941, a convite da União Pan-Americana, exerceu funções de consultor da Divisão de Música da entidade, em Washington D.C., permanecendo nos EUA durante seis meses e ali realizado conferências, participando de congressos e entranto em contato com personalidades de influência no trabalho panamericano e internacional. Esteve ativo nessa época da Guerra como autor de influência, colaborando na seção de música da revista Cultura Política (1941-1945) e escrevendo artigos para o jornal A Manhã, do Rio de Janeiro (1944-1945). Era, ao vir para a Europa, membro da Comissão Nacional do Livro Didático (1945 a 1948).

Trazia, assim, conhecimento íntimo da situação intelectual e institucional do mundo agora vitorioso. Embora não tendo estudado na França, ao contrário de muitas outras personaldades da vida cultural e musical do Brasil, a sua proximidade com a cultura francesa era inquestionável. Em artigo publicado em 1940, havia exposto de forma explícita e expressiva as suas convicções sobre os estreitos elos existentes entre a França e o Brasil, considerando-os à luz da Latinidade.

"Pode-se afirmar com segurança que a influência dos países de raça latina é sem concorrência, na formação da música artística brasileira e no gosto do nosso público de teatro e de concerto. A não ser o episódio do wagnerismo, que atingiu, com intensidade variável, a música de todos os países do mundo, tudo mais, na música brasileira, se mantem fiel à clara construção da música francesa ou à abundância melódica da música italiana. Leopoldo Miguéz refletiu em suas obras teatrais os processos construtivos da música wagneriana no Brasil; mas a sua orquestra já tem um sabor muito francês e todos os críticos assinalaram a similitude de seus poemas sinfônicos (Parisina, Prometeu, Ave Libertas!) com a música de concerto de Massenet.

(...)

A música moderna francesa é, como a espanhola, a única difundida no Brasil e que encontra, da parte do público, compreensão simpática. Nossos concertos sinfônicos reservam, sempre, uma boa parte de seus programas anuais às primeiras audições de autores franceses.(...)
Entrando na Biblioteca da Escola Nacional de Música, não é Bach ou Beethoven que o visitante vê, sob o busto de Henrique Oswald, que é o patrono da sala, mas um Debussy, por F. Ochsé; as preferências dos músicos e do público são sempre para a música francesa; ela é, como já disse, a única música do século XX (...) que desfruta os favores do público.

('...)

Neste momento, por exemplo, a Division of Cultural Relations do Departamento de Estado dos Estados Unidos acaba de publicar uma importante relação de música da América Latina, para orquestra, conjuntos de câmara e solistas, permitindo aos organizadores de concertos incluir, em seus programas, essas produções, reunidas sob o duplo signo do Novo Mundo e de suas origens latinas. Há, portanto, em toda essa música, alguma coisa de comum e que a aparente à música italiana ou à música francesa. Essa coisa é o espírito de latinidade, tão vivo e prestigioso em toda a América do Sul". ((Luiz Heitor,  "O Brasil e a Música dos Países Latinos", 1940, In: Música e Músicos do Brasil, Rio de Janeiro, 1950, 400-401)

A ação internacional de Luís Heitor Corrêa de Azevedo não pode ser examinada sem a consideração do passado de sua formação e de suas atividades profissionais no Brasil. Estudou no Instituto Nacional de Música a partir de 1923, tendo sido aluno de piano de Alfredo Bevilacqua (1846-1927), de 1924 a 1925, e de Ch. Lachmund, de 1927 a 1928, assim como de matérias teóricas de Paulo Silva (1892-1967).

Nos anos 20, adquiriu renome na capital do Brasil pelos seus artigos publicados em revistas e jornais, entre êles O Imparcial (1928/29) e A Ordem (1929/30). Fundou, com outros, em 1930, a Associação Brasileira de Música. Foi secretário dessa associação até 1933 e seu presidente, em 1934/1935. Em 1932, tornou-se bibliotecário do Instituto Nacional de Música. Editou o Arquivo de Música Brasileira, de 1932 a 1936.

Dirigiu a Revista Brasileira de Música, de 1934 a 1942. Foi presidente da Associação dos Admiradores de Francisco Manuel, fundada por êle. Fundou, também com outros, a Sociedade Pró-Musica, em 1937. Foi o primeiro a ocupar uma cátedra de Folclore, em 1939, instituída na Escola Nacional de Música da Universidade do Brasil. (Dulce Martins Lamas, "Luiz Heitor, uma personalidade na música universal", in Luíz Heitor Correa de Azevedo: 80 Anos, op.cit., 15 ss.)

João Neves da Fontoura (1887-1963) e Renato Almeida (1895-1981)

Segundo próprios depoimentos de Luís Heitor Correa de Azevedo, as circunstâncias que o levaram a Paris devem ser consideradas a partir da criação, em 1946, da Comissão Nacional da UNESCO no Brasil e do Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura, o IBECC, pelo Ministro das Relações Exteriores do Brasil, João Neves de Fontoura.

Esse político e diplomata representou o país por várias vezes durante o Estado Novo, entre outras na Conferência de Havana, em 1940, e nas posses presidencias no Panamá e em Cuba; foi embaixador em Portugal, de 1943 a 1945. Nomeado pelo Presidente Gaspar Dutra (1883-1974) a Ministro das Relações Exteriores, em 1946, representou o Brasil na Conferência da Paz, realizada em Paris. Mais tarde, seria novamente Ministro das Relações Exteriores (1951-1953) e presidiria a Delegação do Brasil no Congresso da União Latina.

Luis Heitor Correa de Azevedo foi convidado por Renato Almeida para assumir o posto de Segundo Secretário da instituição recém-criada. Em 1947, na sua qualidade de professor de Folclore da Escola Nacional de Música, foi convidado, juntamente com Luís da Câmara Cascudo (1898-1986) e Renato Almeida, a dirigir-se a Portugal para a organização de um Congresso Luso-Brasileiro de Folclore. Não se pode deixar de constatar que esse empreendimento, e os nomes com êle relacionados refletiam uma certa continuidade de concepções e orientações de período anterior, marcado por tendências nacionalistas em Portugal e no Brasil, ambos estados autoritários.

O desenvolvimento posterior das circunstâncias, porém, levariam Luís Heitor Corrêa de Azevedo a esferas de outras conotações, de modo que um exame das rêdes em que se inseriu exige particulares cuidados diferenciadores. A sua capacidade de viver entre diferentes mundos e ser reconhecido por círculos de diferentes tradições e tendências testemunham as suas qualidades humanas, diplomáticas e de mediação.

Paulo Carneiro (1901-1982). Positivismo e Novo Humanismo fundamentado na ciência

A UNESCO, Organização Educacional, Científica e Cultural das Nações Unidas foi fundada em 1945, em Londres, por ocasião de uma Conferência de Ministros da Educação, a que o do Brasil não compareceu. Entretanto, ali esteve presente Paulo Carneiro, depois Delegado Permanente e Embaixador do Brasil junto à organização.

Paulo Carneiro, cujo significado sempre foi salientado por Luís Heitor Correa de Azevedo, doutorara-se em 1920 na Sorbonne e atuara mais tarde no Instituto Pasteur. Alcançara renome sobretudo pela descoberta do princípio do curare, publicado no Comptes Rendus da Academia de Paris, em 1938.

Tem-se reconhecido e salientado o papel de Paulo Carneiro quanto ao relacionamento entre a ciência e a política do período posterior à Segunda Guerra à luz de suas convições positivistas. Segundo esse enfoque, a experiência da Guerra teria levado a uma intensificação da visão positivista da organização da sociedade, a da agregação de pessoas de diferentes confissões e tendências para a formação de uma elite intelectual e científica. Segundo esse enfoque, Paulo Carneiro desempenhou um papel relevante na tentativa de produzir uma ciência universal a partir do Particular, no caso do brasileiro. Teria, nesse sentido positivista, influenciado a criação de uma elite cientista a serviço da Humanidade, e esta seria a UNESCO. Paulo Carneiro é visto, assim, como representante de um Novo Humanismo fundamentado na ciência. Nas suas atividades, como articulador de programas e organizador, desempenhou papel significativo em instituições tais como o Instituto Internacional da Hiléia Amazonica, do Projeto UNESCO das Relações Raciais e como coordenador da Historia do Desenvolvimento Cultural e Cientifico da Humanidade.

Gustavo Durán Martínez (1906-1969)

Como Luís Heitor Correa de Azevedo mencionou nas suas recordações, a sua ida a Paris também foi favorecida pelo fato de ter êle próprio escrito uma carta dirigida a Gustavo Durán, então Chefe da Divisão de Artes e Letras da UNESCO. Gustavo Durán, que havia tomado parte da Aliança de Intelectuais Anti-Fascistas e das Brigadas Internacionais, tenente-coronel da armada Republicana, em 1937, transferiu-se para a América, onde trabalhou no Museum of Modern Art. Em 1942, atuou na Embaixada americana em Havana. Em 1946, entrou, para as Nações Unidas;  ajudou a dar início à UNESCO.

Como consequência dessa carta, Luís Heitor Correa de Azevedo recebeu um telegrama que o convidava a tomar parte de um comitê de especialistas para delinear o programa de Filosofia e Ciências Humanas da UNESCO. A reunião foi presidida por Salvador de Madariaga y Rojo (1886-1978), que havia sido embaixador em Paris (1932-34) e se transferira para Oxford, em 1936. Nessa reunião de outono de 1947, decidiu-se a criação do Conselho Internacional de Filosofia e Ciências Humanas. A esse Conselho, em 1949, passou a ser afiliada a Comissão Internacional de Artes e Tradições Populares. A seguir, foi convidado a fazer o estágio da UNESCO, na sua qualidade de secretário do IBEC.

Quando Gustavo Durán foi sucedido por Ventt Lawler, da Secretaría Executiva da Music Educators National Conference, dos EUA, que Luís Heitor Correa de Azevedo havia conhecido durante a sua estadia em Washington, foi êle convidado para um cargo na Secretaria da UNESCO em Paris. Aconselhado por Paulo Carneiro, aceitou-o.

Paul-Marie Masson (1882-1954)

Uma das questões que se colocavam era a da aceitação de Luís Heitor Correa de Azevedo pelos musicólogos europeus e a da sua integração no meio especializado. Embora altamente qualificado e professor de disciplina voltada a estudos culturais em instituição de ensino superior, não havia obtido uma formação específicamente musicológica, inexistente no Brasil. Esse problema, até hoje presente, resulta do fato sempre salientado por Luís Heitor Correa de Azevedo de que a Musicologia, na tradição européia, pertence àrea das Ciências Humanas e da Filosofia, não à da música prática, tal como lecionada nas escolas superiores de música e conservatórios. Os musicólogos europeus encontram assim problemas com a aceitação de formados e titulados por instituições de natureza não-especificamente científica, ainda que possuam cargos universitários e gozem de renome no Brasil.

A aproximação de Luís Heitor Correa de Azevedo dos meios europeus devidamente qualificados foi facilitada por Paul-Marie Masson. Esse musicólogo, que conheceu por ocasião de seus primeiros contatos com a UNESCO e com o qual manteve-se ligado por laços de amizade através dos anos, era, na época, Professor titular de História da Música na Faculdade de Letras na Sorbonne e vinculado à direção da Sociedade Francesa de Musicologia e da Sociedade Internacional de Musicologia, da qual viria a ser vice-presidente (1949-1952). Tinha iniciado a sua docência de História da Música na Sorbonne em 1931, ao lado de André Pirro (1869-1943), professor extraordinário (1930) e posteriormente catedrático (1935). Pirro, organista e musicólogo, que se formara com César Franck (1822-1890) e Charles-Marie Widor (1844-1937), e que fora professor de História da Música da Schola Cantorum, especialista em estudos de J.S.Bach e da música antiga, intensificou a orientação histórico-musicológica de Masson. Este alcançou renome e influenciou a vida musical sobretudo através de seus estudos relativos a Jean-Philippe Rameau (1683-1764).

À época do início de suas atividades de docência na Sorbonne, Masson contava já com um significativo passado de estudos e atividades diversificadas. Estudara letras na Escola Normal Superior  e assistira a cursos do escritor e humanista Romain Rolland (1866-1944), na Sorbonne, assim como do historiador da literatura Abel Jules Maurice Lefranc (1863-1952), na Escola de Altos Estudos. Também êle fora ligado à Schola Cantorum através de seus estudos com Vincent d'Indy (1851-1931). Estudara, a seguir, com Charles Koechlin (1867-1950). Proferira aulas na Universidade de Grenoble, em 1910, lecionara história da literatura e da música francesa no Instituto Francês de Florença. Após a Primeira Guerra Mundial, na qual atuou como combatente, retomara as suas atividades de ensino na Itália, em Florença e em Nápoles, onde fundou um novo instituto francês.

Luís Heitor Correa de Azevedo, travando conhecimento com Paul-Marie Masson, aproximou-se assim de uma determinada corrente da musicologia, remontante ao movimento de descoberta de J.S.Bach, do movimento organístico e do redescobrimento da música antiga de fins do século XIX, da qual havia já representantes no Brasil, mas à qual Luís Heitor Correa de Azevedo não estivera estreitamente vinculado enquanto estivera no país.

Claude Delvincourt (1888-1954)

Com relação mais específicamente ao Conselho Internacional de Música, porém, cumpre salientar outras personalidades de prestígio na vida musical francesa de pós-Guerra que foram lembradas para constituí-lo. Em primeiro lugar, surgia como indispensável convidar a Claude Delvincourt, então diretor do Conservatório de Paris, tendo sido este procurado por Luís Heitor Correa de Azevedo, em companhia do recém-chegado Carleton Sprague Smith (1905-1994), que havia atuado como attaché cultural e professor no Brasil ,de 1943 a 1946. Não apenas pelo seu cargo de direção do Conservatório, que ocupava desde 1941, surgia como imprescindível convidar a Delvincourt, também êle um ex-discípulo de Charles-Marie Widor. Havia razões de conveniência política, uma vez que era um dos nomes de músicos que se haviam distinguido na resistência contra a ocupação, que havia fundado a Orchestre des Cadets du Conservatoire para que alguns dos alunos pudessem ser poupados do serviço na Alemanha e pertencera à Front National des Musiciens. Delvincourt, porém, solicitou a presença de Roland-Manuel, pedindo que este o substituísse na sessão.

Roland A. Manuel Levy (1891-1966)

Luís Heitor Correa de Azevedo passou assim a a co-atuar mais de perto com esse crítico e musicógrafo, conhecido simplesmente por Roland-Manuel, e que era, desde 1947, professor de Estética Musical do Conservatório de Paris. De ascendência judia, também êle estudara com Vincent d'Indy, posteriormente com Albert Roussel (1869-1937). Como compositor, dedicara-se também à produção de música para filmes. Como Luís Heitor Correa de Azevedo salientou, Roland Manuel era conhecido sobretudo como animador do programa radiofônico dominical denominado de Plaisirs de la musique. Tornando-se o primeiro Presidente do Conselho Internacional de Música, "dominava as sessões de trabalho com seu espírito cintilante, o seu bom humor, o imprevisto dos seus comentários" ("Minhas Memórias", op. cit.  40). Seus sucessores como presidentes foram Sir Stwart Wilson, co-diretor da Opera do Convent Garden, Domingo Santa-Cruz, Mário Labroca e Wladimir Fédorov, do Departamento de Música da Bibliteca Nacional de Paris, da Sociedade Internacional de Musicologia e da Associação Internacional das Bibliotecas Musicais.

Georges Favre (1905-1993), Alberto Smijers (1888-1957) e Armand Panigel (1920-1995)

Nas suas Memórias, Luís Heitor Correa de Azevedo salienta que, nos primeiros anos, pouco se fazia com relação à música na UNESCO. Realizara-se um inquérito sobre as condições da vida musical nos vários países e havia um projeto de discografia a ser submetido à Conferência Geral. A segunda sessão da Conferência Geral, realizada no México, tratou da criação de um organismo de amplitude mundial na área da música, a exemplo do que se projetava na esfera do teatro, com a criação do seu instituto internacional. A sugestão da criação de uma entidade correspondente na área da música, ou seja, de um Instituto Internacional de Música partira de Charles Seeger (1886-1979), então Chefe da Divisão de Música e Artes Plásticas da União Pan-Americana.

Para possibilitar a realização desse projeto, Luís Heitor Correa de Azevedo procurou aproximar-se de músicos e pesquisadores que poderiam nele colaborar, entre êles Marius Barbeau (1883-1969), antropólogo, etnólogo e folclorista canadense com estreitos vínculos com a cultura francesa, que havia estudado na École des hautes études da Sorbonne e na École d'anthropologie de Paris. Aproximou-se também do compositor Carlos Chávez (1899-1978). Sobretudo Helen White, próxima de Charles Seeger, contribuiria de forma decisiva à concretização dos planos.

Após alguns obstáculos no Brasil para que pudesse afastar-se de sua cátedra, Luís Heitor Correa de Azevedo assumiu o seu posto em Paris, em 1948. Iniciou-se um período de intensas articulações com personalidades de renome e de tecimento de uma rêde de contatos. Desempenhou o seu trabalho de dirigir a organização até a sua plena autonomia, sob a direção geral de Julian Huxley, até 1952, quando propôs o nome de Jack Bornoff para sucedê-lo, que então trabalhava na seção alemã da BBC.

Para a realização dos projetos, as dificuldades encontradas foram muitas, sobretudo quanto ao financiamento. Um dos projetos particularmente difíceis foi o de um programa de Educação Artística da UNESCO. Luís Heitor Correa de Azevedo conseguiu ganhar a colaboração de Sir Herbert Read, para as artes plásticas, e, para a música, do compositor e pedagogo húngaro Zoltán Kodály (1882-1967), assim como do músico e musicólogo Georges Favre (1905-1993).

Para o projeto da Discografia, Luís Heitor Correa de Azevedo contou com a colaboração do musicólogo Alberto Smijers (1888-1957), dos Países Baixos, do etnomusicólogo rumeno Constantino Brailoiu (1893-1958) e de Armand Panigel (1920-1995), então especialista por questões relativas a novos desenvolvimentos técnicos.

A intenção de fundar-se uma entidade internacional de música exigiu sobretudo a sensibilidade diplomática de L. H. Correa de Azevedo para que a nova entidade não entrasse no campo de ação de outras organizações internacionais já existentes, sobretudo da Sociedade Internacional de Música Contemporânea, da Sociedade Internacional de Musicologia, da Federação Internacional das Juventudes Musicais e do International Folk Music Council. O caminho encontrado foi de tecer contatos para constatar até que ponto essas entidades estariam dispostas a unir-se numa espécie de dederação a agir sob os auspícios da UNESCO. Essa "federação" recebeu posteriormente a designação de Conselho.

EM 1949, resolveu-se reunir representantes dessas quatro organizações intercaionais, juntamente com outras personalidades convidadas. Nesse encontro, estiveram presentes Edward Clark, Presidente da Sociedade Internacional de Música Contemporanea, Smijers, da Sociedade Internacional de Musicologia, Marcel Cuvelir, das Juventudes Musicais, e Maud Karpeles, secretária honorária do International Folk Music Council. Marcel Cuvelir criou posteriormente estreitos elos com o Brasil.

Luís Heitor Correa de Azevedo sempre salientou, além do mais, o papel desempenhado por Sergei Koussevitsky (1874-1951) e do Fundo Internacional de Música por êle criado nos EUA e cujo representante era Charles Seeger.

Além das informações contidas em trabalhos publicados baseados nas suas recordações, Luís Heitor Correa de Azevedo mencionou em encontros e na correspondência com o editor desta revista vários outros nomes que co-atuaram nessa fase importante da reestruturação do trabalho internacional do período posterior à Segunda Grande Guerra. Entre eles, cumpre lembrar aqui de Claudie Marcel-Dubois (1913-1989), formada no Conservatório de Paris, responsável pela fonoteca do Museu de Etnografia do Trocadéro, criada em 1934, posteriormente Museu do Homem. Assumiu, em 1937, o serviço de etnografia musical, mais tarde departamento de etnomusicologia, tornando-se uma das mais significativas representantes da disciplina na França.


Cooperação entre as bibliotecas musicais

A partir de 1950, o antigo bibliotecário do Instituto Nacional de Música passou a contribuir de forma intensiva para o desenvolvimento da cooperação entre a UNESCO e as bibliotecas musicais.

Em julho daquele ano, reuniram-se, em Lüneburg, Alemanha, o segundo Congresso Internacional de Bibliotecas Musicais, quando se decidiu criar um organismo permanente de coordenação entre as bibliotecas e os museus musicais de todos os países, formando-se uma comissão preparatória para a redação dos estatutos da nova associação.

Essa comissão foi encarregada de organizar o terceiro Congresso, que teve lugar na sede da UNESCO, em Paris, em julho de 1951. Nessa ocasião, constituiu-se a Associação internacional de bibliotecas musicais como instrumento coordenador e de ação internacional.

A primeira oportunidade dada aos bibliotecários musicais de um encontro para a troca de idéias após a Guerra havia sido oferecida pela Academia Nacional Luigi Cherubini, de Florença, em 1949, quando realizou um primeiro Congresso internacional de bibliotecas e museus musicais.

Já quando dos preparativos do Congresso de Lüneburg, a UNESCO havia demonstrado, através do seu Conselho Internacional de Música, o seu interesse pelo novo forum de atividades musicais. Encorajou assim a comissão preparatória, associando-se por assim dizer à criação da associação.

A Associação internacional de bibliotecas musicais passou a ser uma das oito organizações do Conselho Internacional de Música, ao lado da Divisão das Bibliotecas e Arquivos da UNESCO. O projeto a que foi emprestada primazia foi aquele organizado em cooperação com a Sociedade Internacional de Musicologia: o estabelecimento de um Repertório Internacional de Fontes Musicais.

Esse projeto, de grandes dimensões, exigia a participação ativa de organismos nacionais encarregados da administração das bibliotecas, assim como de equipes mixtas de bibliotecários musicais e de musicólogos nas várias nações e em âmbito internacional. Esse plano do Repertório encontrou uma ressonância favorável junto ao Conselho de Filosofia e Ciências Humanas da UNESCO, ao qual estava afiliada a Sociedade Internacional de Musicologia.

Congresso Internacional de Música Mediterrânea

Dentre os muitos eventos nos quais Luís Heitor Correa de Azevedo teve uma participação relevante pode-se citar o Congresso Internacional de Música Mediterrânea e a Convenção dos Bibliotecários Musicais realizados em Palermo, de 26 a 30 de junho de 1954, um dos maiores e mais significativos eventos europeus do período posterior à Guerra e no qual já vários representantes da Alemanha participaram, marcando uma normalização dos trabalhos cooperativos.

Os eventos foram organizados por uma comissão constituída por Igino Angles, Annibale Bianco, Simone Cuccia, Giuseppe D'Angelo, Pietro Ferro, Renzo Frattarolo, Antonino Pirrotta, Nino Sammartano, Pietro Sgadari di Lo Monaco, Ottavio Tiby e Fausto Torrefranca. Dentre aqueles que proferiram comunicações, encontrava-se o já citado Costantin Brailoiu, que discorreu sobre melodias, ritmos, instrumentos e símbolos nas danças mediterrâneas. Ali, Luís Heitor Correa de Azevedo entrou em contato mais estreito com Marius Schneider (1903-1982), o representante da musicologia comparada alemã de maior renome como especialista em questões relacionadas com a cultura ibérica. Nessa ocasião, Marius Schneider apresentou estudos e a proposta de criação de um Corpus da música popular mediterrânea.

Numerosos foram os outros musicológos que compareceram ao evento, entre êles Joan Amades, membro do Conselho Superior de investigações científicas da Espanha, Samuel Baud Bovy, diretor adjunto do Conservatório de Música de Genebra, Friedrich Blume, Presidente da Sociedade Alemã de Musicologia; Luísa Cervelli, assistente da cátedra de História da Música da Universidade de Roma, Karl Gustav Fellerer, catedrático de musicologia da Universidade de Colonia, Manuel Garcia Matos, professor do Conservatório de Música de Madrid, Thrasybulos Georgiades, professor de musicologia da Universidade de Heidelberg, Edith Gerson Kiwy, membro do instituto etnográfico para a música oriental de Israel, Jacques Handschin, professor de musicologia da Universidade da Basiléia, Suíça, Hans Hickmann, diretor do museu egípcio de instrumentos musicais, Alemanha, François Lesure, bibliotecário da Biblioteca Nacional de Paris e Joseph Schmidt-Görg, professor de musicologia da Universidade de Bonn. Luís Heitor Correa de Azevedo tratou, na sua comunicação, do tema "A UNESCO e a cooperação internacional entre as bibliotecas musicais".

"Les distances ont disparu du monde que nous habitons, au milieu du XXème siècle; la rapidité et la facilité des moyens de communication de toutes sortes (ceux qui transportent la personne humaine, comme ceux qui transmettent son image, sa voix, ou ses pensées) les ont pratiquement supprimées. Hélas! d'autres distances separent les hommes d'aujourd'hui; elles les separent par les barrières qu'on trouve aux frontières, par les mille exigences administratives qui s'interposent au libre commerce entre les nations, et par toute la collection de rideaux, de tous les épaisseurs et de toutes les couleurs qui cachent l'homme et ses richesses, souvent même étouffent son génie ou son message à la communauté universelle.  Cependant, dans ce pauvre monde, si rapproché, et si clôturé, il est indiscutable que l'équipe de la bonne volonté, qui veut s'entendre, qui veut coopérer, se trouve singulièrement grossie; elle fait des adeptes dans toutes les disciplines ou s'exercent le corps et l'esprit de l'homme: les sports, les techniques, la sicence, les arts; on se donne la main par dessus les frontières, on cheerche à s'épauler sans trop se déchirer au fil barbelé; le jour viendra, peut-être. piu cette équipe gagnera à sa cause les fonctionnaires des ministères des finances, les douaniers, et arrivera même - qui sait? - à détendre le sourcil méfiant de la police..." (Luís Heitor Correa de Azevedo, "L'Unesco et la Cooperation Internationale dans le Domaine des Bibliotheques Musicales", Atti del Congresso Internazionale di Musica Mediterranea e del Convegno dei Bibliotecari Musicali, Palermo: Ministero della Pubblica Istruzione s/d, 341-345)

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Roayumont. Progresso das Ciências do Homem

Uma particular menção deve ser feita aos elos entre Luís Heitor Correa de Azevedo e a família Henri e Isabel Goüin. Henri Goüin adquiriu, em 1923, a Abbaye de Royaumont, de propriedade de seu avô desde 1905, o industrial Jules-Edouard Goüin. Essa abadia havia servido de hospital militar durante a Primeira Guerra Mundial e foi elevada a monumento histórico nacional em 1927. Henri e Isabel Goüin, estreitamente relacionados com o meio musical, levaram a que a abadia se tornasse um centro de concertos a partir de 1936. Após a Segunda Guerra Mundial, o edifício se transformou de forma mais ampla em centro cultural internacional, abringado colóquios, conferências e seminários. Transformou-se, em 1964, na Fondation Royaumont pour le progrès des sciences de l'homme. A partir dos anos 70, uma particular atenção passou a ser dada à antropologia fundamental.

Sob este pano de fundo deve ser considerado o encontro realizado, em 1984, com Isabel Goüin, Luís Heitor Correa de Azevedo e os editores desta revista no contexto das reflexões relativas à fundação de um Instituto de Estudos da Cultura Musical para o mundo de língua portuguesa (ISMPS e.V.) e da reorganização da Academia Brasil-Europa.

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Antonio Alexandre Bispo




  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais - Academia Brasil-Europa (A.B.E.) - e do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (Institut für Studien der Musikkultur des portugiesischen Sprachraumes, I.S.M.P.S. e.V.), visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens: http://www.brasil-europa.eu


  2. A A.B.E. é entidade exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias. É, na sua orientação teórico-cultural, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. A Organização de Estudos de Processos Culturais remonta a entidade fundada e registrada em 1968 (Nova Difusão). A A.B.E. insere-se em tradição derivada de academia fundada em Salzburg pelos seus mentores, em 1919, sobre a qual procura sempre refletir.