Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 121/3 (2009:5)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2009 by ISMPS e.V. Edição reconfigurada © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2480


 


Brasileiros em Paris à época de Louis-Philippe de Orléans (1830-1848)

Domingos José Gonçalves de Magalhães, Visconde de Araguaia (1811 - 1882)
sob o signo de Alphonse de Lamartine (1790-1869)
O "Manifesto" do Romantismo brasileiro em Paris: Suspiros poéticos e Revista Brasiliense

Reflexões em Aix-les-Bains





Este texto apresenta uma súmula de ciclo de estudos dedicados às relações França-Brasil/Brasil-França realizados em diferentes cidades francesas em 2009. Foram aqui lembradas as preocupações pelos estudos culturais franco-brasileiros na linha de tradição que remonta à época da fundação da sociedade dedicada à renovação dos estudos culturais (Nova Difusão 1968), a atual Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais - Academia Brasil-Europa.


Na Europa, a partir de 1974, esses trabalhos e iniciativas receberam a colaboração de muitos estudiosos franceses no decorrer das décadas, e, entre os brasileiros residentes na França, deve-se salientar Luíz Heitor Correa de Azevedo pelo seu empenho no desenvolvimento institucional e pela sua participação em muitas iniciativas. Ao encontro de Royaumont em 1984 sob sua égide remontam impulsos que marcaram a orientação antropológico-cultural do ISMPS e da ABE. Os  trabalhos seguiram impulsos do Colóquio Filosofia Francesa Contemporânea e Estudos Culturais pela morte de J. Derrida (2005), do Congresso Internacional "Música e Visões" pelos 500 anos do Brasil e triênio subsequente (1999-2004) e eventos precedentes, devendo lembrar-se da Primeira Semana de Música França-Alemanha realizada por iniciativa brasileira em 1983 em Leichlingen/Colonia.


Pareceu ser oportuno, para sumarizar e favorecer o prosseguimento ao trabalhos em seminários europeus, recordar alguns nomes de brasileiros e de franceses que atuaram sobretudo em Paris na contextualização de sua época. Essa aproximação antes pessoal facilita os estudos para estrangeiros e traz à consciência o papel mediador desempenhado por muitos brasileiros que estudaram e viveram na França, trazendo impulsos ao Brasil que devem ser analisados sob o pano de fundo da época em que estudaram e atuaram. Os estudos tiveram como objetivo principal oferecer uma contribuição à formação de uma consciência histórica adequada àqueles residentes na França ou descendentes de brasileiros.





Niteroi. Foto A.A.Bispo 2009
O estudo cultural da presença e da atuação de brasileiros na França à época do "Roi Citoyen", Louis-Phiippe I (1773-1850), que sucedeu, após a Revolução de Julho de 1830, a era da Restauração, necessita, para ser desenvolvido de forma diferenciada, considerar também as correntes de pensamento e de orientação estética provenientes da época que terminava e que, mantendo-se em situação de oposição durante o período, em parte preparariam a sua queda em 1848.

Como salientado em outro artigo desta edição (Veja texto relativo a Manuel de Araújo Porto-Alegre), seria expressão de inadequada simplificação partir da suposição de que os brasileiros que se dirigiram a Paris e que ali viveram à época de Louis-Phiippe corresponderam às tendências intelectuais e artísticas próprias da nova situação e com ela se identificaram político-culturalmente.

Quase que em paradoxo, a vinculação a correntes que representavam um conservadorismo sob o novo sistema podiam surgir, sob determinados aspectos, como contrárias ao status quo e, assim, preparadoras de uma nova situação.

A necessidade de uma visão diferenciada dessa época já foi há muito salientada pelos historiadores da literatura e da história político-cultural. Assim, Albert Thibaudet (1874-1936), por alguns visto como fundador da história das idéias político-culturais, via no ano de 1830 um marco na história da diversificação de correntes e de preferências:

"Ao redor de 1830 havia ou partido da resistência ou o partido do movimento. Formam-se a partir daí os partidos, Revolução e Restauração. Idéias, que antes não eram difundidas, tornaram-se categorias de visão da vida política. (...) Desapareceu um gosto unificado, criado pelas doutrinas artísticas classicistas. O mundo ganhou em diferença. Do público como unidade surgiu uma multiplicidade de públicos e de direcionamento de gosto." (A. Thibaudet, Histoire de la Littérature Française de 1789 à nos jours, Paris 1936; Geschichte der Französischen Literatur, 2.Auf. Freiburg/Munique: Karl Alber, 119)

Para esse crítico e historiador, a melhor definição do Romântico teria sido provavelmente a de Stendhal (Marie-Henri-Beyle, 1783-1842). Este autor via no Romantismo da época o direito e o dever de uma geração de expressar uma nova forma do sentir em nova forma artística e, no Clássico, um conjunto de preceitos que tinham como finalidade forçar o enquadramento de novos modos do sentir em formas artísticas ditadas por gerações passadas.

A política dera, em 1830, nomes às duas tendências, contrapondo um partido da resistência a um partido do movimento. O Romântico teria sido um partido do movimento, pois haveria uma dinâmica romântica, mas não uma dinâmica classicista. Na poesia dramática e lírica, ou seja, nos gêneros mais dependentes do espírito do tempo de uma época, a arte classicista surgia como conservadora e reprodutiva, não mais criadora.

O Romantismo a ela se contrapôs em desafio, desejando expulsá-la de sua posição e a expulsando. Primeiro, através da ação de uma força natural, pois o Romantismo seria juventude, e, depois, por se vincular com os três inimigos naturais do Classicismo.

Esses aliados, oponentes contra o Classicismo como doutrina especificamente francesa de gêneros de validade geral e de uma concepção que colocava a cultura como questão da alta sociedade seriam, primeiramente, o Estrangeiro (a literatura do Norte e do Sul foram para o Romantismo o que a literatura de Roma e a do século XVII haviam sido para o Classicismo), em segundo lugar, o Individualismo (solidão como primordial atitude do poeta romântico, manifestada por exemplo no uso de certos termos indicadores de introspecção, por ex. Méditations ou Recueillements) e, em terceiro, lugar, o elo com o povo (o contato com o teatro e a lírica populares, o direcionamento ao povo como fonte e público). (op.cit. 120)

Thibaudet, na sua análise, salientou, assim, a formação de partidos na vida cultural à luz do sistema instaurado em 1830. O desenvolvimento literário e cultural em geral teria passado a ser compreendido sob a categoria de oposição entre dois mundos, antes chamados de clássico e romântico, cujas denominações podiam ser modificadas, não porém a sua função e o seu papel.

O Romantismo teria levado à formação de partidos na cultura, a república literária passou a ser configurada da mesma forma que a república política, ou seja, como o Estado ou a vida política. Desde a Restauração teria ocorrido uma divisão das cidades e aldeias em partidos políticos, em grupos rivais, uma situação não conhecida na França anterior a 1789. Agora, era-se branco, azul ou vermelho, de direita ou de esquerda. A situação passou a ser definida por posições antagônicas, por diferenças.

Essa análise histórico-cultural em função das correntes e idéias políticas na França é de significado para os estudos latino-americanos, em particular para os brasileiros, uma vez que também nos novos países independentes a vida cultural do século XIX passou a ser configurada em partidos, havendo nas cidades, mesmo em núcleos urbanos menores, a divisão entre grupos dos conservadores e liberais, fato que se manifestaria de forma mais explícita nas corporações musicais do Brasil.

Estudos lamartinianos sob o enfoque das diferenças na vida cultural

Dentre os vultos da história cultural francesa que merecem uma especial consideração sob a perspectiva dos estudos em relações internacionais deve ser aqui salientado o de Alphonse de Lamartine (1790-1869) que, como renomado escritor e diplomata, surgia, em 1830, como um dos principais representantes da corrente romântica no universo de língua francesa. Passou a pertencer à Académie française e publicou, nesse ano, a sua obra Harmonies poétiques et religieuses. Estava próximo a R.-F. de Chateaubriand (1768-1848), que encontrara em 1829, e da esfera de Victor Hugo (1802-1885).

A obra de Lamartine, suas concepções e sua projeção, porém, não podem ser adequadamente examinadas sem a consideração de sua posição na história das idéias políticas. O escritor pertencia ao rol daqueles aristocratas que não aceitaram o sistema instaurado pela Revolução de Julho, não reconheciam a legitimidade do novo Rei dos Franceses, e a expressão mais clara de suas convicções foi o de ter abandonado o serviço diplomático e passado a desenvolver atividades políticas de oposição. Com a sua atuação política, a sua capacidade retórica e sobretudo com a sua obra Histoire des Girondins (1847) contribuiria à queda do sistema Louis Philippe, em 1848. Nesse ano, ainda que por pouco tempo, Lamartine tornar-se-ia Ministro do Exterior do govêrno provisório; a sua carreira terminaria com o golpe de Estado de 1851.

A sua identificação partidária como homem do Legitimismo, do período findo da Restauração, de súdito de Luís XVIII, a quem servira na Guarda e como diplomata, compreende-se pelo fato de ser de família nobre, ainda que da nobreza rural. Essa convicção era tão enraizada que, quando jovem, negara-se a fazer carreira sob Napoleão.

Ao legitimismo de suas posições correspondia o seu vínculo com a religião. Recebera uma formação profundamente católica na infância, sobretudo por parte da mãe e devido à sua formação em internato em Mâcon. Embora perdendo o seu fervor durante alguns anos, retornara à religião após um período crítico pessoal, orientando-a porém antes no sentido de uma visão espiritual da Natureza. Sob essas condições, Lamartine não poderia adaptar-se a um sistema baseado em enriquecidos e dirigido primordialmente à prosperidade material.

A época na qual tais tendências melhor corresponderam à situação política instaurada fora aquela ao redor de 1820. Nesse ano, Lamartine publicara as suas Méditations poétiques, volume que alcançou projeção internacional e que fundamentou o prestígio do escritor. Já Thibaudet observou que muitas dessas poesias surgiriam hoje como sendo sem maior atratividade, tendo sido criticadas como sendo sem valor poético; tratar-se-ia aqui, porém, de um problema de recepção, de falta de empatia pela atmosfera cultural reinante ao redor de 1820.

Muito dessa lírica é constituído por dissertações religiosas, marcadas por um tom de meditação interior. A recepção triunfante que obtiveram na época foi devido ao fato de Lamartine ter vindo de encontro a uma anelo, sobretudo no ambiente cultural dos salões. O nome em relêvo era o de Byron, cujas obras completas, em inglês, haviam sido publicadas em Paris, em 1818 e, em francês, em 1819 e 20. Byron surgia como uma divindade dos salões, das mulheres e dos jovens.

Entretanto, a voz dos salões franceses pedia um Byron cristão. Em l'Homme, nas Méditations, Lamartine surge como esse Byron francês, cristão; em Isolement trata da contemplação solitária dos espaços celestiais. As Méditations poétiques de 1820 poderiam ter tido também a complementação de religieuses, como mais tarde, em 1830, as Harmonies poétiques et religieuses. Nelas, ter-se-ia quase que uma transposição lítero-musical do Génie du Christianisme de R. de Chateaubriand ao idioma sonoro do verso.

A poesia de Lamartine situar-se-ia assim na confluência de correntes marcadas pela tradição do século XVIII, sobretudo Voltaire (1694-1778), e Chateaubriand. A forma voltariana da epístola e da dissertação em verso ter-se-ia unido à poesia espiritualizada do Génie à época dos alvores da Restauração e do Romantismo, e de tal transfiguração surgira uma poesia de ressurreição.

Gonçalves de Magalhães à luz de Lamartine

Niteroi. Foto A.A.Bispo 2009
Domingos José Gonçalves de Magalhães (1811-1882) veio a Paris à época da ressonância das Harmonies poétiques et religieuses e, ao mesmo tempo, a da decepção política de Lamartine, quando esse partia para a sua viagem ao Oriente (1832/33).

Assim como Lamartine na França, Gonçalves de Magalhães tornar-se-ia um dos principais representantes do Romantismo no Brasil, entrando na história até mesmo como o seu introdutor no país.

Como documento-marco, como manifesto do Romantismo brasileiro é visto o seu Discurso sobre a Literatura no Brasil, significativamente - e singularmente - lançado em Paris, em 1836.

Assim como a situação francesa, acima esboçada nos seus vínculos com as idéias políticas, o nome de Gonçalves de Magalhães insere-se numa história cultural que passaria a ser marcada por partidarismo e antagonismo, por contraposições entre o Romântico e o Clássico, e, sobretudo, pela polêmica entre o seu oponente, José de Alencar (1829-1877), e os seus defensores, entre êles e, sobretudo, Pedro II.

Assim como Lamartine, as obras de Gonçalves de Magalhães passaram a ser vistas como sem maior interesse poético pela crítica literária posterior. Também aqui pode-se dizer que tal crítica é expressão de uma incompreensão, de falta de empatia, até mesmo de desconhecimento de contextos nas quais a obra de Gonçalves de Magalhães se inseriu.

Pode ser vista, além do mais, como um problema do método de análíse. Os critérios de julgamento de sua obra não podem ser definidos exclusivamente a partir de considerações literárias no sentido convencional do termo. Tratando-se, como em Lamartine, antes de dissertações na linguagem sonora de versos, os seus textos mereceriam ser considerados antes no contexto da história das idéias e de uma história cultural de cunho interdisciplinar em contextos internacionais.

As múltiplas áreas dos interesses e das aptidões de Gonçalves de Magalhães exigem reflexões sobre as perspectivas adequadas para o exame de sua vida e obra.

Não se pode esquecer que o brasileiro formou-se em Medicina, em 1832, e que a sua viagem à Europa realizou-se primordialmente com o objetivo de seu aperfeiçoamento como médico.

A literatura e a filosofia foram elementos de uma formação geral ampla de homem altamente cultivado, ou melhor, a literatura foi a linguagem encontrada para o dissertar sobre concepções do mundo e do homem. 

Poderia, assim, ser considerado no âmbito de uma história da Filosofia da Cultura no Brasil ou no contexto das relações euro-brasileiras. Foi, assim, coerente que tenha sido nomeado posteriormente, em 1838, professor de Filosofia do Colégio Pedro II.

Já no ano de sua formatura em Medicina, Gonçalves de Magalhães publicou um volume de Poesias. Tudo indica, portanto, que já no Brasil tinha tido há muito contato com as tendências européias do Romantismo, há muito procurara versar as suas concepções em verso. Se Lamartine inseria-se em parte em corrente de tradição literária que remontava ao século XVIII, segundo Thibaudet voltariano no sentido de verter dissertação em verso ou, em particular, de Évariste Désiré de Forges, Visconde de Parny (1753-1814), no sentido de escrever poemas em prosa, - o autor de Chansons madécasses nascido em La Réunion -, Gonçalves de Magalhães apresenta vínculos - ainda que reconhecidos como críticos - com Antonio Pereira de Souza Caldas (1762-1814), personalidade profundamente marcada pela cultura francesa e que exprimira concepções filosóficas e religiosas na linguagem da poesia.

A corrente que vinculava, quanto à forma de expressão, Lamartine a um passado remoto, representando uma flor tardia em tronco velho, segundo Thibaudet, apenas pode ser considerada sob o pano de fundo da catolicidade de sua formação e na sua fusão com o espírito do Génie du Christianisme de Chateaubriand. Também em Gonçalves Guimarães a formação religiosa foi determinante de suas concepções, marcadas sobretudo pela personalidade e pelo pensamento de Frei Francisco de Monte Alverne OFM (1784-1858) orador sacro e pregador oficial do Império.

Em Paris, Gonçalves de Magalhães encontrou um meio brasileiro cuja personalidade principal era a de Manuel de Araújo Porto-Alegre (1806-79), intelectual e artista também de interesses culturais múltiplos e que estudava e atuava já há anos na Europa (Veja artigo nesta edição). Apesar da proximidade entre esses brasileiros, manifestada em viagens e empreendimentos comuns, pouco se refletiu sobre a diferença de suas situações e posições. Se Lamartine provinha de família nobre, justificando o seu Legitimismo, Gonçalves de Magalhães era médico e havia realizado estudos avançados e diversificados que indicam uma situação social elevada.

Correspondendo aos princípios que guiavam também as concepções e a obra de Lamartine, os fatores que orientam a literatura deveriam ser para Gonçalves de Magalhães a religião, o indivíduo, o sentimento, o patriotismo, a liberdade quanto ao jugo métrico, o senso da História e a evocação da infância. Seus temas principais correspondem assim àqueles de Lamartine, salientando-se a visão espiritualizada da Natureza e a meditação sobre a temporalidade da existência, manifestada também na inspiração em ruínas e túmulos.

Suspiros Poéticos e Saudades

A grande obra de Gonçalves de Magalhães surgida na França foi a de seus Suspiros Poéticos e Saudades, de 1836, de grandes dimensões, obra considerada como marco inicial do Romantismo brasileiro. Se Lamartine devia o seu triunfo às Méditations poétiques, de 1820, seguidas pelas Nouvelles Méditations, de 1823, e publicara Harmonies poétiques et religieuses, em 1830, obra magna determinada pela vivência da Itália e da poesia religiosa da Restauração, Gonçalves de Magalhães apresentava uma obra de similar orientação, onde os Suspiros surgem em lugar das Meditações e Harmonias poéticas e Saudades das Harmonias religiosas. Também aqui trata-se sobretudo da elaboração poética de viagens e locais, sobretudo de paisagens onde o homem sente mais de perto o Mistério a ser contemplado na Natureza, fato salientado pelo próprio Gonçalves de Magalhães na sua obra.

"É um Livro de Poesias escritas segundo as impressões dos lugares; ora assentado entre as ruínas da antiga Roma, meditando sobre a sorte dos impérios; ora no cimo dos Alpes, a imaginação vagando no infinito como um átomo no espaço, ora na gótica catedral, admirando a grandeza de Deus, e os prodígios do Cristianismo; ora entre os ciprestes que espalham sua sombra sobre túmulos; ora enfim refletindo sobre a sorte da Pátria, sobre as paixões dos homens, sobre o nada da vida. São poesias de um peregrino, variadas como as cenas da Natureza, diversas como as fases da vida, mas que se harmonizam pela unidade do pensamento, e se ligam como os anéis de uma cadeia; poesias d'alma, e do coração, e que só pela alma e o coração devem ser julgadas."


A intenção de Gonçalves de Magalhães reflete uma concepção de natureza musical. Trata-se da ressonância em simpatia, do vibrar de cordas similarmente afinadas, de eco e da harmonia de suspiros:


"Quem ao menos uma vez separou-se de seus pais, chorou sobre a campa de um amigo, e armado com o bastão de peregrino, errou de cidade em cidade, de ruína em ruína, como repudiado pelos seus; quem no silêncio da noite, cansado de fadiga, elevou até Deus uma alma piedosa, e verteu lágrimas amargas pela injustiça, e misérias dos homens; quem meditou sobre a instabilidade das coisas da vida, e sobre a ordem providencial que reina na história da Humanidade, como nossa alma em todas as nossas ações; esse achará um eco de sua alma nestas folhas que lançamos hoje a seus pés, e um suspiro que se harmonize com o seu suspiro."


Os exames comparativos dessa obra com as Lamartine poderiam ser desenvolvidos em pormenores. Assim, se Thibaudet salientou que, nas Nouvelles Méditations o poema "Bonaparte" foi a primeira das estruturadas odes, nas quais cada estrofe se processaria "tal qual deusa da vitória de pés alados com sandálias de bronze", odes que, após 1830, pertenceriam aos mais belos coros da lírica de Lamartine, Gonçalves de Magalhães compôs um similar canto de Napoleão em Waterloo:

  1. Ei-lo sentado em cima do rochedo,
    Ouvindo o eco fúnebre das ondas,
    Que murmuram seu cântico de morte:
    Braços cruzados sobre o largo peito,
    Qual náufrago escapado da tormenta,
    Que as vagas sôbre o escolho rejeitaram,
    Ou qual marmórea estátua sôbre um túmulo.
    Que grande idéia ocupa e turbilhona
    Naquela alma tão grande como o mundo!
    (dos Suspiros Poéticos)

O livro de Gonçalves de Magalhães possui explicitamente uma intenção espiritual, o de elevar a poesia a Deus. O seu símbolo fundamental é o da Lira de Mercúrio, o da Lira da Razão, entregue ao vate, e este assume uma posição apolínia:

"O fim deste Livro, ao menos aquele a que nos propusemos, que ignoramos se o atingimos, é o de elevar a Poesia à sublime fonte donde ela emana, como o eflúvio d'água, que da rocha se precipita, e ao seu cume remonta, ou como a reflexão da luz ao corpo luminoso; vingar ao mesmo tempo a Poesia das profanações do vulgo, indicando apenas no Brasil uma nova estrada aos futuros engenhos.


A Poesia, este aroma d'alma, deve de contínuo subir ao Senhor; som acorde da inteligência deve santificar as virtudes, e amaldiçoar os vícios. O poeta, empunhando a lira da Razão, cumpre-lhe vibrar as cordas eternas do Santo, do Justo, e do Belo."


Gonçalves de Magalhães vê, nessa sua intenção, uma dimensão ética, exercendo uma crítica à poesia brasileira, citando especificamente Antonio Pereira de Souza Caldas. Aqui, porém, constata-se a problemática de sua concepção de cultura e civilização e que daria margem, no futuro, a críticas quanto à sua interpretação positiva da cristianização dos indígenas. Na sua religiosidade, não podia assumir uma posição rousseauniana representada por Souza Caldas, vendo o processo civilizatório em estreito relacionamento com a cristianização:

"(...) o mesmo Caldas, o primeiro dos nossos líricos, tão cheio de saber, e que pudera ter sido o reformador da nossa Poesia, nos seus primores d'arte, nem sempre se apoderou desta idéia. Compõe-se uma grande parte de suas obras de traduções; e quando ele é original causa mesmo dó que cantasse o homem selvagem de preferência ao homem civilizado, como se aquele a este superasse, como se a civilização não fosse obra de Deus, a que era o homem chamado pela força da inteligência com que a Providência dos mais seres o distinguira!"


A missão do poeta, segundo Gonçalves de Magalhães, era, em todas as situações, a de encantar os sentidos, fazer vibrar as cordas do coração e elevar o pensamento às idéias arquetípicas nas "asas da harmonia".


Niterói: Revista Brasiliense

Além do mencionado Discurso sôbre a Literatura no Brasil, de 1836, Gonçalves de Magalhães publicou, juntamente com Manuel de Araújo Porto Alegre e Francisco de Sales Torres Homem (1812-1876), também médico e escritor, em Paris, a revista Niterói: Revista Brasiliense.


Essa publicação não é apenas digna de nota como sinal da dinâmica empreendedora dos brasileiros que viviam em Paris na década de trinta do século XIX e da existência de um círculo de leitores interessado em questões brasileiras. Um dos aspectos que merecem particular atenção diz respeito também aqui a elos com o universo lamartiniano e que se expressa na própria denominação da revista.


Trata-se aqui da comparação entre Niterói e Nápoles, ou da Baía da Guanabara e do Golfo de Nápoles, o que apenas pode ser entendido sob o pano de fundo do significado dessa cidade no universo lamartiniano. Esse significado remontava à época em que a Itália se encontrava sob o domínio francês, sob Napoleão, quando o jovem Lamartine ali realizou uma longa viagem de estudos.


Em 1811/12 visitou em particular Roma e Nápoles, tendo aqui um romance que mais tarde levaria à sua obra Graziella. Também a sua vida de diplomata vinculara-se com a Itália. Em 1820 passou vários meses como attaché da embaixada francesa em Nápoles e, em 1825, atuou por dois anos e meio como secretário da legação francesa em Florença, então capital do Ducado da Toscana.


Nas suas Nouvelles Méditations, o Golfo de Nápoles é cantado em Ischia, um poema decantado pela sua sentimentalidade e musicalidade. Também entre os brasileiros que estudavam na França, entre êles Manuel de Araújo Porto-Alegre, constata-se uma atração pela Itália, em particular por Nápoles. Torna-se compreensível, assim que tenham escolhido Niterói como título da Revista Brasiliense.


Mais tarde, Gonçalves de Magalhães voltaria explicitamente a essa comparação entre Nápoles e Niterói:


  1. Niterói! Niterói! como és formosa!
    Eu me glorio de dever-te o berço!
    Montanhas, várzeas, lagos, mares, ilhas,
    Prolífica natura, céu ridente,
    Léguas e léguas de prodígios tantos,
    Num todo tão harmônico e sublime,
    Onde os olhos verão longe deste Éden?
    Não és tão belo assim, cerúleo gôlfo
    Onde a linda Partênope se espelha,
    Tão risonha e animada como a noiva
    No dia nupcial lêda se arreia
    Para mais encantar do espôso os olhos!
    (...)
    Meu pátrio Niterói te excede em galas,
    Na grandeza sem par muito te excede!

    (
    Confederação dos Tamoios, canto VI, pp. 171-173, ed. de 1856)


A questão épica em Lamartine e a Confederação dos Tamoios


As obras épicas de Lamartine, Jocelyn (1836) e La chute d'un ange (1838) foram criticadas pela falta de energia necessária ao gênero. O projeto de um grande poema havia sido o epos Clovis; durante os seus anos na Itália surgiu um outro projeto, o epos Visions, uma série de episódios, de quadros históricos, através dos quais o homem, como criatura decaída, subiria degrau por degrau na contemplação divina. Depois de 1830, abandonando esse plano, escreveu o epopéia de um pároco, Josselin. Após o seu retorno da viagem ao Oriente, transformou o Josselin num poema de conotações filosóficas e religiosas.


Em 1837, um ano após o seu Discurso, Gonçalves de Magalhães retornou ao Brasil, tornando-se mentor natural do movimento romântico no país. O seu papel foi o de renovar a lírica e a epopéia e contribuir ao enriquecimento cultural não apenas literariamente, com o romance e obras teatrais (Antonio José ou o poeta e a Inquisição 1838; tragédia Olgiato, 1839), mas sim também com o desenvolvimento do ensaísmo histórico e filosófico.

Particular ressonância causou A Confederação dos Tamoios, de 1856, obra épica em dez cantos na qual tanto o indígena quanto o missionário são considerados sob perspectiva favorável, fato por alguns vistos como paradoxal. Criticado por José de Alencar, foi defendido pelo seu mentor, Monte Alverne e pelo seu protetor, Pedro II. A posição de Gonçalves de Magalhães, porém, do lado do indígena e, ao mesmo tempo, favorável à cristianização, já enunciada explicitamente nos seus Suspiros Poéticos e Saudades, é compreensível a partir de sua visão do mundo de fundamentação cristã.

Vida diplomática

Se Lamartine serviu a seu rei Luis XVIII na Guarda e na diplomacia, também Gonçalves de Magalhães tomou parte ativa na vida político-militar do Brasil e, posteriormente, na sua representação em vários países do mundo.

Acompanhou Caxias em campanhas no Nordeste (Balaiada) e no Rio Grande do Sul (Farrapos). Em 1847, entrou para a diplomacia. Atuou como Ministro em missão especial no Paraguai, como Ministro residente na Áustria, nos Estados Unidos, na Argentina e na Santa Sé, cargo este a que estava por assim dizer predestinado. Desempenhou o cargo de Encarregado de Negócios no Reino das Duas Sicílias, no Piemonte, na Rússia e na Espanha. Atuou, assim, como Lamartine, em Nápoles e em Florença.

Dedicada a Pedro II e por este mandada editar, a Confederação dos Tamoios foi difundida através de caminhos diplomáticos. Ofícios nesse sentido foram expedidos ao Eviado Extraordinário e Ministro Plenipotenciário do Brasil no Uruguai, conselheiro José Maria do Amaral, ao Encarregado de Negócios do Brasil na Espanha, Francisco Adolfo de Varnhagen, ao Príncipe de Wied e Neuwied, com oferencimento em francês, ao Encarregado de Negócios do Brasil na Confederação Argentina e Estados de Buenos Aires, Joaquium Tomás do Amaral, ao Ministro Plenipotenciário do Brasil em Portugal, conselheiro Antonio Peregrino Maciel Monteiro, ao conselheiro José Marques Lisboa e ao  Dr. Caetano Lopes de Moura em Paris, assim como a Antonio Gonçalves Dias, João Francisco Lisboa, Joaquim Caetano da Silva, Ferdinando Denis, Miguel Maria Lisboa, Francisco Inácio de Carvalho Moreira, Martius e Antonio Peregrino Maciel Monteiro.

Das suas obras de maior interesse para o estudo da história do pensamento e da filosofia cumpre citar os Fatos do Espírito Humano (1865); Opúsculos Históricos e Literários (1865); A alma e o cérebro (1876) e Comentários e Pensamentos (1880).

Reconsideração da obra de Gonçalves de Magalhães

Impõe-se, hoje, a reconsideração da obra de Gonçalves de Magalhães. De forma injusta e inapropriada, esse monumento da história cultural do Brasil - e da história cultural em contextos internacionais - tem sido desconsiderado por representantes da crítica literária.

"Magalhães possuía um ouvido metálico; seus versos, de um prosaísmo extremo, são verdadeiros aleijões rítmicos. No fundo, trata-se da dicção ressecada do nosso último arcadismo, apenas emprestada ao temário romântico. A fraqueza do 'distinto diplomata' estava justamente nisso: em querer fazer um romantismo de temas, sem atentar nas exigências formais do novo estilo. (...) A Confederação dos Tamoios, em dez prolixos cantos em versos geralmente soltos, de estrofação livre, ou melhor caótica. (...) Nem as partes líricas (...) escapam ao indefectível mau gosto, à 'delicadeza' positivamente hipopotâmica de Magalhães. Triste sorte a do nosso romantismo, se não tivesse fugido ao estilo do seu fundador..." (José Guilherme Merquior, De Anchieta a Euclides: Breve História da Literatura Brasileira I, Rio de Janeiro: José Olympio 1977, págs. 60-61).

Esse julgamento não leva em consideração os princípios claramente expostos por Gonçalves de Magalhães nos seus Suspiros Poéticos e Saudades e que correspondiam à tradição a que se vinculava. Para êle, quanto à forma, compreendida como construção material das estrofes, as idéias deveriam ser expressas como se apresentam, para não destruir o acento da inspiração.

"(...)  a igualdade dos versos, a regularidade das rimas, e a simetria das estâncias produz uma tal monotonia, e dá certa feição de concertado artificio que jamais podem agradar. Ora, não se compõe uma orquestra só com sons doces e flautados; cada paixão requer sua linguagem própria, seus sons imitativos, e períodos explicativos."

A reconsideração da obra de Gonçalves de Magalhães exige portanto uma perspectiva estético-cultural adequada, o que apenas pode ser esperado através de um maior desenvolvimento dos estudos culturais em contextos internacionais.

O Amazonas (Confederação dos Tamoios, canto I, pp. 3-6, ed. de 1856)

  1. Baliza natural ao norte avulta
    O das águas gigante caudaloso,
    Que pela terra alarga-se vastíssimo;
    Do oceano rival, ou rei dos rios,
    Se é que o nome de rei o não abate;
    Pois mais que o rei supera em pompa e brilho
    No sólio, à multidão em torno curva,
    Supera o Amazonas na grandeza
    A quantos rios há grandes no mundo!
    O Kiang, o Nilo, o Volga, o Mississipe
    Inda que as águas suas reunissem,
    Com ele competir não poderiam.
    Ao lado seu direito, e ao esquerdo lado,
    Mil feudatários rios vêm pagar-lhe
    Tributo perenal de suas águas
    Ressupino gigante se afigura,
    Qual outro Briaréu, mas verdadeiro,
    Que estende os braços pr'a abraçar a terra!
    Pujante assim no Atlântico se entranha,
    Ante si repelindo o argênteo salso,
    Como se êle na terra não coubera,
    Ou como de inundá-la receoso,
    Se mais longo e mais lento a discorresse!
    O Amazonas c'o Oceano furioso
    Luta renhida trava interminável
    Para roubar-lhe o leito; e ronca e espuma,
    Qual no lago, enlaçada a cauda a um tronco,
    Feroz sucuriúba hórrida ronca,
    Quando sente mover-se à flor das águas
    Lontra ligeira ou anta descuidada,
    E, inchando as fauces, a cabeça eleva,
    Os queixos escancara, a língua solta,
    Para de uma só vez tragar o anfíbio:
    Tal no pleito c'o Oceano o Amazonas
    Para sorvê-lo a larga foz medonha
    Léguas abre setenta! A ingente língua
    Estende de três vezes trinta milhas
    Como uma longa espada que se embebe
    Ao través do Atlântico iracundo,
    Que gemendo recua no arremêeso,
    E em montes alquebrado o dorso enruga.


Antonio Alexandre Bispo




  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais - Academia Brasil-Europa (A.B.E.) - e do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (Institut für Studien der Musikkultur des portugiesischen Sprachraumes, I.S.M.P.S. e.V.), visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens: http://www.brasil-europa.eu


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