Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 121/9 (2009:5)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2009 by ISMPS e.V. Edição reconfigurada © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2486


 


Brasileiros em Paris nos últimos anos do Império brasileiro
Época de Marie François Sadi Carnot (1887-1894)

Francisco Magalhães do Valle (1869-1906) e César Franck (1822-1890)
Da província de Minas à procura de projeção e a erudição franco-alemã de mediação belga





Este texto apresenta uma súmula de ciclo de estudos dedicados às relações França-Brasil/Brasil-França realizados em diferentes cidades francesas em 2009. Foram aqui lembradas as preocupações pelos estudos culturais franco-brasileiros na linha de tradição que remonta à época da fundação da sociedade dedicada à renovação dos estudos culturais (Nova Difusão 1968), a atual Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais - Academia Brasil-Europa.


Na Europa, a partir de 1974, esses trabalhos e iniciativas receberam a colaboração de muitos estudiosos franceses no decorrer das décadas, e, entre os brasileiros residentes na França, deve-se salientar Luíz Heitor Correa de Azevedo pelo seu empenho no desenvolvimento institucional e pela sua participação em muitas iniciativas. Ao encontro de Royaumont em 1984 sob sua égide remontam impulsos que marcaram a orientação antropológico-cultural do ISMPS e da ABE.Os  trabalhos seguiram impulsos do Colóquio Filosofia Francesa Contemporânea e Estudos Culturais pela morte de J. Derrida (2005), do Congresso Internacional "Música e Visões" pelos 500 anos do Brasil e triênio subsequente (1999-2004) e eventos precedentes, devendo lembrar-se da Primeira Semana de Música França-Alemanha realizada por iniciativa brasileira em 1983 em Leichlingen/Colonia.


Pareceu ser oportuno, para sumarizar e favorecer o prosseguimento ao trabalhos em seminários europeus, recordar alguns nomes de brasileiros e de franceses que atuaram sobretudo em Paris na contextualização de sua época. Essa aproximação antes pessoal facilita os estudos para estrangeiros e traz à consciência o papel mediador desempenhado por muitos brasileiros que estudaram e viveram na França, trazendo impulsos ao Brasil que devem ser analisados sob o pano de fundo da época em que estudaram e atuaram. Os estudos tiveram como objetivo principal oferecer uma contribuição à formação de uma consciência histórica adequada àqueles residentes na França ou descendentes de brasileiros.






Francisco Valle
Nos estudos referentes à presença e à a atuação de latinoamericanos na Europa e de suas relações com as respectivas nações levanta-se não apenas a questão da adequada consideração do respectivo período histórico.

Há complexos processos de identidade cultural em jogo e que necessitam ser examinados no contexto de proveniência no país natal e das circunstâncias da viagem, assim como relativamente ao círculo social e cultural de inserção na Europa, uma vez que este co-determina a o contato e a integração, a transformação cultural e os mecanismos reativos.

A nivelação superficial de diferenças e o projetar de estereotipos não são produtivos para o desenvolvimento mais aprofundado de análises e deveriam representar êles próprios objeto para estudos de mentalidades e de observação da observação.

Há, porém, um fator que também não pode ser negligenciado: o individual, aquele que diz respeito à personalidade e ao caráter dos envolvidos: o latinoamericano no Exterior não é apenas o brasileiro, o mexicano, o cubano ou o argentino, não é apenas aquele definido pelo seu documento formal de identidade ou por estruturas e processos coletivos, mas é também e sobretudo uma individualidade, cujos valores e características surgem como relevantes na aproximação de pessoas de diferentes meios, na integração em determinados círculos, na diferenciação pessoal, no relacionamento humano e nas suas consequências para atividades nos países de origem.

Não é raro, assim, que um estrangeiro procure por motivos humanos a convivência com determinados membros da sociedade que o acolhe, não relacionando-se tão intensamente com os seus compatriotas e suas colonias, sem que tal fato implique necessariamente em falta de lealdade ou de consciência para com o país de origem. Se houve muitas vezes um excesso personalizante na consideração de latinoamericanos que realizaram estudos ou se fixaram na Europa, não se deveria agora cair na deficiência oposta, ou seja, deixar-se de lado nos estudos culturais o aspecto antes universal do homem: aquele referente ao caráter, à ética individual e à tipologia psicológica do indivíduo.

Um exemplo da necessidade de consideração das características do indivíduo nos estudos interculturais pode ser visto em Francisco Magalhães do Valle, compositor nascido há 140 anos, a 20 de março de 1869 na fazenda de São Joaquim, distrito de Pôrto das Flores, Juiz de Fora, Minas Gerais. Já o seu primeiro biógrafo, Américo Pereira, iniciou a sua monografia situando-o no rol dos nomes injustiçados na sua época, incompreensão que surge como um dos fatores explicativos da tragédia de seu suicídio.

"Na música brasileira, tão rica de expressões artísticas, existem algumas figuras esquecidas pela ingratidão dos contemporâneos, precursores de uma nova era que, nos domínios da arte criadora, jamais se poderá fixar à custa do exotismo de novas fórmulas de estética. Em verdade, nas gerações passadas encontram-se ainda individualidades, como a de Francisco Valle, mal compreendidas na lídima significação de sua obra." Américo Pereira, O Maestro Francisco Vale (Ensaio crítico-biográfico), Rio de Janeiro: Laemmert, 1962 [O Maestro Francisco Valle - Monografia, Rio de Janeiro: Oficinas Gráficas de A Noite, 1923]

Francisco Magalhães do Valle, formado em ambiente rural, foi mais do que um "mineiro" no ambiente cosmopolita do Rio de Janeiro e em Paris, mais do que aquele provinciano em metrópoles, cuja falta de desenvoltura e atitude reservada e acanhada, ingênua, foi notada pelos seus contemporâneos. A sua atitude descrita como de "corça assustadiça", o seu olhar expressivo, que sugeria um mixto de profundidade, espanto e temor, o seu retraimento, a sua modéstia, o seu despreendimento material e altruísmo decantados por aqueles que o conheceram não podem ser entendidos apenas em função de sua origem e de seu meio sócio-cultural provinciano ou rural. Podem ser analisados como indícios de sua compleição psíquica, de sua vida interior, de sua tendência à introspecção, de seu idealismo, de sua expectativa em ver-se reconhecido sem o emprêgo indigno de recursos auto-propagandísticos.

Elos com a Bélgica e a Alemanha em Juiz de Fora

Muito do universo dos ideais de Francisco Magalhães do Valle pode ser explicado a partir de seus antecedentes familiares. O seu pai, Manuel Marcelino do Valle (1839-1903), com o qual recebeu o seu primeiro aprendizado, nascido em Santa Rita de Jacutinga, foi músico de excelente formação. Estudou flauta com o internacionalmente renomado Mathieu André Reichard (1830-1880), músico belga que vivia no Rio de Janeiro. Estudou no Conservatório Imperial de Música, salientando-se como estudante, recebendo menção honrosa em clarineta, em 1863, assim como medalha de prata em teoria e solfejo.

Embora tendo abandonado o ambiente musical do Rio de Janeiro após o seu casamento, passando à vida agrícola, continuou a exercer atividades musicais. Dedicou-se à composição (missas, ladainhas, orações cantadas, variações para flauta, polcas, valsas, mazurcas), à promoção de festas e ao ensino, possuindo alunas em Juiz de Fora, Barbacena, São José do Rio Prêto, Paraíba do Sul e no Conservatório de Valença. Procurou oferecer todas as condições para que o seu filho desenvolvesse as aptidões que cedo manifestou.

Francisco Magalhães do Valle recebeu, em casa, não apenas um primeiro ensinamento, mas sim um conjunto de concepções quanto a repertório e estilos, valores e ideais remontantes pelo que tudo indica sobretudo a uma perspectiva belga da vida musical. Correntes franco-alemãs, ou melhor, repertórios e concepções alemãs focalizadas sob pontos de vista de uma sociedade marcada pela recepção cultural francesa intensificaram-se, na sua formação, com o ensino que passou a receber de Elisa Schmitt (ou Schmidt), professora de piano alemã, e de Wilhelm Bickerle (+1902), maestro e violoncelista. Embora pouco se saiba a respeito desses seus professores, pode-se supor que tenham despertado em Francisco Magalhães do Valle ideais pelo Clássico no sentido de exemplaridade na música e seus valores estéticos e humanos.

L. v. Beethoven e repertório romântico no Rio de Janeiro

Para o aperfeiçoamento de seus estudos, Francisco Magalhães do Valle foi enviado à Côrte, em 1885. No Rio de Janeiro, passou a estudar piano com Francisco Alfredo Bevilacqua (1846-1927), que havia sido aluno, entre outros, de Theodor Leschetizky (1830-1915), na Áustria, e com Georges Mathias (1826-1910), em Paris. Este seu professor foi um dos grandes propugnadores da renovação do repertório e do ensino de piano no Brasil, promovendo a difusão e o emprêgo, na formação de jovens músicos, de obras de L. van Beethoven, F. Chopin e R. Schumann, compositores que exerceriam uma função diretriz nas concepções estéticas de Francisco Magalhães do Valle.

O seu estudo de harmonia e de princípios de composição foi desenvolvido com Miguel Cardoso (1850-1912), compositor e renomado professor, também proveniente de Minas Gerais, formado na Itália, autor de livros didático-musicais publicados à época de estudos de Francisco do Valle: Gramática musical (1886) e Harmonia elementar (1886), além de outros lançados mais tarde. Sob a sua orientação, Francisco Magalhães do Valle criou composições para piano, entre elas Prelúdio e Mazurca sentimental, e uma Sonata op. 4, inspirada na obra de Beethoven, executada esta no Club Beethoven do Rio de Janeiro a 15 de agosto de 1886, quando também executou a Sonata "Apassionata" do compositor.

Essa organização, que havia sido fundada há poucos anos (1882) por Robert Jope Kinsman Benjamin (1853-1927), formado em Londres e em Colonia, dedicava-se não apenas ao culto de L. van Beethoven, mas sim ao cultivo da música de câmara e sinfônica, à difusão dos clássicos e de valores estéticos e humanos em atmosfera reservada e de interiorização. A recepção de Beethoven no Brasil, manifestada na obra e na vida de Francisco do Valle, correspondeu, com certo atraso, a fenômeno similar observado nos Estados Unidos, quando John Knowles Paine (1839-1906), com a sua Symphony N° 1 em do menor op. 23, de 1876, de clara inspiração beethoviana, marcou o início da tradição sinfônica americana.

O reconhecimento experimentado por Francisco Magalhães do Valle nesse ambiente marcado por elevada seriedade de propósitos e sólida formação técnico-musical segundo modêlos alemães incentivou-o no prosseguimento de seus estudos. Em setembro de 1886, apresentou-se na sua cidade natal, Juiz de Fora, quando então ali se realizava a Exposição Industrial. Acompanhado pelo seu mentor, Miguel Cardoso, foi recebido no Paço de São Cristóvão, a 3 de setembro de 1887, quando apresentou-se à Princesa Isabel, Regente do Império. Pelos seu talento musical e pelas suas qualidades de modéstia e seriedade, que vinham de encontro aos valores apreciados e fomentados pela Regente,  recebeu desta uma carta de recomendação dirigida a Pedro II, então em Paris. O Imperador seria aquele que, na capital francesa, abrir-lhe-ia as portas do Conservatório, através de carta dirigida a seu diretor, Ambroise Thomas (1811-1896).

Conservatório de Paris. Charles-Marie Widor (1844-1937) e César Franck (1822-1890)

A ida e a estadia de Francisco Magalhães do Valle em Paris foi possibilitada por familiares, em particular pelo seu avô materno, Alferes Francisco Ribeiro Magalhães, que, com muitas dificuldades, permitiram que ali desenvolvesse os seus estudos. Partiu para Paris a 14 de setembro de 1887, a bordo do vapor Portugal. A França que conheceu encontrava-se em fase politicamente agitada, sendo a república atacada pelo General Georges Boulanger (1837-1891). Em dezembro de 1887, com a queda do presidente, assumiu a presidência Carnot, político de tradição republicana e que procurou consolidar o sistema. Os anos que passaria em Paris seriam marcados pelos preparativos e pela realização das celebrações pelo centenário da Revolução Francesa e da Exposição Universal de 1889.

Levando várias cartas de recomendação, e com a solicitação de Pedro II, foi aceito no Conservatório de Paris como ouvinte. Na instituição, passou a estudar piano com Charles-Wilfrid de Bériot (1833-1914) e órgão com Charles-Marie Widor (1844-1937).  Estudando com Bériot, filho do renomado violinista belga Charles-Auguste Bériot (1802-1870), Francisco do Valle recuperava a tradição paterna de vínculos franco-belgas remontante a Reichert. Inseriu-se, na sua qualidade de aluno de Bériot, numa série de renomados músicos, entre outros, de Maurice Ravel (1875-1937), Ricardo Viñes (1875-1943) e Enrique Granados (1867-1916). Ao lado de princípios de refinamento da sensibilidade e de distinção por assim dizer aristocrática que caracterizaram os discípulos dessa escola, Francisco do Valle passou a receber, sob a égide de Widor, ideais de recuperação da tradição organística e do cultivo de J. S. Bach. (Veja artigo a respeito de Widor no número anterior desta revista)

Francisco do Valle foi, acima de tudo, um discípulo de César Franck (1822-1890). Com esse compositor e organista, também belga, professor de órgão do Conservatório e mentor, através de seu discípulo Vincent d'Indy da Schola Cantorum, fundada em 1896, o músico brasileiro recebeu impulsos no sentido de uma linguagem instrumental inspirada pela tradição da improvisação organística, caracterizada por cromatismo e modulações, o que possivelmente explica o desenvolvimento audicioso e inesperado de idéias e do fluxo melódico que foi notado em algumas de suas composições.

Também com César Franck teve Francisco do Valle possibilidade de dar continuidade ao fascínio que sobre êle exerceu a forma sonata desde a sua época de estudos no Rio de Janeiro. César Franck completara há pouco a sua Sonata para Violino em Lá Maior (1886) e escrevia o Prélude, aria et final para piano (1887); o poema musical Psyché, com coro (1888); a Sinfonia em ré-menor (1886-1888), o Salmo 150 para Coro, órgão e Orquestra (1888), La procession para voz e piano ou orquestra (1888); o quarteto de cordas em Ré-Maior (1889); o Drama lírico Ghisèle (1888-90) e os Trois chorals em Mi-Maior, si-menor e lá menor para órgão (1890).

Francisco do Valle, que considerava César Franck como sendo o professor que mais o influenciara e cuja personalidade via como modelar, quase que o santificando, acompanhou-o no seu entêrro. Em carta dirigida a seu pai, de 11 de novembro de 1890, Francisco do Valle menciona a sua admiração pelo mestre: "Todo aquêle que o conheceu na intimidade e teve a felicidade de compreender a sua grande alma, não pôde conter ontem as lágrimas diante do seu corpo" (cit. Américo Pereira, op.cit. 17-18)

Na sua qualidade de discípulo de César Franck, o brasileiro teve como colegas Vincent d'Indy (1851-1931 ), então diretor de coro dos concertos Lamoureux, Ernest Chausson (1855-1899), Gabriel Pierné (1863-1937), então sucessor de César Franck como organista na Ste-Clotilde (1890-98), Louis Vierne (1870-1937) e, sobretudo, Charles Tournemire (1870-1939).

Charles Tournemire (1870-1939) e André Dulaurens (1873-1932)

Tournemire, admirado organista e improvisador ao órgão, que residia na mesma pensão de Francisco do Valle, junto à familia Lissonde, tornou-se amigo pessoal do compositor brasileiro. Com êle, Francisco Valle teve contacto com os ideais da restauração católica segundo os princípios gregorianos representados pela Abadia de Solesmes, frequentemente visitada por Tournemire. Para Tournemire, somente uma música a serviço da glorificação de Deus teria razão de ser. Esses ideais levariam a que apoiasse o movimento de restauração da música sacra promovido por Rodrigues Barbosa no Rio de Janeiro, uma vez que se compenetrara da necessidade de superação da prática de cunho profano nas igrejas. Tournemire desempenhou sobre êle também influência no sentido de uma orientação mística da existência e da fé religiosa.

Outro de seus colegas de estudos com o qual desenvolveu amizade mais estreita foi o violinista André Dulaurens (1873-1932). Este enviar-lhe-ia, mais tarde, ao Brasil, a sua Suite Pastorale, a êle dedicada. Tornou-se professor, por indicação de Sylvio Deolindo Fróes, das irmãs do professor da Faculdade de Medicina da Bahia, Dr. Eduardo de Morais, então residente em Paris.

O Paris de fins do século XIX vivenciado por Francisco do Valle foi, assim, o caracterizado pelo culto a L. v. Beethoven e a J. S. Bach. Foi o Paris de elos com a Bélgica e com o mundo da tradição musical alemã. A sua história de vida e a influência que recebeu não podem, assim, ser consideradas a partir de uma outra imagem da capital francesa, aquela marcada pela procura de uma identidade nacional na tradição da Société National de Musique ou pela música lírica e ligeira.

É compreensível que, vivendo nessa esfera caracterizada por extrema disciplina, austeridade de propósitos e espiritualização,o que exigia também uma vida de retiro pessoal e de introspecção, Francisco do Valle pouco contato tenha tido com outros brasileiros que então se encontravam em Paris. Também com músicos brasileiros, que seguiam outra orientação estética, teve pouco relacionamento.

Talvez um dos mais próximos quanto ao vínculo espiritual tenha sido Sylvio Deolindo Fróes (Veja artigo a respeito nesta edição), embora movimentando-se este em distinta esfera musical. Ambos se conheciam do Rio de Janeiro, tendo sido companheiros de estudos, reencontrando-se por acaso numa das ruas de Paris. Chegou a conhecer Alexandre Levy (1864-1892), desenvolvendo-se entre êles elos de amizade, apesar de diferenças fundamentais de orientação estética e formação cultural. Com êle assistiu a concertos de Lamoureux e Colonne, assim como a óperas, entre elas a encenação de D. Giovanni de W. A. Mozart ,sob a regência de Charles Gounod (1818-1893), por ocasião do centenário a morte do compositor, em 1891. O convívio com Levy foi porém curto, pois este retornou ao Brasil já em novembro de 1887.

Embaixada do Brasil sob o Barão de Arinos e transformações pelo advento da República

O encontro de brasileiros que estudavam e atuavam na capital francesa era fomentado por encontros na Embaixada. Foi numa dessas recepções, logo ao chegar na França, a 19 de outubro de 1887, organizada para homenagear Pedro II, que Francisco Valle travou conhecimento com Alexandre Levy. Nos últimos anos da monarquia, a representação diplomática do Brasil na França, sob a égide do Barão/Visconde de Arinos, Tomás Fortunato de Brito (+1894), também procedente de Minas Gerais, muito empenhou-se no incentivo e no apoio aos súditos brasileiros. Como Francisco do Valle salientou, a esposa do Embaixador, Dna. Maria Eugênia de Brito, representou a alma dessas recepções e da ação cultural da Embaixada. Na recepção de 1887, executou uma peça de Mendelssohn-Bartholdy (1809-1847), por ter sido essa composição a que mais apreciara quando de uma primeira apresentação na sua residência.

Com a proclamação da República, em 1889, a situação modificou-se. Essa transformação disse respeito não tanto ao compreensível período de adaptação e transição, mas sim ao da atmosfera e de um redirecionamento de interesses e tendências culturais. A Francisco Braga (1868-1945), que chegou a Paris em 1890, obtendo primeira classificação no Conservatório e passando a estudar com Jules Massenet (1842-1912), Francisco do Valle sugeriu que procurasse uma outra orientação, indicando César Franck, conselho que não foi seguido. Conheceu-o na Legação Brasileira, naquele ano, então já sob a direção do Ministro Dr. José Barbosa.

Para Francisco do Valle, ainda que por motivos familiares, o despontar da nova era representou o início do fim de sua mal iniciada carreira. De Paris, enviou obras ao Rio de Janeiro, entre elas um Minueto, três Prelúdios para piano, e um Sexteto para cordas, este executado no Rio de Janeiro, a 27 de junho de 1890, para o qual veio o seu pai especialmente de Minas. Premido pelas más notícias relativas às dificuldades econômicas e às ameaças de ruína da família, decidiu interromper os seus estudos, em 1891.

Tentativas de reconhecimento no Brasil

Voltou ao Brasil pelo vapor Equateur, chegando ao Rio de Janeiro a 9 de julho de 1891. Não se considerava completamente formado e nem consagrado. No mesmo ano, a 30 de agosto, apesar de inúmeras dificuldades, apresentou-se como pianista e compositor no Teatro São Pedro de Alcântara, no Rio de Janeiro. Da sua obra, apresentou Pastoral, Telêmaco, Reverie e Valsa scherzo. Dentre os seus admiradores, encontravam-se várias personalidades da vida musical, entre êles Antonio Carlos Gomes (1836-1896) e os críticos Alfredo Camarate e Oscar Guanabarino (1851-1937). Apesar do apoio de admiradores mais ou menos pertencentes a uma época já passada, encontrou uma incompreensão pela sua linguagem musical e pelo emprêgo de procedimentos contrapontísticos aprendidos com César Franck.

Com as recomendações que trazia, entre outros de Widor, Gounod, Beriot e César Franck, tinha a certeza de conseguir em breve uma ajuda governamental para o prosseguimento de seus estudos. Em Ouro Preto, então capital de Minas Gerais, requereu-se para tal fim uma pensão do Estado, então presidido por Cesário Alvim (1839-1903), sem sucesso, porém. Retirando-se decepcionado para a propriedade paterna, dedicou-se à vida contemplativa, aos estudos e à composição.

Em junho de 1893, com o apoio de Eugênio Fontainha e Luís Frugoni, conseguiu recursos para uma nova viagem à Europa, pretendendo agora concluir os seus estudos na Alemanha. Por razões pouco esclarecidas, foi obrigado porém a retornar após dois meses. Em concerto organizado por Carlos Gomes e Vincenzo Cernicchiaro (1858-1928), a favor da Sociedade Brasileira de Beneficiência, a 23 de outubro de 1892, teve a oportunidade de apresentar obras suas, em especial o final do Septuor.

Sempre com a esperança de poder prosseguir os seus estudos na Europa, passou a desenvolver, com o objetivo de alcançar meios, intensa atividade de ensino musical em Juiz de Fora, também na zona rural. 

Apresentou-se em concerto no Rio de Janeiro, em setembro de 1895, passando a ali residir. Realizou, em agosto de 1895, um concerto no Clube Sinfônico, em outubro de 1896, em evento organizado por seus admiradores. Embora obtendo certos reconhecimentos pelo seu valor, entre outros pela sua nomeação a membro honorário do Instituto Nacional de Música em 1896 e à participação em bancas examinadoras, não alcançou uma posição a que fazia jus.

Os seus admiradores nele reconheciam o contrapontista e o sinfonista, representante e continuador da tradição clássica. Para outros, como Frederico Nascimento (1852-1924), era um "Schumann brasileiro". Frequentemente acometido de fases de profunda melancolia e desespero, retirou-se a São José do Rio Preto. Em Juiz de Fora, apresentou-se em concerto efetuado a 31 de março de 1900, no Teatro Novelli. Entre outras obras, executou-se o Hino de sua autoria para a comemoração do IV Centenário do Descobrimento do Brasil. Em Belo Horizonte, apresentou-se em concerto no dia 4 de março de 1900, estando presente o Presidente do Estado de Minas Gerais. Organizou, em Juiz de Fora, concertos em benefício da Liga Mineira contra a Tuberculose.

Da mística católica ao espiritismo

Francisco Valle foi dominado nos últimos anos de sua vida pela sua frequência a práticas espíritas. A sua tendência espiritualista, direcionada em Paris no sentido de um catolicismo místico, levou-o ao espiritismo. É possível que já tenha tido contato com o espiritismo em Paris, ou que haja sido Marino Mancinelli (1842-1894), diretor da orquestra da Companhia Lírica que atuava em 1892 no Teatro Lírico Nacional aquele que, reconhecendo o valor das obras de Francisco Valle, estimulando-o a dar um concerto a 25 de setembro de 1892 no Clube União Comercial, significara que nele se encontrava alojado o espírito de Mozart.

Francisco Valle tomou parte de palestras literárias realizadas em fins de 1905 no Clube de Juiz de Fora com uma conferência intitulada "A Música", na qual, entre outros pontos, salientou o significado de J. S. Bach e L. van Beethoven.

O valor de uma nação, não se aquilata pelo luxo e fausto de seus habitantes; não bastam as belas ruas, nem abundância nos celeiros; mas é preciso o desenvolvimento intelectual de seu povo, nas ciências, letras e artes, patrocinados por uma política bem orientada e inteligente." (op.cit. 113)

(...)

"Depois de Sebastião Bach, Beethoven deve ocupar o primeiro lugar na arte, segundo a opinião de muitos entre os sinfonistas. Até aí, a sinfonia não possuia a linguagem como se encontra nas suas produções; não desfazendo, entretanto, em Haydn e Mozart, seus precursores.

(...) Se na literatura os autores clássicos servem de modelo, aqui Beethoven ocupa êsse lugar. Nas suas música sentimos toda a expansão de um ideal oculto na sua grande alma de iluminado. Ali se manifesta o caráter de honestidade lutando com a miséria, com os maiores desgostos, dos quais foi vítima, tudo concorrendo para a realização dessa obra monumental." (op.cit. 118)

(...) É por ela que caminhamos para a morte com entusiasmo. É incapaz de exprimir sentimentos baixos ou de sentir. A própria desgraça, na linguagem da música, é sem irritação e sem desespero.

A música suaviza docemente o peso que sentimos quase sempre no coração, quando somos capazes de afeições sérias e profundas; amenisa esse peso que se confunde, muitas vezes, com o próprio sentimento da existência, tão habital é a dor que êle nos causa" (op.,cit. 120)

Nos últimos anos, trabalhou sobretudo na elaboração do Poema Sinfônico Depois da Guerra, inspirado na revolução de 1893. No seu Bailado na Roça, apesar do assunto regional, volta a utilizar-se de recursos aprendidos com César Franck, utilizando-se de fórmulas motívicas circulantes como meio unificador da obra. Compôs o Batel da Dor (Thema Fúnebre), para dois pianos e deu início a uma nova obra, denominada de Renascença.

Suicidou-se em Juiz de Fora, a 10 de outubro de 1906, atirando-se no Rio Paraibuna.

Texto com base nos trabalhos apresentados no Forum França-Brasil/Brasil-França 2009 do respectivo Programa da Academia Brasil-Europa

Antonio Alexandre Bispo




  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais - Academia Brasil-Europa (A.B.E.) - e do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (Institut für Studien der Musikkultur des portugiesischen Sprachraumes, I.S.M.P.S. e.V.), visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens: http://www.brasil-europa.eu


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