Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 121/1 (2009:5)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2009 by ISMPS e.V. Edição reconfigurada © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2478


 


Tema em debate

Presença de brasileiros em Paris: Questões de consciência histórica e identidade

Ciclo de estudos França-Brasil/Brasil-França em diferentes cidades francesas
Abertura em Reims

À memória de Luiz Heitor Corrêa de Azevedo





Reims.Foto A.A.Bispo 2009. Copyright
Este texto apresenta uma súmula de ciclo de estudos dedicados às relações França-Brasil/Brasil-França realizados em diferentes cidades francesas em 2009. Foram aqui lembradas as preocupações pelos estudos culturais franco-brasileiros na linha de tradição que remonta à época da fundação da sociedade dedicada à renovação dos estudos culturais (Nova Difusão 1968), a atual Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais - Academia Brasil-Europa.


Na Europa, a partir de 1974, esses trabalhos e iniciativas receberam a colaboração de muitos estudiosos franceses no decorrer das décadas, e, entre os brasileiros residentes na França, deve-se salientar Luíz Heitor Correa de Azevedo pelo seu empenho no desenvolvimento institucional e pela sua participação em muitas iniciativas. Ao encontro de Royaumont em 1984 sob sua égide remontam impulsos que marcaram a orientação antropológico-cultural do ISMPS e da ABE..Os  trabalhos seguiram impulsos do Colóquio Filosofia Francesa Contemporânea e Estudos Culturais pela morte de J. Derrida (2005), do Congresso Internacional "Música e Visões" pelos 500 anos do Brasil e triênio subsequente (1999-2004) e eventos precedentes, devendo lembrar-se da Primeira Semana de Música França-Alemanha realizada por iniciativa brasileira em 1983 em Leichlingen/Colonia.


Pareceu ser oportuno, para sumarizar e favorecer o prosseguimento ao trabalhos em seminários europeus, recordar alguns nomes de brasileiros e de franceses que atuaram sobretudo em Paris na contextualização de sua época. Essa aproximação antes pessoal facilita os estudos para estrangeiros e traz à consciência o papel mediador desempenhado por muitos brasileiros que estudaram e viveram na França, trazendo impulsos ao Brasil que devem ser analisados sob o pano de fundo da época em que estudaram e atuaram. Os estudos tiveram como objetivo principal oferecer uma contribuição à formação de uma consciência histórica adequada àqueles residentes na França ou descendentes de brasileiros.






Reims.Foto A.A.Bispo 2009. Copyright
Reims.Foto A.A.Bispo 2009. Copyright
A presente edição inclui trabalhos desenvolvidos em seminários, conferências, aulas e ciclos de estudos da Academia Brasil-Europa realizados em cooperação com universidades da Europa e do Brasil e que foram agora reestudados e rediscutidos.

Royaumont. Progresso das Ciências do Homem e consciência histórica

Dos trabalhos dedicados aos estudos teórico-culturais no âmbito das relações entre a França e o Brasil fêz-se uma seleção de temas relacionados com a questão da consciência histórica das comunidades brasileiras e de descendentes de brasileiros nos países e nas metrópoles européias, em particular em Paris.

Estes temas haviam sido especialmente levantados em encontro realizado na Abadia de Royaumont, em 1985, a convite de Isabel Goüin (Fondation Royaumont pour le progrès des sciences de l'homme) e de Luís Heitor Correa de Azevedo (UNESCO) e, a seguir, tratados em sessões levadas a efeito em várias cidades.

Reims. Identidade cultural francesa como objeto de estudos

Questões teóricas e metodológicas dos estudos França-Brasil/Brasil-França foram sobretudo discutidos no Forum Brasil-França da Academia Brasil-Europa, realizado em várias edições no âmbito de cursos de mestrado e doutoramento em universidades européias, salientando-se um ciclo de estudos desenvolvido em Reims, aqui a partir de iniciativa do Prof. Dr. Victor Roger Cotte.

Essa cidade, em cuja catedral coroavam-se no passado os reis de França, assumiu um significado simbólico para o direcionamento da atenção à necessidade de uma maior consideração de questões relativas à própria identidade cultural francesa como processo histórico.

Salientou-se, nessa ocasião, que o estudo de questões de integração e de diferenciação cultural de latinoamericanos e outros estrangeiros na França e em outros países europeus não pode ser separado daquele da consideração do processo de formação das respectivas identidades culturais e nacionais nas suas diferenciações segundo épocas e regiões.

Estudos França-Brasil/Brasil-França. Temas sempre considerados

Quando se trata da história cultural em contextos franco-brasileiros, vem à mente em primeiro lugar alguns complexos temáticos que, apesar de serem de excepcional relevância e já terem sido frequentemente considerados, não constituem o escopo das reflexões relatadas nesta edição.

Entre eles se contam a tentativa francesa de estabelecimento de uma França Antártica no Rio de Janeiro, no século XVI, a presença francesa no Maranhão, a influência do Iluminismo francês no Brasil do século XVIII, a Missão Artística Francesa de 1816, as viagens e as obras de cientistas naturais franceses no Brasil do século XIX, a atuação de cientistas e intelectuais franceses nas Universidades brasileiras do século XX e a presença de artistas e músicos franceses no Brasil nos dois últimos séculos.

Reims.Foto A.A.Bispo 2009. Copyright
Questões de influências recíprocas e de recepção cultural

Não se retomou também especificamente a questão da "influência" francesa na cultura brasileira, ou melhor o da recepção de correntes de pensamento e de tendências culturais e estéticas da França no Brasil e, reciprocamente, do Brasil na França.

Essa temática, que vem sendo tratada há muitas décadas, levou, já em 1979, a trabalho de cooperação internacional sob a direção do editor desta revista, em parte publicado por instâncias do Vaticano e discutido em Simpósio Internacional efetuado em São Paulo.

A necessidade de uma consideração teoricamente atualizada das "influências recíprocas" segundo os debates relativos à recepção cultural e sob enfoques antropológicos foram apresentadas em simpósios realizados no âmbito das Comunidades Européias, em Bruxelas, em 1983 e 1984.

Pensamento filosófico francês e estudos interculturais

Também não constitui objetivo dos relatos incluídos nesta edição considerar a influência do pensamento francês na história e na atualidade das idéias do Brasil e referentes ao Brasil, questionamento levantado e tratado em vários seminários e conferências, em parte relatados em números anteriores desta revista.

Dentre êles, salienta-se o colóquio internacional em memória a J. Derrida, organizado pela Academia Brasil-Europa em cooperação com a Universidade de Colonia.

"Memória" de brasileiros e seus descendentes

O escopo dos trabalhos agora reconsiderados diz respeito a um problema que vem sendo constatado já há anos, mas que mantém a sua atualidade, até mesmo de forma particularmente intensa e premente: o da "memória" das comunidades brasileiras e de descendentes de brasileiros na Europa.

Esse questionamento é de significado para uma atitude consciente perante os próprios problemas de manutenção e transformação de identidades, para a própria auto-imagem e a imagem do país no Exterior, para a elaboração refletida das experiências obtidas daqueles que retornam e para a integração, também refletida, daqueles que se integram.

Reciprocidade nos estudos de migrações

Não apenas os estudos de influências culturais devem ser considerados na sua reciprocidade, como já há muito constatado, mas sim também os estudos migratórios. Estes, no âmbito dos estudos euro-brasileiros, dirigem em geral a atenção sobretudo aos imigrantes e à colonização européia e asiática no Brasil, que marcam culturalmente regiões e Estados.

Há, porém, uma imigração brasileira na Europa, nos Estados Unidos e em outras regiões do globo que vem exigindo de forma crescente a consideração dos pesquisadores culturais, como discutido em seminário dedicado ao tema Imigração e Estética, em 2005/6, realizado pela Academia Brasil-Europa em cooperação com universidades e instituições de pesquisa de migrações.

Questões de vínculos, integração e diferenciação

Sob o ponto de vista historiográfico, tem-se também aqui contextos marcados por situações complexas e submetidos a perspectivas cambiáveis. Até que ponto pertence o europeu que emigrou para o Brasil à história das suas nações de origem? Possui a historiografia brasileira focalizações adequadas que permitam incluí-los no próprio vir-a-ser histórico da nação?

Não esperam os brasileiros que os imigrados se integrem no país, que dominem o português, que assimilem a sua cultura e normas, que façam jus à terra e à sociedade que os acolhe?

Que, em casos conflitantes, esses imigrados e até mesmo integrados não levem a lealdade a seus países de procedência a ponto de passarem a defender possíveis interesses contrários àqueles do país que os abriga?

Não se sabe, porém, que mesmo passadas gerações o interesse dos imigrados pela terra de seus antepassados retoma forças? Não se constata hoje que a diversidade cultural devida à presença de imigrantes em regiões, cidades e bairros constitui um enriquecimento cultural, até mesmo patrimonial para toda a sociedade brasileira? Essas e outras questões podem ser levantadas, de forma recíproca, para os brasileiros que vivem e que criam raízes no Exterior.

Historiografia de comunidades de imigração. Perspectivas

A historiografia das comunidades de estrangeiros e seus descendentes em países do Exterior não é considerada adequadamente nem somente a partir da perspectiva dos países de emigração, nem daqueles da imigração. Ela é marcada por questionamentos próprios e necessita considerar ocorrências e fatos que surgem como ambivalentes ou aptos a diferentes focalizações. Ela necessita, assim, desenvolver gradualmente perspectivas e critérios próprios, detectar problemas e levantar questões específicas, assim como procurar aprofundar a reflexão teórica pertinente.


Problemas da nivelação de diferenças

Do ponto de vista do país de imigração, constata-se a tendência a nivelações de diferenças regionais e culturais. Os imigrados passam a ser considerados frequentemente à luz de estereotipos, de imagens de seus países de procedência, imagens essas surgidas ou construídas no decorrer da história: o imigrado de procedência da França no Brasil é o francês, independentemente da região de onde provem, se na época de sua partida respectiva pertencia ou não à França, ou à Savóia ou à Alemanha, se católico, protestante ou judeu, se pertencente ou não a grupos antagônicos entre si no país natal, e o imigrado de procedência do Brasil na Europa é em princípio o brasileiro, indiferentemente de sua proveniência da Amazônia, do Nordeste ou do Rio Grande do Sul, do interior ou de capitais, se de origem indígena, afro-brasileira, asiática ou mesmo européia.

Integração em mundos paralelos?

Se o alemão no Brasil passa a ser associado culturalmente com trajes e comidas típicas da Baviera, ainda que esse mundo lhe seja estranho no contexto do país natal, se o francês no Brasil passa a ser visto à luz do parisiense e a mulher francesa até mesmo marcada por imagens da vida mundana da capital da França, ainda que tenham vindo da Bretanha e de regiões rurais, tradicionais e de austeridade de costumes, o brasileiro na Europa sente-se confrontado com expectativas relacionadas com samba, carnaval, futebol, capoeira, batucada, bossa nova, choro, feijoada, churrasco, caipirinha e candomblé, ainda que nunca tenha dançado ou participado em escola de samba na sua vida, nunca tenha tomado parte ou nem conheça festejos carnavalescos na sua região, não goste de futebol, não possua destreza esportiva, não tenha sido socializado em esferas culturais marcadas por deteminadas correntes, tradições e práticas sonoras, tenha outro regime alimentar ou de consumo alcoólico, e seja evangélico ou livre-pensador.

Compelido pela necessidade do auxílio de conterrâneos já estabelecidos, pela facilidade da língua, pelas afinidades de origem e similaridades de situação, o imigrante passa a tomar parte, no Estrangeiro, de expressões culturais e modos de vida que não lhe eram familiares no país natal. Não deseja ser desleal para com os seus compatriotas e passa a usar de outro tipo de linguagem, a cultivar outros hábitos, a frequentar festas das quais nunca havia participado e a ouvir outra música do que aquela que apreciava no meio social e cultural de origem.

Perda da historicidade e formação de estereotipos

Essa nivelação de diferenças significa apenas aparentemente uma vitória da identidade nacional e de uma cultura definida segundo critérios nacionais. Ela traz ou pode trazer em si problemas, pois sedimenta imagens e transforma em características a-temporais o que, na realidade, seriam expressões de natureza histórica.

Artificialidade e consequências político-culturais

Um dos aspectos negativos dessa socialização em comunidade definida nacionalmente no Exterior reside nas consequências performativas dessa artificialidade de suas expressões.

Quanto aos imigrantes no Brasil, tem-se criticado, por exemplo, a folclorização artificial, a encenação questionável em regiões de colonização alemã de certos Estados brasileiros, onde surgiu uma arquitetura inadequada às condições climáticas e ao desenvolvimento histórico-cultural do país, avessa às tendências contemporâneas do pensamento arquitetônico e urbanístico. O grotesco de tal fenômeno é percebido sobretudo pelos próprios alemães, suíços e austríacos que visitam pela primeira vez o Brasil e encontram, no hemisfério sul, um arremêdo por vezes caricatural de sua cultura.

Similar risco correm ou podem correr as comunidades brasileiras no Exterior, desenvolvendo expressões culturais supostamente típicas, e que, possivelmente, podem causar estranheza a um visitante recém-chegado do Brasil. Esse fenômeno sugere um tradicionalismo sem ser tradicional, um conservativismo sem ser conservador e contribui à criação de uma atmosfera de ufanismo questionável, quase que compensador ao fato de se ter saído da terra natal.

Assim como foi criticada, no passado, a existência de tendências extremamente nacionalistas em colonias de imigrantes europeus no Brasil, de posições passadistas e com repercussões políticas questionáveis, compreender-se-ia se surgissem, no futuro, críticas a um chauvinismo em colonias latinoamericanas no Exterior.

Ordenação simbólica de potencialidade ideológica e repercussão nos países de origem

Há, sobretudo, o risco de uma repercussão dessa situação de comunidades de imigração na cultura do próprio país de origem. Sabe-se, do passado, que colonias de imigrantes e seus descendentes no Brasil se transformaram em significativos suportes de correntes culturais e políticas de seus países de procedência familiar, algumas vezes daquelas de orientação autoritária, ultranacionalista, ultraconservadora ou retrogramente passadista, nas suas diferentes expressões. O mesmo poderia ocorrer, reciprocamente, com as colonias cada vez maiores de latino-americanos no Exterior: o da produção de uma ordenação simbólica com potencialidade ideológica capaz de retroagir nos seus países.

Questões educativas de novas gerações

Há também o problema da socialização das gerações já nascidas no país de imigração, performada culturalmente nessa ordenação artificial da cultura, porém formada na sua visão histórica pelo ensino escolar das respectivas nações. A consciência histórica dessas gerações não pode ser, pelas próprias circunstâncias, e apesar de todos os esforços, determinada fundamentalmente pela historiografia nacional dos países de seus ascendentes.

Os jovens nascidos em ambiente de migrantes encontram-se cada vez menos em condições de considerar fatos, vultos e ocorrências no contexto de desenvolvimentos históricos adequados e em situações globais. As expressões culturais em que participam, porém, não são independentes de processos histórico-culturais em que os países de seus pais e antepassados se inserem.

Os assim formados encontram-se em situações muitas vezes de ambivalentes perspectivas históricas. As expressões e encenações culturais e simbólicas das quais participam surgem como representações a-históricas, ícones de uma identidade por assim dizer imutável, típica.

Necessidade de consciência histórica

Uma consciência histórica é, porém, necessária para uma condução de vida refletida sobre a própria situação, para a percepção consciente dos mecanismos de identidade e de diferenciação cultural que condicionam a vida na imigração, para o domínio de sensações de labilidade e para o controle racional de impulsos reativos e compensatórios no processo integrativo ou de retorno. Ela apenas pode ser ganha a partir da própria história em que se insere, na sua complexidade e transformabilidade, ou seja, na história da imigrados no passado, dos migrantes passageiros, dos visitantes e estagiários, dos retornados, dos assimilados. Para isso, porém, torna-se necessário desenvolver os estudos historiográficos pertinentes, reconstruir passados, detectar linhas de continuidade e interrupções, mudanças e constâncias, recuperar vultos históricos e reconsiderar a história de instituições, de eventos, da produção artística e intelectual.

Dificuldades dos estudos historiográficos específicos

O desenvolvimento desses estudos não é fácil, uma vez que as fontes são heterogêneas e se encontram dispersas, em vários países e em acervos familiares. Os dados não são apenas aqueles que podem ser levantados em consulados e embaixadas; precisam ser procurados em publicações de diversas origens, em geral não conservadas em bibliotecas e arquivos. Ainda que difícil, o seu desenvolvimento pode revelar personalidades do passado que atuaram entre culturas, foram pontes e mediadores, mas que ficaram entre mundos, pouco consideradas a partir de historiografias de cunho nacional e nacionalista dos diferentes lados. A reconsideração dessas personalidades não surge apenas como uma exigência ética de justiça histórica, mas sim como necessária ao desenvolvimento de uma história intercultural em contextos internacionais.

Produtos do desconhecimento: criar o já criado, fundar o já fundado

Uma especial atenção merece ser dada às instituições científico-culturais, às publicações, às obras de arte criadas e às correntes de pensamento do passado intercultural. A falta de conhecimento ou a desconsideração do escopo e do trabalho dessas instituições, da história das idéias e dos empreendimentos científicos e culturais do passado intercultural leva não apenas a uma falta de profundidade histórica nas iniciativas da atualidade. Ela impede um desenvolvimento coerente e/ou crítico, de continuidade ou não, e leva a um eterno recomeçar, ao repensar o já pensado, ao fundar o já fundado, oa criar o já criado, ao girar sem sentido, ao se não sair do lugar.

Problemas de qualificação adequada, vaidade e síndrome de pioneirismo

Com o conhecimento do já empreendido, muitas situações ridículas do presente poderiam ser evitadas, sobretudo expressões de vaidade pessoal e síndromes de pioneirismo: jornalistas que, atuando como correspondentes ou como colaboradores de emissoras se sentem porta-vozes de comunidades e que, no entusiasmo, formam grupos que exprimem a consciência de serem 'vozes do Brasil'; professores de instrumentos, regentes e instrumentistas que se consideram como representantes da cultura pátria, embora muitos nunca tivessem tido interesse por obras de autores de seu país anteriormente, compositores que desejam divulgar as suas obras e se apresentam como embaixadores culturais, funcionários de órgãos de relações exteriores de diversos países e de fundações que passaram algum tempo no Brasil e se sentem qualificados para presidir organizações bilaterais que também tratam de questões teórico-culturais, e muitos outros casos que se repetem continuamente no decorrer das décadas.

Constata-se, frequentemente, que muitos que se pronunciam sobre questões teórico-culturais de forma peremptória não possuem a necessária formação especializada, não estudaram disciplinas da área das Ciências Humanas, em particular da Etnologia ou Antropologia Cultural, do Folclore, da Sociologia e outras. Somente por serem originários de um determinado país ou por cultivarem algumas de suas expressões tradicionais, esportistas, artísticas, lúdicas ou religiosas, ou por nele terem vivido algum tempo sentem-se habilitados a tratar de temas que há muito foram diferenciadamente discutidos e continuam a ser aprofundados em meios devidamente habilitados. Tal situação não contribui à diversidade, necessária e merecedora de fomento, mas à permanência de lugares comuns, de concepções já discutidas e em parte superadas, impondo entraves ao desenvolvimento das reflexões e da própria ciência.

Estudos de cunho sistemático em processos históricos

O desenvolvimento de uma historiografia intercultural em situações de imigração não está a serviço apenas do enriquecimento de conhecimentos, da ilustração e do saciamento da curiosidade. Ele vem de encontro a necessidades humanas e sociais, e corresponde a uma exigência da Humanidade imersa em processos globalizantes.

A perspectiva histórica, porém, representa apenas um dos aspectos do complexo de questões a ser considerado. Há também a necessidade de estudos de cunho sistemático, o da análise de mecanismos e  estruturas vinculadas à processualidade que se desenvolve no tempo. Com o exame contextualizado de acontecimentos do passado pode-se tentar reconhecer ocorrências de certa constância que permitam elucidar fatos e desenvolvimentos do presente ou pelo menos chamar a atenção a possibilidades de sua análise. Haveria, além do mais, a necessidade de exames de normas intrínsecas às decorrências processuais, contribuindo para a reflexão ética na atualidade daqueles envolvidos em situações migratórias.

Área especializada de estudos

Por todos esses motivos e essas tarefas, a pesquisa teórico-cultural em contextos internacionais constitui uma área de estudos interdisciplinares de questionamentos próprios e preocupações metodológicas específicas, empenhada na inserção em corrente histórica pertinente do pensamento, e que não pode ser identificada com instâncias de difusão ou propaganda cultural.

O seu escopo não pode ser alcançado por entidades e órgãos cujas ações fazem parte eles próprios dos objetivos da pesquisa, ou seja o de consulados, embaixadas, ministérios, centros culturais, emissoras, órgãos da imprensa e outras instituições relacionadas com a difusão cultural, a representação e o intercâmbio. Também não pode ser dependente de grupos e conselhos de cidadãos instituídos por organismos oficiais.

Respeito pela história da pesquisa e das reflexões

Os estudos interculturais com o escopo e no sentido aqui delineado não são de hoje, já muito foi realizado, e a história desses esforços e os resultados dos trabalhos devem ser consideradas para o próprio progresso dos conhecimentos e das reflexões teóricas. Não pode ser considerado como admissível, do ponto de vista ético, que indivíduos, grupos ou instituições, ainda que oficiais, procurem encampar ou sufocar iniciativas, projetos, linhas de pesquisa, questionamentos, enfoques teóricos e metodológicos que foram resultados de um longo desenvolvimento, de contribuição e de esforços de muitas personalidades que em parte já não vivem.

Estudo de caso: Brasileiros em Paris. Questões histórico-metodológicas

Os textos escolhidos para a presente edição demonstram alguns dos problemas que se levantam e das possibilidades que se abrem a partir de considerações contextualizadas de momentos determinados do passado da presença brasileira em Paris. Optou-se pela focalização de determinadas personalidades para tornar a temática de mais fácil apreensão e as reflexões menos abstratas.

Também exclusivamente por motivos pragmáticos optou-se pela distinção de fases históricas em função da história política da França. As dificuldades de periodização da história intercultural, que teem sido discutidas em outras ocasiões, não são aqui retomadas. A escolha de determinados momentos da história política francesa apresenta a vantagem de dirigir a atenção a uma certa constância na história da presença brasileira em Paris.

Constata-se que vários brasileiros que vieram realizar estudos e fazer carreira na França vieram com imagens e expectativas marcadas por situações políticas e político-culturais anteriores, já não mais correspondentes àqueles dominantes quando da sua vinda. Essa ocorrência é imediatamente compreensível: até que conseguissem meios para realizar os seus intentos de uma vinda à Europa, os anos já se tinham passado e o desenvolvimento histórico já tinha levado a transformações políticas e político-culturais.

Talvez seja essa uma das razões do fato de que várias personalidades brasileiras envolvidas terem-se identificado com meios sociais e culturais de oposição a sistemas instituidos, integrando-se em correntes vinculadas ao passado, fundamentando um certo conservativismo que nem sempre precisou ser conservador. Reconhece-se assim uma espécie de defasagem, uma certa tendência à criação de elos não com a vanguarda dos acorrências, mas sim com esferas remanescentes de situações anteriores, ainda que atuantes e preparadoras em parte de mudanças futuras.

Dessa forma, a consideração de uma personalidade no contexto de uma determinada época política não significa que deva ser visto como representante dessa época; um literato ou artista que atuou em Paris à época de Louis Philippe pode, assim, ser antes visto como um homem da anterior Restauração.

Tentativas de análise: tendências e constâncias

O conservativismo que se constata na vida, nas aspirações e nas obras de vários dos brasileiros que estudaram e atuaram na França parece revelar-se como conservador no sentido próprio do termo sobretudo com relação àquelas personalidades provenientes de meios sociais privilegiados, independentes economicamente e que financiaram a sua vida na Europa a partir de meios próprios ou familiares. Concepções religiosas e vínculos com meios eclesiásticos desempenharam aqui significativo papel.

Houve, porém, considerável número de jovens que realizaram os seus estudos graças a bolsas de estudos e auxílios, sobretudo governamentais. Vários desses jovens, como aqueles da época do Império, pertenciam a camadas modestas da população brasileira, a meios sociais e étnicos menos privilegiados ou provinham de regiões interioranas.

O cunho oficial desses apoios dirigiu-os a instituições oficiais e de renome estabelecido, a professores prestigiados e de maior idade, não aos mais jovens e propugnadores de novas tendências.

Também aqui constata-se uma certa tendência a um academicismo de cunho conservador, ou pelo menos convencional, ainda que mais limitado à forma de expressão e à inserção em correntes estéticas e interpretativas, nem sempre correspondente a convicções conservadoras sob o aspecto político. Pelo contrário, parece haver uma certa constante no fato de estudantes, longe do contrôle familiar e da sociedade de origem, aproximarem-se de novas esferas de vida, adotando não apenas novos modos de vida ou concretizando tendências próprias não vividas na sua terra, mas sim também assumindo modos de expressão da vida cultural popular que passaram a refletir nas suas atividades e produções no Exterior e no Brasil.

O estudo da historiografia intercultural em contextos franco-brasileiros oferece aqui, devido às características da vida parisiense, contribuições significativas não apenas à história do teatro e da música popular brasileira, mas sim a considerações culturais sob a perspectiva dos Gender Studies.

Uma atenção especial mereceram contextos que relacionam o Brasil com cultura hispânica e hispano-americana através da França. Escolheram-se, nesse sentido, alguns estudos que foram revistos e atualizados no âmbito do ciclo de estudos dedicados a relações entre o Pacífico e o Atlântico. A atenção foi dirigida sobretudo às relações entre a França e o México, particularmente singulares no século XIX com a tentativa de estabelecimento da forma de govêrno monárquica no México, similarmente àquela representada pelo Brasil do passado.

Consciência histórica de migrantes sob a perspectiva da unificação européia

Não se trata, nesses estudos, de fomento de uma consciência histórica fundamentada apenas no vir-a-ser de uma comunidade local, do círculo de residentes provenientes de um determinado país e de seus descendentes numa determinada capital européia. A mobilidade daqueles latinoamericanos que procuraram a Europa para estudos e atuações no decorrer da história, obtendo experiências de vida em diferentes países, testemunha a necessidade de perspectivas não delimitidas a determinadas cidades, regiões ou nação.

Se estudos de migração dizem respeito sobretudo a questões de identidade, a serem tratadas de forma sensível e diferenciada com relação aos vários elos nacionais, regionais e comunitários em jôgo, não podem ser êles próprios conduzidos segundo critérios e categorias nacionalistas, regionalistas e de orgulho local e comunitário. Se tais estudos não deveriam fornecer subsídios a nacionalismos exacerbados e de cunho chauvinista relativamente ao país natal ou dos antepassados, também não deveriam fomentar novos e estranhos nacionalismos daqueles que desejam tornar-se mais franceses do que os franceses, mais alemães do que os alemães, mais parisienses do que os parisienses, mais papais do que o Papa.

A consciência histórica comunitária de "colonias" em centros urbanos ou de grupos de imigrados num mesmo país, unidos por similares circunstâncias de vida e de língua deveria ter como referência não tanto a história nacional dos respectivos países, mas sim e sobretudo configurações inter- e supranacionais, em dimensões globalmente européias. Sobretudo em época marcada por ingentes esforços de aproximação de nações e de união européia, os residentes e atuantes latinoamericanos não deveriam tornar-se agentes de defasados nacionalismos, provincialismos e bairrismos culturais.

Estudos bilaterais e estudos europeus. A proposta da Academia Brasil-Europa

Aqui reside o escopo da Academia Brasil-Europa: o de atualizar os estudos bilaterais (França-Brasil, Alemanha-Brasil, Itália-Brasil, etc.) através da consideração do contexto mais amplo dos estudos culturais europeus, o de considerar as novas questões que se levantam com a aproximação e a união dos vários países da Europa, o de investigar fundamentos e correntes históricas que oferecem profundidade histórica a tais considerações e o de desenvolver instrumentos teóricos adequados para tais exames, sempre porém tendo em vista o presente e o futuro.

Grande parte das questões e das personalidades aqui tratadas foram consideradas de forma especial em encontros e em correspondência com Luís Heitor Correa de Azevedo, desde 1979. Por esse motivo, a presente edição é dedicada à sua memória.

Antonio Alexandre Bispo




  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais - Academia Brasil-Europa (A.B.E.) - e do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (Institut für Studien der Musikkultur des portugiesischen Sprachraumes, I.S.M.P.S. e.V.), visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens: http://www.brasil-europa.eu


  2. A A.B.E. é entidade exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias. É, na sua orientação teórico-cultural, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. A Organização de Estudos de Processos Culturais remonta a entidade fundada e registrada em 1968 (Nova Difusão). A A.B.E. insere-se em tradição derivada de academia fundada em Salzburg pelos seus mentores, em 1919, sobre a qual procura sempre refletir.