Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 121/19 (2009:5)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2009 by ISMPS e.V. Edição reconfigurada © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2009 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2496


 


Colaborações

A educação humanística de José de Anchieta


Prof. Dr. Leonardo F. Kaltner (UFF)


Este texto remonta a uma apresentação no XIII Congresso Nacional de Linguística e Filologia, realizado em 2009 na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, organizado pelo Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Línguísticos (CIFEFIL – Uerj), sendo um dos resultados de minha pesquisa de Doutorado, baseada nos cursos ministrados pelo Professor Doutor Carlos Antônio Kalil Tannus e na orientação de minha Tese de doutoramento pelo Professor Doutor Edison Lourenço Molinari, no Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro.


Desenvolveremos o tema do Humanismo renascentista português, a relação da Societas Iesu, a Companhia de Jesus, com o ensino de Humanidades clássicas e a formação humanística de José de Anchieta, que foi aluno do Real Colégio das Artes de Coimbra no ano de 1548, ano em que se fundou esta instituição, anexa à Universidade de Coimbra. O Real Colégio das Artes de Coimbra era responsável pela preparação para a Universidade de Coimbra no século XVI, o século da Renascença.


O Humanismo renascentista foi um movimento intelectual e espiritual, surgido na Itália, que se disseminou por toda Europa, gerando um grande interesse pelo estudo das Humaniores Litterae, as Letras Clássicas, o que marcou um renascimento do pensamento greco-latino nos séculos XV e XVI e influenciou profundamente todas as Universidades e nações europeias, sobretudo através da política internacional da era das Grandes Navegações e dos Descobrimentos, o mesmo século em que se colonizou o Brasil.


O latim no século XVI possuía um papel fundamental como língua de cultura por toda Europa, logo escrever, falar, pensar em latim na época da Renascença era tornar-se universal. Descrever a história de uma navegação, ou de uma conquista militar recente, discursar, narrar em latim solenidades, como a chegada de uma princesa a uma cidade, significava, no século XVI, inscrever uma memória cotidiana e atual na tradição imortal fundadora do ocidente: a tradição da Roma clássica.


Inúmeros autores, nos séculos XV e XVI, utilizaram-se do latim clássico como instrumento para escrever obras dos mais diversos assuntos, desde discursos solenes, até as correspondências inter nationes, sobretudo foram escritas várias obras literárias, acerca de núpcias, funerais, conquistas  territoriais de reis e nobres.


O latim e o grego eram aprendidos tanto pelo estudo de gramática, quanto por uma total imersão na leitura dos autores clássicos. Da leitura de Vergílio, Cícero e Ovídio, por exemplo, não só o léxico, mas também a sintaxe eram apreendidos a ponto dos humanistas, os estudiosos das Humanidades clássicas, poderem expressar seu pensamento em latim, compondo obras com temáticas do século XV e XVI na língua do Lácio.


A Portugal, o humanismo renascentista chega no ano de 1485, através do humanista italiano Cataldo Parísio Sículo, Doutor em Direito Pontífico pela Universidade de Ferrara. Cataldo fora contratado como preceptor de D. Jorge de Lancastre, filho bastardo de D. João II, rei de Portugal, e em seguida, como orator, secretário de assuntos latinos da corte portuguesa. A partir de então, o humanista italiano desenvolveu diversas atividades na corte lusitana, tendo escrito correspondências diplomáticas, proferido discursos em solenidades como a Oratio habita a Cataldo in aduentu Helisabet principis Portugaliae, ante ianuam urbis Eburae (Discurso proferido por Cataldo na chegada de Isabel, princesa de Portugal, ante os pórticos da cidade de Évora).


Entretanto, somente em 1537, no reinado de D. João III, a Universidade de Coimbra, após uma reforma, pôde oferecer o ensino humanístico em larga escala ao Estado português. Logo o uso de latim se generalizou no meio acadêmico, ao mesmo tempo em que a colonização do Brasil passava a se tornar uma das prioridades da corte lusitana.


José de Anchieta nasceu em Tenerife, ilha do arquipélago das Canárias, no ano de 1534. Aos catorze anos de idade, em 1548, mudou-se para Coimbra, com seu irmão mais velho, Pedro Nuñez, que iria estudar na Universidade de Coimbra. Anchieta ainda adolescente chegou à cidade de Coimbra em 1548, o mesmo ano em que D. João III ordenou a fundação de um Colégio preparatório para o ingresso na Universidade, o Real Colégio das Artes de Coimbra, no qual José de Anchieta, recém-chegado a Portugal, imediatamente se matriculou.


O Real Colégio das Artes de Coimbra contava com renomados humanistas em seu corpo docente. Humanistas como Elias Vinet, Nicolau Grouchy, Guilherme de Guérente, Antônio Mendes de Carvalho, João da Costa, Jorge Buchanan, dentre outros, vieram imediatamente da França a fim de integrar o corpo docente do Real Colégio das Artes em 1548. Esta escola de Altos Estudos em Coimbra contava também com outros humanistas já residentes em Portugal como Marcial de Gouveia.


Desta forma, organizou-se o intenso regime de aulas em 1548, adolescentes como José de Anchieta, então com catorze anos de idade, formavam um corpo discente de cerca de mil e duzentos alunos, que iniciavam suas atividades às quatro horas da manhã, terminando o expediente diário às oito horas da noite. O latim era a tal ponto estimado, que era língua obrigatória em todas as disciplinas, sendo incentivado até nas brincadeiras e no intervalo das aulas. Para atingir o domínio do latim clássico, o constante contato com as obras de Cícero e Vergílio era extremamente necessário.


Os humanistas, aqueles que estudavam as Humanidades clássicas na época da Renascença, não eram apenas professores ou alunos de grego ou de latim. Antes de tudo, a cultura clássica serviu ao ocidente para auxiliar a organização dos estados modernos no século XVI, sobretudo, na organização de uma política internacional. Logo os humanistas teriam variadas funções nas cortes da Renascença, desde a administração interna até a diplomacia, ao mesmo tempo que eram os responsáveis pela organização da educação. Estariam os humanistas, por fim, relacionados ao movimento das Navegações e dos Descobrimentos do século XVI, quando participavam de forma ideológica, descrevendo em um senso épico estas aventuras. Neste espírito, temos a obra de Diogo de Teive, o Commentarius, sobre o cerco de Diu, feito notável da política portuguesa.


José de Anchieta, que foi um dos mais notáveis alunos de Diogo de Teive, aos dezenove anos de idade, no ano de 1553, já aceito como irmão na Companhia de Jesus, foi enviado ao Brasil, tendo vindo como colonizador, para auxiliar os esforços dos jesuítas na conversão dos indígenas, e possibilitar o estabelecimento do Brasil. 


As obras escritas por José de Anchieta em latim são o maior patrimônio do Humanismo renascentista no Brasil, assim, o corpus novilatino anchietano, composto por notáveis textos poéticos e cartas em prosa, possui dois longos poemas de inestimável valor, que estão entre os primeiros textos literários do Brasil: o De Gestis Mendi de Saa, poema épico sobre os feitos de Mem de Sá, e o De Beata Virgine Dei Matre Maria, poema elegíaco sobre a Santa Virgem Maria, Mãe de Deus. Ambos os textos, escritos em um latim clássico extremamente apurado, mostram-nos a erudição humanística do autor.


Vejamos, como exemplo, um trecho do De Gestis Mendi de Saa, extraído do segundo livro desta epopeia, trecho em que é narrada a “primavera das almas”, momento em que o poeta abre um parêntesis na narrativa dos combates de Mem de Sá em Ilhéus, antes de descrever a conversão dos indígenas, do verso 1296h em diante:


  1. Producunt pulchros iam nunc Brasillica flores

  2. Arua, nec arenti mandantur semina arenae

  3. Sed fructus fecunda suos dat terra, labore

  4. Culta iugi, quam latifluis rigat imbribus unda,

  5. Diuinoque fouet caelestis Flamma calore.

  6. Aspera cessit hiems, gelidae cessere pruinae

  7. Solis ad ardorem, stricto nec dura  rigescunt

  8. Corda gelu; foedis purgantur sordida culpis

  9. Pectora, et ardescunt animi; quaeque ante fuerunt

  10. Frigida, iam feruent diuino uiscera amore.


  11. (Já agora os campos do Brasil produzem belas flores,

  12. E as sementes não são lançadas à árida areia,

  13. Mas a terra dá fecunda os seus frutos, cultivada

  14. Pelo trabalho do jugo, ela que a água irriga por extensa chuvas,

  15. Ela que a Chama celeste favorece com seu calor divino.

  16. O áspero inverno cessa, interromperam-se as gélidas geadas

  17. Junto ao ardor do sol, e não se enrijecem os duros corações

  18. No duro gelo; os sórdidos corações purgam-se das suas culpas

  19. Fétidas, também ardem os espíritos, cada coração que antes

  20. Estivera frígido, já ferve no divino amor).


Desta forma poética, Anchieta descreve a conversão de indígenas, comparando esta transformação à mudança do inverno à primavera. Traduzimos apenas os dez primeiros versos desta bela alegoria que se estende por quase noventa versos no segundo livro do De Gestis Mendi de Saa, o poema sobre os feitos de Mem de Sá, terceiro Governador-Geral do Brasil colonial.


José de Anchieta também atuou como professor de latim no Brasil do século XVI. Para entendermos porque o ensino de Humanidades Clássicas, sobretudo, o ensino de latim, foi adotado pela Companhia de Jesus em seus colégios devemos, antes de tudo, recordar que os sete fundadores iniciais da Societas Iesu eram oriundos da Universidade de Sorbonne e do Colégio Santa Bárbara da Paris renascentista, e que a ordem contra-reformista fundada por Santo Inácio de Loyola em 1534 e aprovada pelo Papa Paulo III em 1537 estava intimamente vinculada à educação humanística adotada pelas universidades da Renascença.


A organização da educação jesuítica apresentada na Ratio atque institutio studiorum de 1599, fruto de longa experiência adquirida em Portugal e na Espanha, mostra-nos uma divisão dos estudos em studia inferiora, educação básica, formada sobretudo pelo estudo de Humanidades, isto é, gramática grega e latina, poesia clássica e retórica, com especial atenção às obras de Cícero e Quintiliano, enquanto os studia superiora, a educação superior consistia no estudo de Filosofia, sobretudo a ética e a lógica aristotélicas. Em seguida, os alunos estariam aptos a estudar a teologia, os Exercitia spiritualia de Santo Inácio e as Sagradas Escrituras. Basicamente, esta foi a educação do Pe. Antônio Vieira, que já no século XVII estudou e lecionou no Colégio dos jesuítas da Bahia, deixando-nos excelente obra em português e latim.


A época da Renascença também foi fértil para a composição de material didático para o estudo de línguas clássicas. A partir do século XV, após a criação da imprensa e do livro impresso, praticamente todas as universidades europeias possuíam uma tipografia. Logo os autores clássicos começaram a ser editados e a ter ampla circulação, enquanto surgia uma incessante busca por manuscritos medievais e pelo aprimoramento da interpretação da cultura clássica. Os humanistas também editavam suas obras, e em 1563 surgiu o Dictionarium latino-lusitanico et uiceuersa, o Dicionário latino-português e vice-versa de Jerônimo Cardoso, primeiro dicionário de latim editado em Portugal.


No mesmo ano de 1563, na tipografia régia de Coimbra, também foi editado o primeiro livro brasileiro. O poema épico De Gestis Mendi de Saa de José de Anchieta, escrito em latim, sobre os feitos de Mem de Sá, foi o primeiro livro brasileiro a ser editado em formato de livro, ao ser tipografado por João Álvares, em Coimbra. Lê-se na capa de um original, conservado na Biblioteca do Arquivo Distrital de Évora, uma dedicatória de Anchieta destinada a Mem de Sá: Excellentissimo, singularisque fidei ac pietatis uiro Mendo de Saa, australis seu Brasillicae Indiae Praesidi praestantissimo (Ao excelentíssimo herói Mem de Sá, de singular fé e piedade, Govenador-Geral da Índia austral ou brasílica, estimadíssimo).


O uso do latim nos colégios jesuíticos do Brasil quinhentista é patente, e assim, será até o ano de 1759, em que os jesuítas são expulsos do Brasil por ordens do Marquês do Pombal. Na Ratio Studiorum de 1599, plano pedagógico de todos os colégios da Companhia de Jesus no Brasil colonial, encontramos a regra geral sobre o uso do latim:


Linguae Latinae usus: 8. Domi linguae Latinae usum inter scholasticos diligenter conseruandum curet. Ab hac autem latine loquendi lege non eximantur, nisi uacationum dies et recreationis horae, nisi forte in aliquibus regionibus prouinciali uideretur his etiam temporibus facile posse hunc latine loquendi usum retineri.


(O uso da língua latina: 8 que se busque conservar o uso da língua latina na instituição entre os escolásticos diligentemente. De outra parte, que não se eximam desta lei de falar em latim, salvo durante os dias de férias e as horas de recreação, ou mesmo, por ventura, em regiões distantes, caso pareça ao dirigente daquela província, neste mesmo momento, não poder facilmente ser mantido este costume de falar em latim).


Desta forma era prestigiado na Renascença o estudo da língua do Lácio, o que influiu profundamente nos colégios jesuíticos do Brasil quinhentista, representados sobretudo pelo do Rio de Janeiro e o da Bahia, que formaram durante cerca de duzentos anos gerações de humanistas, como o Pe. Antônio Vieira, no século XVII, humanistas  estes que participaram ativamente da colonização do Brasil. Assim a cultura clássica se inseriu na formação da sociedade brasileira.


BIBLIOGRAFIA


ACTAS DO CONGRESSO INTERNACIONAL ANCHIETA EM COIMBRA - COLÉGIO DAS ARTES DA UNIVERSIDADE (1548-1998). Porto: Fundação Engenheiro António de Almeida, 2000, 3 v.


ANCHIETA, José de . De Gestis Mendi de Saa. Crítica textual e tradução: Pe. Armando Cardoso, S.I. São Paulo: Loyola, 1970.