Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 119/11 (2009:3)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2009 by ISMPS e.V. Edição reconfigurada © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2452


 


Austrália-Brasil


Evolucionismo e Religião

Reflexões na Austrália sobre uma Pré-História de fundamentação bíblica no Brasil:
Raymundo Ulysses de Pennafort
Reflexões nas catedrais de Sydney e Melbourne







Catedral de Melbourne. Foto A.A.Bispo 2009. Copyright
Este texto apresenta uma súmula de reflexões encetadas no decorrer de ciclo de estudos, contatos e observações realizados na Austrália e Nova Zelândia no âmbito do programa Atlântico/Pacífico da ABE/ISMPS pelo Ano Darwin 2009. O evento foi preparado no contexto dos cursos "Música no Encontro de Culturas" (1998-2002) e "Música na Oceania" (2008) levados a efeito na Universidade de Colonia sob a direção de A.A.Bispo.


O programa de trabalhos - o primeiro do gênero - concretizou impulsos partidos do Congresso Internacional "Música e Visões" pelos 500 anos do Brasil e triênio subsequente (1999-2004), do II° Congresso Brasileiro de Musicologia (RJ 1992), do Encontro Regional para a América Latina e Caribe ICM/UNESCO (SP 1987) e do projeto "Culturas Musicais Indígenas" patrocinado pelo Ministério das Relações Exteriores da Alemanha (1992-).


Os trabalhos procuraram dar continuidade aos impulsos decorrentes do simpósio de renovação dos estudos interamericanos e transatlânticos (Leichlingen/Colonia 1983). A orientação teórica é marcada pela tradição de pensamento e de iniciativas remontante à sociedade de renovação de estudos e prática cultura fundada em S. Paulo, em 1968 (Nova Difusão), atual Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais.

Instituições envolvidas e visitadas: Academia Brasil-Europa, Institut für Studien der Musikkultur des Portugiesischen Sprachraumes e.V./IBEM, National Maritime Museum (Sydney), Tasmanian Museum (Hobart), State Library of New South Wales (Sydney), Western Australian Museum (Albany), Pacific Cultures Gallery (Adelaide), Royal Exhibition Building (Melbourne) e Viktoria Library (Melbourne)






Catedral de Melbourne. Foto A.A.Bispo 2009. Copyright
Catedral de Sydney. Foto A.A.Bispo 2009. Copyright
As tensões entre a Ciência e a Religião marcaram profundamente a história do pensamento do século XIX.


Sobretudo a Teoria da Evolução levou a polêmicas e posicionamentos favoráveis ou contrários, a uma quase que luta científico-cultural de dimensões internacionais. A razão desse generalizado conflito residiu no fato de, ao considerar-se as Origens das Espécies e a Seleção Natural ter-se entrado na esfera de concepções relativas à Criação, fundamentais à tradição teológica e baseadas no primeiro livro das Escrituras, a Gênese.


Essa tensão não deixou de influenciar a ação eclesiástica, levando a admoestações doutrinárias e a medidas práticas para a restauração e propagação das concepções religiosas.


Também o Brasil participou desse conflito e a sua história da segunda metade do século XIX poderia ser examinada sob o prisma da tensão entre o pensamento científico e o religioso.


Um estudo de tal natureza surge como de particular relevância devido ao recrudescimento de questões similares no âmbito do assim-chamado Creacionismo da atualidade, presente sobretudo em denominações cristãs de cunho evangelical que se difundem pelo país.


Concepções evolucionistas e Anglicanismo em colonias


Mais do que no Brasil, a problemática Ciência Natural/Religião no século XIX clama mais pela atenção do estudioso em outro país visitado por Darwin, a Austrália. Colonizada no século XIX, ou seja, em época muito posterior à do Brasil, a Austrália  surge ao observador como um país muito mais europeizado segundo critérios de uma época marcada por concepções evolutivas, de progresso e desenvolvimento técnico e científico.


O interesse pela Natureza e seu estudo evidencia-se nos muitos jardins botânicos existentes (veja artigo nesta edição). Nesse contexto geral, torna-se surpreendente a existência de igrejas e catedrais que impressionam pelas suas dimensões, qualidades construtivas e expressividade, tais como aquelas de Melbourne e Sydney.


A linguagem visual dessas obras arquitetônicas, marcadas sobretudo pelo Gótico, expressam claramente intuitos de vinculação com o passado cristão medieval, de inserção na tradição religiosa do Ocidente europeu e de perpetuação de suas concepções e formas de expressão - também na Igreja Anglicana em regiões coloniais.


No prefácio à reedição comemorativa da obra Charles Darwin in Australia (F. W. Nicholas e J. M. Nicholas, Cambridge University Press 2008), James Moore, de Cambridge, Inglaterra, salienta, já no segundo parágrafo, que o jovem pesquisador ouvia interiormente o Messias de Händel em topos de montanhas, ao contemplar a criação.


À sua época na Austrália, e portanto também à época anterior no Brasil, ainda estaria convicto de que a mão divina teria atuado no universo: „And God was still in Darwin‘s antipodean heaven. For all the enigmas posed by this oddly inverted world, the ex-ordinand confessed, „One hand has surely worked throughout the universe“. (op. cit. VII)


Geologia, Paleontologia e Gênese


Na literatura dedicada a Darwin (veja aqui artigo nesta edição), considera-se a influência que o pesquisador teria recebido na sua juventude de outros pensadores e cientistas, entre êles de Charles Lyell (1797-1875). Este, à sua partida a bordo do Beagle, ter-lhe-ia oferecido o primeiro volume de seus Princípios de Geologia (Principles of Geology, Being an Inquiry on How Far the Former Changes of the Earth‘s Surface are Referable to Causes Now in Operation).


Nesse livro, o seu autor estudava até que ponto as transformações da superfície da terra teriam sido causadas por causas que ainda atuariam no presente. A sua exposição, porém, contrariava a tradição do pensamento histórico de fundamentação bíblica, que datava o início da Criação no dia 4 de outubro de 4404 a.C., fato já questionado por outros geólogos, sobretudo por James Hutton (1726-1797).


Não se pode deixar de mencionar que tal visão histórica derivada de uma cronologia bíblica permaneceria no mundo de língua portuguesa vigente em alguns autores até meados do século XIX, por exemplo em Pe. Antonio Cordeiro, sendo nessa história inserida a da expansão portuguesa às ilhas atlânticas e o descobrimento do Brasil.


Abalada pela teoria de Lyell foram também aquelas que procuravam harmonizar os conhecimentos da época com o relato bíblico. Entre elas, sobressaíam-se a do geólogo Abraham Gottlob Werner (1749-1817) e a do anatomista Georges Cuvier (1769-1832).


Werner desenvolvera uma teoria das catástrofes, explicativa de uma contínua re-criação da terra. As massas rochosas representariam sedimentações de uma água original; a terra ter-se-ia dissolvido no oceano e, evaporando e juntando-se, teria deixado surgir restos de material anorgânico. Percebe-se, nessas concepções a vigência, em termos científicos, da tradição de pensamento fundamentada na Gênese, sobretudo no relato da Criação dos três primeiros dias. A noção de catástrofe tambem poderia encontrar apoio no relato bíblico posterior, lembrando-se aqui da destruição da terra com o Dilúvio. Haveria aqui a necessidade de um procedimento por assim dizer retroativo, aplicando-se um fato exposto no segundo relato da Gênese ao primeiro.


Cuvier, ocupando-se com a existência de fósseis, recorreu a elucidações geológicas para o fato de tais animais já não mais existirem. Supôs, então, que após cada época geológica, os seres viventes seriam atingidos por catástrofes, sendo encerrados em rochas. O Criador, apesar de todas essas destruições da sua obra, teria criado novas espécies animais, superiores às anteriores.


Tal teria sido em grandes linhas a situação da discussão que marcara as preocupações de Darwin à época de sua estadia no Brasil. A leitura da obra de Lyell teria vindo de encontro a uma tendência natural do jovem pesquisador. Não tendo demonstrado maior interesse pelo estudo da Medicina, carreira que deveria ter abraçado por tradição familiar, foi transferido pelo seu pai da Faculdade de Medicina de Edinburgo ao Christ‘s College, em Cambridge. Aqui recebeu formação teológica, ainda que sem maior interesse, graduando-se.


Teologia Natural e a obra de Malthus


Gerhard Heberer, de Göttingen, comentando em Postfácio edição alemã da Origem das Espécies (Die Entstehung der Arten durch natürliche Zuchtwahl, trad. C. W. Neumann, Stuttgart: Ph. Reclam Jun. 1981, 679 ss.) salienta que Darwin, ao graduar-se e ao dar início à sua viagem possuia uma visão do  mundo marcada pelo seus estudos e, sobretudo, pela leitura da Natural Theology (1802), de William Paley. Retornaria, porém, após cinco anos, com a convicção que levaria à sua Teoria da Evolução. Teria assim passado por uma mudança nas suas concepções.


Em 1838, ao ler a obra renomada de Thomas R. Malthus (1766-1834), An Essay on the principle of population (publicada em primeira edição já em 1798) - um texto contrário a posições de cunho socialista - chegara à teoria da sobrevivência das melhores variantes na luta pela existência.


Darwin estaria consciente das consequências que traria a sua teoria, uma vez que seriam compreendidas como conflitantes com concepções fundamentadas no relato bíblico. Por essa razão, ter-se-ia silenciado e se dedicado primeiramente a coletar materiais e classificá-los. Na Origem das Espécies, o Homem é apenas citado no fim da obra, em frase profética: „Cairá luz na origem do homem e sua história“.


O seu cuidado explicava-se pela sua situação e pelas circunstâncias da época, marcada por um renascimento religioso fomentado pelo espírito do Romantismo. Esse cuidado pode ser compreendido considerando-se a virulência da discussão travada, em 1860, entre Thomas Henry Huxley, o cientista cujo nome se prenderia também à história da Austrália (1835-1895) e o Bispo Lord Samuel Wilberforce, em sessão da British Association de Oxford. Para o grande público, essa discussão concentrava-se sobretudo na questão do Homem ser ou não derivado do macaco. (op.cit. 681-682, 685)


No seu panorama histórico sobre o desenvolvimento das opiniões sobre a origem das espécies, Darwin considera também autores e obras de natureza religiosa, relativando-as, ainda que de forma cuidadosa. Menciona o livro de R. Chamber, Vestiges of the Natural History of Creation (1844), que desencadeara um ampla discussão.


O seu autor, partindo de uma Teologia Natural, considerava adaptações e aceitava até mesmo que as espécies não fossem inalteráveis, partia porém da existência de impulsos iniciais que levavam a seu desenvolvimento. Para Darwin, essa obra deixava entrever poucos conhecimentos e uma falta de cuidado; teria porém prestado um grande serviço por ter despertado a opinião pública ao problema.


Livre-pensamento do teuto-brasileiro Fritz Müller


Através de Fritz Müller, cientista teuto-brasileiro de Santa Catarina, com o qual Darwin manteve intensa correspondência, o Brasil esteve permanentemente presente na sua obra, e o intercâmbio foi altamente produtivo para o desenvolvimento de seus trabalhos (veja artigo a respeito nesta edição). O Brasil não apenas está presente, através das muitas referências a Fritz Müller e da integração de suas pesquisas e observações na argumentação de Darwin na Origem das Espécies. O Brasil contribuiu, através dele e de seu irmão, August Müller, à defesa e à propagação da Teoria na Europa, em particular na Alemanha e na própria Inglaterra, desempenhando papel significativo na sua aceitação e popularização. Foi, a saber, do ambiente da imigração no Brasil que se originou a publicação „Für Darwin“, de Fritz Müller, e que mais claramente expressa o cunho quase que de luta cultural e de partidarismo político-científico que a teoria obteria.


Não se pode esquecer que Fritz Müller teve a sua vida marcada por convicções livre-pensadoras e pela situação de tensões culturais-religiosas que vivenciara na Alemanha e posteriormente no Brasil. Residiu nessas convicções livre-pensadoras até mesmo uma das causas de sua emigração. A polêmica entre o pensamento científico e o teológico que marcaria a segunda metade do século XIX foi preconizada sobretudo pelo pesquisador teuto-brasileiro. A sua pátria seria abalada, em décadas posteriores, por uma Luta Cultural de fundamentação confessional (Kulturkampf).


No Brasil, atuando em nação de formação católica, sentiu de forma particular os problemas decorrentes do conflito entre as suas concepções e as tendências restaurativas do Catolicismo de meados do século, concretizadas em parte com o retorno de religiosos e congregações que assumiram a orientação de instituições educacionais.


Nessa situação, o prosseguimento de suas atividades de pesquisa foi apenas possibilitado pelo apoio do meio científico do Rio de Janeiro, integrando-se como Naturalista viajante ao trabalho do Museu Nacional. Dirigido por Ladislau Neto, defensor de uma concepção evolucionista ampla, a atenção era dirigida às relações entre a Evolução e a Antropologia e à Etnologia, em particular à questão da origem do homem americano (Ver artigo nesta edição).


Reação de pensadores católicos ao Evolucionismo no Brasil. Raymundo Ulysses de Pennafort


Entre os representantes católicos que procuraram defender uma visão da pré-história brasileira de acordo com a tradição bíblica pode-se citar Raymundo Ulysses de Pennafort. Foi o fundador e diretor da Arcadia America, no Amazonas, membro da Academia Cearense, membro correspondente da Union des Associations de la Presse Ibero-Americaine, da Arcadia Romana e da Accademia Polyglotta da Itália, da Societé Asiatique des Langues Orientales Vivantes de Pariss, membro cooperante de La Union Catholica del Peru e do Istituto D. Bosco, de Turin. Era também Socius et Confrater Ordinis Praedicatorum vel SS. Rosarii de Roma.


As suas concepções, aqui sumarizadas foram consideradas em publicação do editor desta revista no contexto geral das concepções e posições da história da etnologia indígena no Brasil (A.A.Bispo, Die Musikkulturen der Indianer Brasiliens: Stand und Aufgaben der Forschung - 4. Teil: Zur Geschichte der Forschung, Jahrbuch Musices Aptatio 2000/2001, Roma e Siegburg 2002, págs. 293-295).


A sua maior preocupação dizia respeito à origem étnica dos povos indígenas da América. A questão da origem do homem americano passou aqui a ser tratada em harmonização com a história bíblica, retomando uma antiga tradição.


A obra principal de Pennafort foi o Brazil Pre-Histórico, publicado em 1900, em Fortaleza, por ocasião das comemorações do IV Centenário do Descobrimento do Brasil.


Nessa obra, tentou encontrar a chave para o problema „das nossas origens“ a partir de um enfoque linguístico. Partiu da hipótese de que a língua Tupi seria derivada do hebraico, apresentando afinidades com o antigo grego e com o sânscrito.


Essa opinião já havia manifestado nos seus Estudos de Philologia Onto-Biológica, publicados em Tuba: Revista scientifica da Arcadia Americana, 1896-1897. O autor pretendia publicá-la em livro de título Origens Ethnicas d‘America Pre-historica. Recentemente, por ocasião do Congresso Internacional pelos 500 anos do Brasil (2000) opinião similar voltou a ser discutida a partir de resultados de pesquisas apresentados por Julieta de Andrade.


Baseando-se no Velho Testamento, e na cronologia de gerações ali contida, Pennafort tentou determinar dados relativos à chegada do homem ao Brasil. Nesse esforço, apoiou-se nas contagens de missionários da Companhia de Jesus, que partiam da idéia de que tal população tinha-se iniciado ao redor do ano 1700 após o Dilúvio e 2088 a. C..


O autor via como comprovado que o primeiro estabelecido no Brasil havia sido Ophir Indico, filho de Jactão e neto de Heber, que no Velho Testamento é citado no contexto do relato sobre os descendentes de Noé. Ophir foi o décimo primeiro filho de Ioctão em sexta geração após Noé ,na linha de Sem. Foi pai ou fundador da Índia e, tornara-se Índia por excelência, chamada também de Terra de Ioctão ou Ioctônia.


O livro Job menciona as pedras preciosas de Ophir, o que Pennfort via como outro argumento para a sua tese. Os filhos de Ioctão, após terem populado o Leste da Índia, teriam passado à América. Teriam penetrado no Perú e México a partir da Ásia e teriam alcançado o Amazonas. Por essa razão seria compreensível que os indígenas da América fossem denominados de índios. O termo Ophir, Auphgir ou Ofir, que em hebraico queria dizer Fim, poderia ser entendido como Finis India, ou seja, a última região do mundo conhecido. O conceito de Ameriga ou America significaria também o Fim da Terra ou os limites últimos da India oriental. A palavra não seria derivada do nome de Americo Vespucci, mas teria raízes gregas e significaria um país muito longínquo (Tuba: Revista scientifica da Arcadia Americana, 3 de fevereiro de 1896). O Brasil teria sido assim colonizado pelos filhos de Ioctão - Ophir, Hevila e Jobab, assim como pelos descendentes.


Um importante argumento residiria para Pennafort no costume de dar às respectivas regiões o nome de seu primeiro colonizador. Ophir e seus irmãos ter-se-iam transferido de Mesa a Sephar, o Monte Oriental uma montanha que outros autores já teriam tentado identificar. Segundo Ctesias (séc. I), a Índia não se reduziria à India interior ou Hindustão, mas incluiria também a India citerior, ou seja, o Sul da Índia, e que se estenderia até a Índia Ocidental. Segundo Pennafort, seria essa a região habitada pelos índios. Vários nomes de povos indígenas (Muruá, Mepuri, Araruá, Pariana, Tamuana, Yuri, Timbira, Sapara, Xomana, Chitua, Periati, Mariarana, Perida, Passé, Caraíba, Nheengaibo, Arua, Tupinambá, Tupi e Guarani) deveriam ser considerados em contextos similares de alguns povos da Antiguidade („Seres, os Scipthas e os Indiacos Calistrios“).


Segundo o relato bíblico sobre a distribuição dos filhos de Noé, Jafé seria o pai da raça branca, árabe, céltica, mongólica e caucásica, e de Sem derivaria a raça amarela, assim como os homens de pele côr de oliva, hindús e chineses, assim como os povos kalmuka-mongólicos e os lapões. Nessa categoria deveriam também ser inseridos os índios americanos, ou seja, no ramo da grande família semito-ariana, citando aqui Pennafort o cientista natural Virey. Entre os descendentes de Jectão ou Ioctão teriam havido dois irmãos, ou seja, dois países vizinhos, que teriam sido fundados por Hevila e Ophir.


Esses conceitos referir-se-iam a duas regiões da Índia, ao Norte e ao Sul. Essa divisão corresponderia, na América do Sul às duas regiões determinadas pelos grandes rios do Amazonas e do Prata. O Japurá (Yapura) apresentaria até mesmo no seu nome uma derivação de Ophir (Yopyr). A região ao Norte - Ophir, Souffla ou Separará - seria a das antigas Amazonas, que teriam sido denominadas na língua indígena de Amicuane. A região ao Sul, Khavila, filho de Kouch, seria a da bacia do Prata, pois Khavila corresponderia a Hevila (Evilat, Evila), uma terra que, segundo o relato sobre os rios do Paraíso na Gênesis é cortado pelo rio Pison. Pison corresponderia ao Pimichin.


Assim como os geógrafos falavam de três grandes bacias fluviais, a do Amazonas, do Orinoco e do Prata, poder-se-ia dividir o subcontinente para Pennafort em três regiões, ou seja, Ophir, Kavila e Jobale. A Ioctania brasileira (Ioktania Brazilea) seria assim constituida pelo Separa (Amazonas), Hevila (Prata) e Jovita (Orinoco).


Além disso, Pennafort via uma ligação entre a Indonésia e os habitantes originais da Amazonia. A primeira região que teria sido populada pelos Jobsabitas ou Javitas seria Java. Esse grupo ter-se-ia posteriormente difundido pela América do Sul. Um testemunho disso seria a designação Javari, o „verdadeiro rio de Java“. Dos indígenas dessa região se sobressairiam os Ticuna, pois teriam mantido ainda a doutrina pitagórica. Outros indígenas seriam ainda budistas, tais como os malaios ou polinésios, outros cultivariam ritos hebraicos. Haveria também fetichistas como os „fakiris medochogram-fetiche“, o que se manifestava na tradição e nos costumes do Jurupari.


Singular nas opiniões de Pennafort é o fato de não ter derivado a origem dos indígenas de Cão, mas sim de Sem. Além do mais, dividiu os índios da América do Sul em dois grupos, ou seja os do Sul, descendentes de Kouch, e os do Norte. Essa interpretação de Pennafort surge como conflitante com concepções mais antigas da época dos Descobrimentos, nas quais índios surgem integrados na imagem dos Três Reis Magos no lugar do mago africano e, portanto, de origem camita - segundo as concepções da época. (op. cit. 295)


Principais problemas teóricos


Uma visão de conjunto das tensões entre a Teoria da Evolução e o pensamento de fundamentação religiosa do século XX permite que se constate problemas derivados de mal-entendidos e de procedimentos inaceitáveis sob diversos aspectos, dos dois lados conflitantes.


A elucidação desses problemas teóricos é necessária, uma vez que essas tensões permanecem na atualidade, com o recrudescimento do Creacionismo.


Em primeiro lugar, pode-se constatar um problema que poderia ser considerado como filosófico e teórico-científico ou metodológico básico.


A consideração crítica que Darwin faz da obra Vestiges of the Natural History of Creation (1844), como mencionado acima, sugere não estar familiarizado com a concepção de Vestígios na Teologia, tratada de forma sistemática sobretudo por S. Tomás de Aquino e presente através dos séculos na tradição tomista.


Segundo essa tradição de pensamento, no mundo observável pelos sentidos, pode-se conhecer não o Criador, mas sim apenas Pegadas ou Vestígios Daquele que, segundo a Gênesis, passou sobre as águas originais, vivificando-as.


A observação empírica da Criação, portanto, oferece apenas a possibilidade de reconhecer vestígios da passagem do Totalmente Outro. Este, porém, é trino na unidade, sendo o processo criador obra das três Pessoas da Trindade.


Na observação da Natureza poder-se-ia conhecer vestígios da passagem do Filho e do Espírito Santo. No primeiro caso, todas as constatações relativas a leis na Natureza, à razão, à parte sistemática por assim dizer (por ex. ciclos temporais) deveriam ser compreendidas no sentido vestígios da passagem do Logos. No segundo caso, a observação de movimentos e transformações, inclusive a alterabilidade, diria respeito aos vestígios da passagem do Espírito. Nesse sentido poder-se-ia compreender a noção dos dois „impulsos“ iniciais da obra citada, não aceitos por Darwin.


A concepção teológica pode ser elucidada também a partir da convicção fundamental de que não a Criação, ou seja, a obra do Criador deve ser objeto de adoração, mas sim o Criador.


Em termos filosóficos, poder-se-ia ver aqui a vigência de uma concepção do mundo direcionada à ontologia e à metafísica. A atenção dos evolucionistas ter-se-ia concentrado por assim dizer numa processualidade vigente no mundo perceptível pelos sentidos, não entrando em considerações metafísicas, o que deveria ser aceitável para o pensamento teológico se representasse apenas uma redução para fins pragmáticos do desenvolvimento das pesquisas.


O que surge como problemático foi o fato de não levarem em conta princípios de observação e interpretação fundamentados na concepção uno-trina de Vestígios, utilizando-se de critérios derivados ou transferidos de outros contextos. A extensão de opiniões de Malthus referentes à população humana aos animais e às plantas surge como um procedimento de difícil justificativa bíblica. Situações conflitantes do coletivo humano surge aqui primeiramente no relato sobre as ocorrências que teriam levado à decadência da Humanidade antidiluviana a partir da queda de Adão, ou seja em texto referente ao segundo relato da Criação do Homem, e somente uma aplicação retroativa ao primeiro relato da Obra dos Seis Dias poderia justificar tal transposição.


A extensão evolucionista da Teoria da Evolução por sua vez, no assim-chamado Darwinismo social, ampliando o âmbito mais restrito e cuidadoso de Darwin à evolução intelectual, psíquica e social do Homem, retornaria à coletividade humana, agora tautologicamente com argumentos de comprovação zoológica e botânica que havia sido realizada segundo critérios provenientes de um edifício de concepções relativas ao homem. Ver, no primeiro relato da Gênese uma evolução no sentido de um processo biológico não teria provavelmente levado a conflitos, uma vez que ali podem ser encontradas etapas ou fases („dias“) de um desenvolvimento que levara da vida aquática (quarto dia) à vida animal terrestre (quinto dia) e, por fim, ao homem (sexto dia).


A popular questão de uma derivação biológica do homem „do macaco“ não deveria representar um problema, ou pelo menos poderia ser solucionada com uma interpretação mais sutil. Até mesmo uma evolução no sentido de um aumento de  capacidade intelectual também não deveria apresentar problemas insolúveis na harmonização de concepções, uma vez que apenas no homem ter-se-ia alcançado uma situação de racionalidade e de poder criador que, em imagem e similaridade, corresponde ao mais alto dos modêlos, segundo o relato bíblico.


O problema, porém, reside na transposição de concepções relativas à sociedade ao gênero ou por assim dizer de concepções biológicas à coletividade humana, uma vez que essa, nas Escrituras, é precedida por uma queda do homem. Nesse sentido, não haveria apenas evoluções no sentido de um aumento de capacidades ou de um progresso, mas também involuções. Não tanto uma Teoria da Evolução, mas sim um Evolucionismo intelectual, psíquico e social, almejado no Brasil por ex. por Ladislau Neto, surge como de difícil compatibilidade.


Os problemas teóricos resultantes das tentativas de harmonização de conhecimentos científicos com o relato bíblico evidenciam-se como sendo sobretudo de natureza historiográfica.


Como mencionado acima, para o desenvolvimento do pensamento de Darwin, a discussão no âmbito da geologia parece ter sido de primordial significado por refutar concepções tradicionais relativas ao ano da criação do mundo e à história daí resultante, uma vez que tornara-se necessário reconhecer que a terra tinha uma história muitíssimo mais longa.


O interesse histórico, antropológico e etnológico despertado no Evolucionismo pela origem do homem americano, levou, nas tentativas de harmonização, à retomada de antigas concepções relativas à história da propagação do gênero humano de acordo com as descendências mencionadas nas Escrituras. Tais tentativas, hoje, podem parecer estranhamente singulares. Representam, porém, esforços consideráveis, na época, no sentido de reestabelecimento da coerência perdida de concepções.


O ressurgimento ou recrudescimento de posições creacionistas na atualidade parece indicar um retrocesso em nível de profundidade das reflexões com relação a seus antecedentes. Indica, porém, que as tensões do passado continuam vigentes e que essas deveriam ser tratadas de forma diferenciada através de exames teórico-científicos e de hermenêutica.


Antonio Alexandre Bispo


Fotos: esquerda: Catedral de Sydney                                 direita: Catedral de Melbourne.
Fotos A.A.Bispo 2009



  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais - Academia Brasil-Europa (A.B.E.) - e do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (Institut für Studien der Musikkultur des portugiesischen Sprachraumes, I.S.M.P.S. e.V.), visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens: http://www.brasil-europa.eu


  2. A A.B.E. é entidade exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias. É, na sua orientação teórico-cultural, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. A Organização de Estudos de Processos Culturais remonta a entidade fundada e registrada em 1968 (Nova Difusão). A A.B.E. insere-se em tradição derivada de academia fundada em Salzburg pelos seus mentores, em 1919, sobre a qual procura sempre refletir.