Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 118/5 (2009:2)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2009 by ISMPS e.V. Edição reconfigurada © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2430


 


Panamá-Brasil

Panamá-Brasil-Europa em estudos de processos e relações culturais - Aproximações


Ao diplomata Eduardo de Affonso Penna, embaixadas do Brasil da Alemanha e no Panamá, em gratidão pelos apoios






Canal do Panama. Foto A.A.Bispo 2009. Copyright
Este texto apresenta uma súmula de reflexões encetadas no decorrer de ciclo de estudos, contatos e observações realizados na Colombia, Costa Rica e Panamá no âmbito do programa Atlântico/Pacífico da ABE/ISMPS em 2008. O evento inseriu-se em complexos temáticos tratados nos cursos "Música no Encontro de Culturas" (1998-2002) e do seminário "Pesquisa Musical e Política na América Latina (2008) da Universidade de Colonia, realizados sob a direção de A.A.Bispo, responsável pelo complexo "Transplantes culturais europeus à América Latina no século XIX" do projeto Music in Life of Man do Conselho Internacional de Música/UNESCO.


O programa de trabalhos - o primeiro do gênero - concretizou impulsos partidos do Congresso Internacional "Música e Visões" pelos 500 anos do Brasil e triênio subsequente (1999-2004), do II° Congresso Brasileiro de Musicologia (RJ 1992), do Encontro Regional para a América Latina e Caribe ICM/UNESCO (SP 1987) e do projeto "Culturas Musicais Indígenas" patrocinado pelo Ministério das Relações Exteriores da Alemanha (1992-).


Os trabalhos procuraram dar continuidade aos impulsos decorrentes do simpósio de renovação dos estudos interamericanos e transatlânticos (Leichlingen/Colonia 1983). A orientação teórica é marcada pela tradição de pensamento e de iniciativas remontante à sociedade de renovação de estudos e prática cultura fundada em S. Paulo, em 1968 (Nova Difusão), atual Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais. Principais colaboradores dos projetos interamericanos: Prof. Dr. Francisco Curt Lange (Montevideo) e Prof. Dr. Samuel Claro-Valdés (Chile).

Instituições envolvidas e visitadas: Academia Brasil-Europa, Institut für Studien der Musikkultur des Portugiesischen Sprachraumes e.V./IBEM,
Museo Nacional, Consejo National de la Cultura, Catedral de San Jose/Curia Metropolitana, Teatro Nacional, Museo Teatro El Coliseo ( Costa Rica), Museo de la Inquisitión e Museo Petrus Claver (Cartagena).







Canal do Panama. Foto A.A.Bispo 2009. Copyright
A consideração de contextos em que se inserem o Panamá e o Brasil nos estudos culturais revela-se como de muito maior significado do que inicialmente se supõe.


Numa primeira aproximação, pensa-se não haver maior interesse na procura de vínculos e no exame de tais contextos. Países sem limites fronteiriços, distantes entre si, um de grandes dimensões, vinculado na sua formação histórica ao mundo atlântico, outro pequeno, cuja independência da Colombia apenas foi obtida no século XX, tudo indica a inexistência de ocorrências comuns ou desenvolvimentos paralelos mais relevantes.


Os estudos brasileiros, em consequência da situação geográfica do país e de sua formação histórico-colonial trazem a marca de perspectivas e de orientações atlânticas.


Considera-se em geral a expansão de mundo colonial do litoral atlântico ao interior, os caminhos de penetração e a tomada de posse gradativa do imenso território. Elos com os países vizinhos da América hispânica e com o universo do Pacífico são, nessa perspectiva, pouco considerados. Há, porém, caminhos em direção contrária para o exame de processos históricos entre o Pacífico e o Atlântico, entre eles aqueles que levavam dos países da costa oriental do subcontinente às regiões andinas e ao vale amazônico e, daqui, para a Europa.


O Panamá, por estar situado na região mais estreita do continente, ofereceu desde o início da história colonial condições especiais para as relações entre a esfera atlântica e a pacífica.


Problemas de imagem


Problemas de imagens parecem prejudicar uma consideração mais pormenorizada da história cultural do Panamá por outros estudiosos latinoamericanos. Tendo-se separado da Colombia, com o apoio dos Estados Unidos, e tendo vivido várias décadas de sua história recente sob a marca da presença norte-americana na zona do canal, o Panamá apresenta para alguns estudiosos um vir-a-ser histórico questionável sob muitos aspectos.


Uma falta de lealdade de um ex-departamento para com o seu país, separatismo fundamentado em interesses econômicos, um alcance pouco heróico de emancipação por venda de território pátrio à grande nação do Norte, enfim, uma supremacia de objetivos pragmáticos, de interesses financeiros e comerciais sobre ideais parecem prejudicar a imagem do país nos estudos latino-americanos.


Cumpre, porém, rever os pressupostos e as perspectivas que fundamentam tal visão. Somente um aprofundamento da história da região, a sua consideração mais diferenciada e e a procura de outros sistemas referenciais poderão superar certos obstáculos de cunho cultural que prejudicam a historiografia e os estudos culturais em geral. Esse intuito parece vir de encontro às aspirações panamenhas, uma vez que o próprio país não deixou de comemorar, em 2001, a sua descoberta por Rodrigo de Bastidas, em 1501, ou seja, apenas um ano após a do Brasil.


Estudos mais aprofundados do Panamá exigem, assim, considerar a região na sua longa história de contatos com a Europa, a assim-chamada „fase departamental“ do seu vir-a-ser, anterior à sua própria existência de nação emancipada politicamente


Isthmi Americani celeberrimum emporium, Aureum castellum Hispanis dictum


A costa atlântica do atual Panamá foi atingida poucos anos após o Descobrimento do Brasil. Supõe-se que por ali passou também Colombo, na sua quarta viagem. Em 1510, M. Fernandez de Enciso e D. de Nicuessa fundaram uma primeira povoação. A região assumiu de início significado econômico devido à pesca de pérolas, atraindo colonizadores espanhóis.



Panama. Carolus Allard, Orbis Habitabilis Oppida et Vestitus,

Kassel e Basel: Bärenreiter 1966

 
A travessia do ístmo deu-se pela primeira vez por V. Núñez de Balboa que, em 1513, atingiu o Oceano Pacífico.  Em 1519, P. Arias de Avila fundou, na costa do Pacífico, no local de uma aldeia de indígenas pescadores, uma povoação que se tornou sede de bispado. Dali saiu F. Pizarro, em 1531, para conquistar o Perú.


A história colonial da região foi desde então marcada pela sua posição intermediária com relação ao comércio com o Peru, sendo submetida como Audiência ao Vice-Rei em Lima. Pelo ístmo passava o caminho entre as minas de prata sul-americanas e a Europa. A cidade de Panamá, remontante à fundação de P. Arias de Avila, transformou-se numa das mais importantes localidades de comércio e de defesa militar.


De Puerto Bello, na costa do Caribe, partiam as tropas para a travessia da região; essa cidade tornou-se importante local de feiras e transações comerciais. Devido a sua posição estratégica no comércio euro-americano e da saída das frotas para a Espanha, tornou-se alvo de piratas e flibusteiros que atuavam no Caribe. Em 1671, Panamá foi destruído pelo pirata inglês H. Morgan. Três anos mais tarde, iniciou-se a sua reconstrução como cidade-forte por A. M. de Villacarta.


A consciência que a Europa tinha da importância de Panamá e de Nombre de Dios manifesta-se na obra sobre as cidades e os costumes do mundo habitado, publicada ao redor de 1695, em Amsterdam (Carolus Allard, Orbis Habitabilis Oppida et Vestitus, Kassel e Basel: Bärenreiter 1966). Aqui, o ístmo do Panamá é definido como „isthmi Americani celeberrimum emporium, Aureum castellum Hispanis dictum“.


O enfoque é dirigida à posição geo-estratégica especial do ístmo e que fêz da região um caminho de passagem, uma ponte entre povos, entreposto básico para as transações comerciais e o transporte entre a América Latina e a Europa de riquezas e produtos. A região teve assim o seu significado marcado pelos dois portos, um do lado atlântico, o porto de Nombre de Dios, outro do lado Pacífico.


Istmo de Darien e o Brasil na Europa do século XVII e XVIII

                                                         


O conhecimento do Panamá na Europa do século XVIII foi marcado pelo relato da viagem de Sir F. Drake (Sir Franz Drakes, Reise an den Isthmus von Darien, Sammlung von Reisen und Entdeckungen in einer chronologischen Ordnung zusammengetragen von Johann Barrow, aus dem Engelländischen übersetzt I, Leipzig: Johann Friedrich Junius, 1767, 231-247).


Nessa coletânea, esse texto é publicado logo após os capítulos dedicados a Pedro Álvares Cabral, Vasco da Gama e Colombo. O Panamá surge, assim, em ordem cronológica de testemunhos europeus, logo após o Brasil.


Nesse texto,parte-se das más experiências que F. Drake, nascido ao redor de 1540, teria tido com os espanhóis no Caribe. Em 1577, acompanhara Sir John Hawkins à costa da Guiné com o objetivo de comprar escravos para as ilhas do Caribe.


Obrigados a procurar abrigo em porto espanhol na baía do México devido a uma tempestade, teriam sido maltratados pelos espanhóis.


O ressentimento daí nascido tê-lo-ia feito propenso à vingança. A sua rota incluiu as Ilhas Canárias, a passagem entre Guadalupe e Dominica, atingindo a terra firma. Com Jakob Rawse, que pretendia atacar a cidade de Nombre de Dios, tomou dois navios que vinham dessa cidade, carregados de madeira:


„Através deles souberam que nessa cidade se espera um certo número de soldados do governador do Panamá para defender os habitantes contra os Symerons. Este povo vive no território entre a cidade de Nombre de Dios e Panama e descendem daqueles índios que há ca. de 80 anos fugiram da brutalidade dos espanhóis, e que aos poucos se juntaram e formaram uma nação especial.
O Capitão Drake tratou essa gente muito cortêsmente; colocou-os à costa, pois acreditava que seria impossível que levassem alguma notícia na cidade, antes que êle próprio ali chegasse (...) Então tomou 53 homens com tambores, trompetes e armas de guerra; (...)


(...) após uma viagem de 10 dias subiu uma montanha muito alta, onde, de uma árvore, que os Symerones lhe haviam mostrado, pode ver o Mar do Sul. Desse momento em diante se propôs a navegar para lá com navios ingleses. (...) (op.cit. pág. 233-238, trad. AAB)


Congresso Panamericano de 1826


O Panamá foi sede de um evento de expressão da história das Américas: a realização, em 1826, por Simón Bolívar, do congresso panamericano que pretendia a união das antigas colonias espanholas da América do Sul e que é visto como a primeira conferência internacional de paz do continente.


O congresso, após meses de preparativos, reuniu-se a 22 de junho de 1826. Os debates prolongaram-se até o dia 15 de julho. Dos muitos países convidados, apenas quatro enviaram delegados: Colombia, Estados Unidos da América Central, Peru e México. O Brasil, ao lado do Chile, Bolívia e Estados Unidos de La Plata haviam inicialmente confirmado uma participação. Entre outras causas, questões de neutralidade perante a Espanha representaram impedimentos. Da Europa, a Inglaterra e os Países Baixos enviaram representantes que, porém, não participaram dos debates, desempenhando apenas um papel de aconselhamento e mediação.


Dos representantes dos EUA, um faleceu durante a viagem, o outro chegou após o término do congresso. Somente após ter Boliver assegurado um retardo do plano de libertação de Cuba e de Porto Rico é que os EUA haviam aceito participar do evento. Devido em parte ao clima da região, mudou-se por fim a sede do congresso para Tacubaya, nas proximidades da cidade do Mexico, para onde apenas se dirigiram os representantes do México e da América Central, abandonando-o após alguns dias.


Dentre os resultados do congresso, salienta-se a conclusão de um contrato de união, aliança e federação e dois outros sobre contingentes de exército e marinha. Entre os muitos pontos fixados, menciona-se o da proibição do comércio de escravos. O significado do congresso, porém, apesar de seus malogros, não deve ser questionado como tentativa de organização de estados soberanos numa comunidade de paz, de realização regular de congressos, de criação de um tribunal permanente e de fomento do intercâmbio internacional. Uma das razões dos poucos resultados concretos do congresso foi vista, na época, na falta de organização e de união interna das novas nações independentes. (A. H. Fried, Pan-Amerika: Entwicklung, Umfang und Bedeutung der zwischenstaatlichen Organisation in America 1810-1916, 2a. ed., Zurique: 1918, 8-11).



Uma das primeiras menções do Panamá e do congresso de 1826 em obra que também considera o Brasil e que obteve ampla divulgação na Europa encontra-se no livro dedicado à Colombia e à Guiana da coleção „Galeria de quadros do mundo ou história e descrição de todos os países e povos, de seus costumes, suas religiões, usos etc., de autoria do agente consular e erudito Caesar Famin (Welt-Gemälde-Gallerie oder Geschichte und Beschreibung aller Länder und Völker, ihrer Gebräuche, Religionen, Sitten u.s.w.) publicado conjuntamente com a  História e Descrição do Brasil e das Guianas de Ferdinand Denis (Geschichte und Beschreibung von Brasilien und Guyana, aus dem französischen, Stuttgart: Schweizerbart‘s Verlagshandlung 1839).


„A população de Panamá, a capital da Província do Istmo, conta com 10000 almas. Essa cidade recebia no passado os metais preciosos que iam do Perú para a Europa. Ela é famosa pelo projeto de união de ambos os oceanos, assim como por um Congresso ali realizado em 1826. A região do Ístmo é em geral não saudável. A pequena cidade Portobello é designada como Túmulo dos Europeus.“ (op.cit. pág. 25, trad.AAB).


Departamento do Panamá na Geografia do século XIX


Uma nova fase na história do Istmo deu-se com a corrida de ouro para a Califórnia. A comunicação e o transporte de aventureiros aqui era realizada por diligências através da Nicaragua. Em 1855, uma empresa norte-americana, com base em concessão, construiu uma estrada de ferro que representou um dos grandes empreendimentos da história ferroviária do continente e, ao mesmo tempo, uma das grandes obras de engenharia do século XIX que foram acompanhadas por perda de vidas devido à malária.


Essa nova importância econômica da região teve repercussões na Europa. Em obras geográficas de fins do século XIX, o Panamá, embora ainda parte da Colombia, é tratado quase que como região independente:


„O Panamá, estado do Istmo que pertence à República Colombia, mais propriamente Departamento Panamá, tem um tamanho de ca. de 86 km2 e 285000 habitantes, ou seja, uma densidade populacional de 3,3. A população é constituída de ca. 180.000 descendentes de índios e de brancos, 40.000 mulatos, 20.000 brancos, 30.000 negros e 15.000 índios, mas essas cifras representam apenas suposições. Que o estado ainda é coberto, no Ocidente e a Oriente, por florestas percebe-se facilmente de seus produtos, típicos de um país de floresta tropical. Em 1898, Panamá exportou bananas por 1.829.000 marcos, cocos por 667.000 marcos, caucho e borracha por 489.000 marcos e salsaparilha por 138.000 marcops, além de bálsamo por 33.6000 marcos e madeira por 170.000 marcos, na sua maior parte jacarandá, assim como café por 6000 marcos; a pecuária rendeu 458.600 pelas reses e 245.000 marco por couros, a pesca 127.000 por madrepérola e 260.000 marcos por pérolas. O comércio alcançou um volume de 17,58 milhões de marcos, enquando que os mencionados produtos juntos apenas 3,86 milhões de marcos: quase todo o resto, a significativa importação de 13.338.000 marcos, foi devida ao comércio da passagem do ístmo, e aqui reside o significado desse Estado ainda não cultivado, que desde 1855 possui uma via férrea de Oceano a Oceano“. (...) A cidade Panamá situa-se no Grande Oceano (...) em meio de várzeas. Foi fundada já em 1521 pelos espanhóis; em 1671 foi destruída pelos flibusteiros e reconstruída em outro local. Decaiu rapidamente quando sossobrou a soberania espanhola na América do Sul e Central; desde o florescimento da Califórnia, porém, em particular desde a criação da ferrovia, cresceu novamente, embora o porto seja raso e os grandes navios devam ancorar longe da cidade, junto a pequenas ilhas. (...) Do outro lado do ístmo está Colón, antigamente Aspinwall: uma cidade nova, ereta em área de floresta, em grande parte constituída de casas de madeira, que foi totalmente incinerada em 1886 durante a revolução na Colombia (...). Como cidade puramente comercial com exportação de bananas para Nova Iorque e comércio de passagem intenso (...) Colón dá uma impressão moderna, apesar de ter apenas 5000 habitantes.“ (W. Sievers, Süd-und Mittelamerika, 2a. ed. Leipzig e Viena: Bibliographisches Institut 1903, 604)


Canal de Suez, Panamá e Brasil


Um dos grandes empreendimentos técnicos de dimensões mundiais da França do século XIX foi a construção do Canal de Suez, inaugurado em 1869. O seu construtor foi o conde Ferdinand de Lesseps, que teria comprado os planos do canal do engenheiro austríaco Alois Negrelli, em 1838. O sucesso desse empreendimento alentou esperanças relativamente a uma rápida construção do canal entre o Atlântico e o Pacífico. Em 1876 criou-se em Paris a Société Civile Internationale du Canal Interocéanique. Em 1878, adquiriu essa sociedade uma concessão do govêrno da Colombia (Concessão Wyse). Em 1879, essa sociedade foi transformada por lei na Sociedade do Canal do Panamá, presidida pelo mesmo Ferdinand de Lesseps. Os trabalhos tiveram início em 1881. Os planos previam a construção de um canal sem comportas, de 73 km de comprimento.


Os trabalhos desenvolvidos nos anos 80 foram marcados pela tragédia da malária e da febre amarela. Em dimensões até então desconhecidas na história da engenharia, as obras levaram à morte de ca. de 22000 trabalhadores. Fator da malária teria sido uma medida de higiene: médicos franceses haviam sugerido que se colocasse um balde de água junto às camas dos trabalhadores, criando condições ideais para a proliferação de mosquitos.


Também o Brasil conhecia o problema nas regiões amazônicas e também faria a experiência trágica de ver o sacrifício de muitas vidas quando da construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. Sobre o desenvolvimento dos conhecimentos relativamente à malária e à febre amarela no contexto do Canal foi Pedro II° informado por publicações enviadas através do serviço diplomático. (Ministerio da Justiça/Arquivo Nacional, Dom Pedro II e a Cultura, org. M. W. de Aragão Araú´jó, Rio de Janeiro 1977, Doc. 1128, pá´g. 197)


Os desastres técnicos e sanitários foram acompanhados de desastre econômico, levando a que F. de Lesseps procedesse a uma revisão de planos, em 1887. No contrato fechado com Gustave Eiffel, o projeto previa a construção de um canal com comportas. Esse projeto, previsto para ser concretizado até 1890, teve os seus trabalhos suspensos em 1889, por dificuldades de toda ordem. A falência da sociedade do canal, em Paris, nesse ano, foi um dos grandes escândalos da história das finanças na França.(Veja outro artigo nesta edição)


Os Estados Unidos assumem a liderança


Em 1894, o projeto do Canal foi assumido pela Compagnie Nouvelle du Canal de Panama. Entretanto, já 1904, foi vendido aos Estados Unidos. Os norte-americanos estavam já há muito envolvidos em projetos de superação do ístmo, em particular nos planos de construção de um canal na Nicaragua. Em 1903, assinou-se um contrato com a Colombia (não ratificado). Em novembro desse ano, com uma revolução, apoiada pelos EUA, do engenheiro francês Philippe Bunau Varilla, o Panamá se separou da Colombia. Já a 18 de novembro, o Panama fechava com os EUA o contrato de Hay-Bunau-Varilla relativo ao uso de uma zona do canal e o seu controle em troca de pagamento e de medidas de asseguração de sua independência.


A partir de 1905, os trabalhos foram desenvolvidos pelo engenheiro John Frank Stevens, cuja capacidade de organização e medidas sanitárias possibilitaram o desenvolvimento do projeto. Abandonando os trabalhos após ter realizado a sua preparação, em 1907,  passaram eles a ser dirigidos pelo General George Washington Goethals, com o apoio do presidente Theodor Roosevelt. A primeira passagem deu-se a 15 de agosto de 1914. O Canal foi inaugurado oficialmente em 1920.


Canal do Panamá e os estudos brasileiros


Qual seria o significado do Canal do Panamá para os estudos culturais brasileiros, em particular de contextos euro-brasileiros?


A mesma questão levantou a A.B.E. com relação ao Estreito de Magalhães e o Cabo Horn, e os estudos realizados demonstraram o significado dessa passagem ao Pacífico para a história e o presente do Brasil (veja relatos em edições anteriores desta revista).


Assim como no caso do Estreito de Magalhães, também o reconhecimento do significado do Canal do Panamá para contextos euro-brasileiros pressupõe perspectivas adequadas e a consideração de contextos não usualmente tratados sob prismas historiográficos convencionais.


Como ponto de partida oferece-se a inserção do Brasil no contexto mais amplo dos ideais, dos esforços e dos feitos relativos às ligações interoceânicas.


Ambas as passagens - a do extremo sul do continente e a do canal centro-americano marcaram a história das regiões envolvidas no contexto mais amplo da esfera euro-afro-atlântica e pacífica. Os contatos entre as nações modificaram-se em dependência da maior ou menor relevância do caminho pelo ístmo ou pelo estreito no decorrer da história. Sobretudo o Brasil parece ter sido aqui particularmente atingido.


Em linhas gerais, poder-se-ia dizer que numa primeira fase, quando os transportes das riquezas do Peru à Espanha se davam pelo ístmo, a ser atravessado por terra - época do apogeu de Cartagena de las Indias - o Brasil, na sua orientação atlântica, se apresenta em posição distante dessa rota de contatos. Com o desenvolvimento da rota marítima pelo Cabo Horn, quando as riquezas da América Central passaram a se fazer em parte por Valparaíso, o Brasil se encontra na rota de passagem dos navios que vinham e se dirigiam à Europa. Essa situação modifica-se gradualmente com a construção da estrada de ferro do ístmo em 1855, ocorrendo uma reorientação nas relações.


Nesse redirecionamento, a construção do canal interoceânico, - concretização de ideal da Espanha do século XVI - revela-se como inserida em processos relacionados com os Estados Unidos e como fator importante da norte-americanização do continente. Aqui poder-se-ia citar a corrida ao ouro da Califórnia, e um indício de como a reorientação atingiu o Sul seria a migração de chilenos para regiões da América Central e do Norte.


Desse panorama, necessariamente pouco diferenciado, poder-se-ia chegar à idéia de que a abertura do Canal do Panamá, reduzindo consideravelmente o caminho entre a costa oriental do continente, a Oceania, a Ásia e a Europa, e levando a uma perda de significado da rota pelo Cabo Horn, também teria apenas representado perdas para o Brasil, afastando-o de muitas nações e, ao mesmo tempo, colocando-o à margem em quadro continental agora marcado por outras focalizações.


O Brasil foi atingido também de forma indireta pela construção do Canal e, sobretudo, pelas circunstâncias que o acompanharam. O Canal marcou a substituição da liderança européia pela norte-americana e o grande golpe na supremacia francesa no universo da ciência aplicada.


Panamá na história do cosmopolitismo nas Américas e da imigração asiática


Há um contexto singularmente pouco considerado no estudo dos elos histórico-culturais entre o Pacífico e o Atlântico, não apenas relativamente a contextos vinculados com o Brasil.


Trata-se do vir-a-ser de formas de vida diferenciadas nas duas faces oceânicas do continente e da diversidade cultural e cosmopolita na zona interoceânica, situação esta intensificada após a construção da ferrovia e durante a construção do Canal do Panamá.


O estudo da participação histórica e a presença atual de grupos provenientes de países asiáticos na costa ocidental do continente americano, dos caminhos de sua difusão e de suas interferências com imigrantes orientais vindos pelo Ocidente para outras regiões do continente, tais como no Brasil, surge como uma tarefa de particular atualidade.


A relevância do contributo chinês em cidades como Los Angeles e San Francisco é de conhecimento geral, onde a identidade comunitária é manifestada na manutenção de expressões festivas e costumes. Mesmo assim, lamenta-se constantemente a falta de consideração à altura dessa relevância pelos estudos históricos e culturais.


O papel desempenhado por orientais no Caribe e na América Central não tem sido também suficientemente avaliado na literatura específica, tendendo-se sempre à manutenção de perspectivas que partem sobretudo da formação de identidades a partir do indígena, do europeu e do africano.


Também regiões e cidades brasileiras, como São Paulo, possuem amplas comunidades orientais, e, apesar do desenvolvimento dos estudos nipo-e sino-brasileiros, não se pode ainda afirmar que estejam totalmente integrados na discussão teórico-cultural que abrange o continente e suas relações com a Europa.


A perspectiva da história imigratória é aqui marcada sobretudo por processos históricos do século XX que diferem daqueles de meados do século XIX e que determinaram a vinda de asiáticos para as costas continentais voltadas ao Pacífico. Uma mais aprofundada e diferenciada consideração do papel desempenhado e da situação desses grupos populacionais exige também o exame desses caminhos da história asiática no Novo Mundo, ou seja, visões voltadas às relações entre o Pacífico e o Atlântico nas várias fases de sua história e nas diversas regiões.


Os estudos da história da imigração e de processos identificatórios não podem se restringir a grupos europeus de colonizadores advindos a partir do século XIX, a alemães, italianos, poloneses, espanhóis e outros, mas teem que incluir também os grupos populacionais provenientes da Ásia, que possuem também o direito de reconstruir a sua própria história e cultivar a sua memória. Daqueles provenientes da Ásia não se pode mais esperar nos estudos apenas integração e assimilação nas sociedades nascidas de processos coloniais euro-americanos; é tarefa para todos os latino-americanos integrar no patrimônio cultural do continente os caminhos históricos, as perspectivas, as experiências de vida e as expressões desses consideráveis grupos populacionais.


A corrida de ouro à Califórnia do século XIX é frequentemente salientada como fator relevante que explica hoje a forte presença oriental nas grandes cidades da costa ocidental dos Estados Unidos. Menos presente na consciência geral é porém o papel desempenhado aqui pelo ístmo centralamericano como região por excelência de vínculos do Ocidente com o Oriente.


A reconstrução histórica da vinda e da fixação de orientais na região do Panamá surge como uma tarefa que supera de muito o seu significado especificamente regional.


Tais estudos, porém, oferecem dificuldades especiais para a sua consecução e não podem ser desenvolvidos sem uma maior consideração de métodos e perspectivas da história das mentalidades, de procedimentos historiográficos e teórico-culturais que considerem a transmissão oral, a memória e fontes inconvencionais. Uma das possibilidades que aqui se abrem é aquela do testemunho de europeus que viveram no Panamá ou que passaram pela região no período decisivo da construção e do término do canal. Trata-se em geral de uma literatura de viagens e de textos em revistas de divulgação pouco consideradas pela pesquisa histórica e que exigem ser levantados e examinados criticamente.



Grupo Redatorial sob a direção de A. A. Bispo


  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais - Academia Brasil-Europa (A.B.E.) - e do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (Institut für Studien der Musikkultur des portugiesischen Sprachraumes, I.S.M.P.S. e.V.), visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens: http://www.brasil-europa.eu


  2. A A.B.E. é entidade exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias. É, na sua orientação teórico-cultural, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. A Organização de Estudos de Processos Culturais remonta a entidade fundada e registrada em 1968 (Nova Difusão). A A.B.E. insere-se em tradição derivada de academia fundada em Salzburg pelos seus mentores, em 1919, sobre a qual procura sempre refletir.