Revista

BRASIL-EUROPA

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Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 118/7 (2009:2)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2009 by ISMPS e.V. Edição reconfigurada © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2431


 


Panamá-Brasil


Percursos interoceânicos e o vale do Amazonas

Visões da floresta tropical e de desenvolvimentos cosmopolitas


- com um documento fotográfico inédito de dança tradicional

Ao diplomata Eduardo de Affonso Penna, Embaixadas do Brasil da Alemanha e no Panamá, em gratidão pelos apoios






Este texto apresenta uma súmula de reflexões encetadas no decorrer de ciclo de estudos, contatos e observações realizados na Colombia, Costa Rica e Panamá no âmbito do programa Atlântico/Pacífico da ABE/ISMPS, em 2008. O evento inseriu-se em complexos temáticos tratados nos cursos "Música no Encontro de Culturas" (1998-2002) e do seminário "Pesquisa Musical e Política na América Latina (2008) da Universidade de Colonia, realizados sob a direção de A.A.Bispo, responsável pelo complexo "Transplantes culturais europeus à América Latina no século XIX" do projeto Music in Life of Man do Conselho Internacional de Música/UNESCO.


O programa de trabalhos - o primeiro do gênero - concretizou impulsos partidos do Congresso Internacional "Música e Visões" pelos 500 anos do Brasil e triênio subsequente (1999-2004), do II° Congresso Brasileiro de Musicologia (RJ 1992), do Encontro Regional para a América Latina e Caribe ICM/UNESCO (SP 1987) e do projeto "Culturas Musicais Indígenas" patrocinado pelo Ministério das Relações Exteriores da Alemanha (1992-).


Os trabalhos procuraram dar continuidade aos impulsos decorrentes do simpósio de renovação dos estudos interamericanos e transatlânticos (Leichlingen/Colonia 1983). A orientação teórica é marcada pela tradição de pensamento e de iniciativas remontante à sociedade de renovação de estudos e prática cultura fundada em S. Paulo, em 1968 (Nova Difusão), atual Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais. Principais colaboradores dos projetos interamericanos: Prof. Dr. Francisco Curt Lange (Montevideo) e Prof. Dr. Samuel Claro-Valdés (Chile).

Instituições envolvidas e visitadas: Academia Brasil-Europa, Institut für Studien der Musikkultur des Portugiesischen Sprachraumes e.V./IBEM,
Museo Nacional, Consejo National de la Cultura, Catedral de San Jose/Curia Metropolitana, Teatro Nacional, Museo Teatro El Coliseo ( Costa Rica), Museo de la Inquisitión e Museo Petrus Claver (Cartagena).







Dentre os contextos pouco considerados no estudo dos elos histórico-culturais entre o Pacífico e o Atlântico tem-se aquele relacionado com a direção das rotas interoceânicas e a sua influência nas visões e nas concepções dos viajantes.


Uma particular atenção sob a perspectiva euro-brasileira deve ser dirigida aos elos entre essas rotas e a via de comunicação constituida pelo Amazonas ou melhor, pela rêde de vias fluviais do vale amazônico e que possibilitaram desde o início da história colonial o contato com a esfera ibérica da costa pacífica do subcontinente.


Afirma-se que, após Francisco de Orellana, o segundo europeu que navegou o Amazonas em toda a sua extensão teria sido Charles Marie de La Condamine (1701-1774) na expedição científica realizada em 1735. A viagem levou-o de Santo Domingo ao Panamá e, de lá, a Guayaquil. Em 1744, desceu o Amazonas.


Constata-se, na rota de sua viagem, um fato pouco considerado nas viagens interoceânicas realizadas através do Amazonas: a passagem pelo ístmo do Panamá.


As impressões e as experiências aqui obtidas eram em geral as primeiras do mundo tropical. Os viajantes reencontravam tais circunstâncias de forma muito simular nas na região amazônica, ou seja, a impressão do Amazonas era preparada pelo contato anterior com a natureza do Panamá. Isso disse respeito às imagens que faziam dessas regiões e aos riscos que ofereciam a projetos e empreendimentos, sobretudo relativamente às doenças tropicais.


As impressões desses europeus da vida e da cultura de cidades brasileiras do Amazonas davam-se sob o pano de fundo de constatações anteriores. As coordenadas da observação eram determinadas pelo contexto geo-político primeiramente vivido e a partir delas estabeleciam-se comparações.


Panamá e a história cultural do Acre e da região do Madeira


Um dos relatos mais significativos de uma dessas viagens anteriores à abertura do Canal do Panamá é a de Albert Perl, de fins do século XIX (Durch die Urwälder Südamerikas, Berlin: Dietrich Reimer 1904). Com os empreendimentos que desenvolveria na região amazônica, o seu nome uniu-se com os primórdios históricos do estado do Acre e com a fase do apogeu da exploração da borracha.

(http://www.revista.akademie-brasil-europa.org/Internet-Corres2/CM30-10.htm)


Já há muito se falava do rio Acre e de sua riqueza em caucho na Europa, mas, segundo Perl, ninguém havia ainda tido uma visão direta da situação local. Por esse motivo, o viajante realizou a sua excursão com o objetivo de estudar o comércio e as espécies de borracha. Em 1898, fundaria em Hamburgo uma empresa para a exploração do produto.


O seu relato de viagem refere-se à rota seguida no primeiro quartal do ano de 1890. Partindo da Inglaterra, de Southampton, a bordo de nave da Royal-Mail-Steam Navigation Co., então o mais recente navio da West-Indien-Linie, dirigiu-se primeiramente para as colonias britânicas de Barbados e Jamaica.


Um dos principais interesses do seu livro, ilustrado com fotos das regiões visitadas, é a de oferecer impressões de cidades do ístmo e das regiões atravessadas. Possibilita, assim, uma aproximação à perspectiva de tais viajantes que atravessavam regiões brasileiras a partir do caminho do ístmo.


Viagem pelo ístmo e febres


As convicções de Perl relativas ao modo de vida das populações sul-americanas - não isentas de preconceitos - e que mais tarde seriam de consequência para os seus empreendimentos no Brasil foram ganhas no Panamá.


„A viagem pelo Istmo durou algumas horas; ela levou-nos através da floresta, em parte cortada de pântanos e com pequenas povoações de negros. Assim como em Colon, também aqui os míseros casebres dos nativos são construídos sobre paliçadas. Sob a casa tem-se o local para o lixo e coisas velhas, o que não pouco contribui para tornar o já não-saudável ar ainda mais pestilento. Os habitantes, cujos casebres são rodeados em geral de plantações de cana ou de banana, usam poucas roupas. As crianças andam totalmente nuas e se revolvem no chão com os seus camaradas de quatro patas. Também os homens e as mulheres quase não usam roupas.“ (op.cit.6)


Também no Panamá é que Perl ganhou as suas convicções relativas às febres no Ístmo e no Amazonas, um fato que, para êle, seria exagerado na sua gravidade.


„Os outros viajantes me haviam advertido, talvez de forma exagerada, de fazer a viagem pelo Istmo devido à forte febre. Por esse motivo, bebi durante a viagem uma garrafa de vinho tinto com quinino. O mêdo é tão grande, sobretudo entre os viajantes mais jovens, que já por isso tomam a febre. Sempre constatei que novatos que veem pela primeira vez nessas regiões a travessam de forma mais fácil se não levarem muito a sério a febre; viajantes que foram muito atemorizados, ao contrário, são por ela atacados, com certeza. Nas minhas viagens posteriores assumi como princípio de convencer o meu pessoal de que não precisavam pensar na febre se seguissem as advertências que lhes fazia de forma apenas passageira. Sempre sai-me bem com isso.“ (loc.cit.) 


Cidade do Panamá - Presença de Orientais na América Latina


Para estudos das relações Atlântico/Pacífico é de particular significado a testemunha de Perl a respeito da presença de chineses no ístmo e na viagem pela costa sul-americana que se seguiu.


„Panamá, que logo atingimos, é marcado com referência a esse assunto por má fama mundial. Entretanto, não me ocupei com pensamentos na febre, mas sim visitei a localidade durante os quatro dias de minha permanência. A praça aonde está localizado o hotel é muito bem asfaltada, possui um lindo passeio e canteiros de magníficas plantas tropicais e palmeiras. À noite é iluminado por luz elétrica e faz com que se julgue estar numa grande cidade. Duas vezes por semana há um concerto de banda na praça, ao qual aparecem velhos e jovens, e especialmente a flor da sociedade feminina, em todas as suas cores. Penetra-se porém, saindo da praça de tão bom gosto, as ruas sujas e cheias de cantos, perde-se o encanto de repente e anda-se não por asfalto, mas sobre o pior dos calçamentos. O comércio das lojas encontra-se em parte em mãos de chineses, tendo eu bem notado o cuidado pela ordem nas suas lojas. (...)“ (loc.cit.)


Também a experiência do calor tropical era feita pelos europeus que chegavam por essa rota primeiramente no Panamá. A experiência posterior no Amazonas, em particular em Manaus, representava uma repetição do vivenciado no Ístmo.


„No Panamá, onde - além dos conhecidos trabalhos do canal - nada encontrei de interessante, senti um terrível calor tropical, de modo que me encontrava dia e noite como saísse de um banho, ficando feliz quando, por fim, pude subir ao vapor Arequipa, da Linha do Pacífico, para a continuidade da viagem a Mollendo. O vapor estava ancorado longe, é os passageiros foram levados por uma barca para subir ao bordo. No porto do Panamá há muito tubarão, entretanto, não vi nenhum deles. Finalmente tudo estava pronto e a viagem pelo Oceano Pacífico teve o seu início, passando por ilhas cobertas de vegetação até atingir o mar aberto.“ (loc.cit.)


Costumes europeus no Caribe e latinoamericanos no Pacífico


„Que os costumes a bordo do Arequipa no Oceano Pacífico eram outros do que a bordo do Arato, no Oceano Atlântico, isso constatei logo. Como de costume, coloquei as minhas botas para que fossem limpas em frente da porta da minha cabine, à noite. O Steward trouxe de manhã o chá e arrumou o quarto, mas as botas não apareceram. Perguntado a respeito, esclareceu-me que tais serviços de confiança apenas eram de uso em vapores europeus e as minhas botas teriam provavelmente desaparecido para sempre. E assim foi. Já na primeira manhã se notificaram ao capitão vários roubos; um passageiro da terceira classe foi roubado completamente, bens ao redor de 2000 marcos. Coloco aqui, assim, uma placa de advertência!


Ao bordo do Arequipa o panorama no pavimento intermediário era quase que bárbaro. Aqui se deitavam grupos de indianos, chineses, negros e outras pessoas de cor. Entre eles se arrastavam bebês imundos, cães, papagaios e macacos, que faziam uma verdadeira zoeira. Na face dos homens porém havia uma tranquilidade séria, aquela imutabilidade que é própria das gentes do sul, enquando que as mulheres se moviam de um lado para o outro ou amamentavam os seus bebês. Num outro canto acocoravam-se outros que se deliciavam ao som de um acordeão, coroando assim o espetáculo.


O salão e as cabinas localizavam-se no deck do navio, de modo que a temperatura era tolerável, pelo menos à noite. Também a primeira classe era tão superlotada de passageiros que, à noite, precisava-se ir ao salão e, como as poltronas não eram suficientes, tinha-se que usar das mesas como camas para o repouso.“ (loc.cit.)


Essa comparação negativa da vida a bordo entre os navios do Atlântico/Caribe e aqueles da costa pacífica sugeria assim uma diferença mais profunda de modos de vida e cultura. Perl traça um panorama no qual o Panamá surge como situado num campo de tensões culturais, mais europeu de um lado, mais sul-americano do outro.


Na sua descrição, as condições de vida e a própria personalidade dos brasileiros surgem como altamente negativas sob o pano de fundo das regiões até então percorridas. Seria, segundo êle, conhecimento comum nos países vizinhos a péssima situação de higiene e de educação predominantes no Brasil. Na Bolívia, viajantes que encontrara haviam comentado as condições deploráveis de viagens em vapores da Amazon Co.


Como Perl se expressa, a sua impressão dos brasileiros foi péssima. Até então não teria encontrado gente com comparáveis modos de comportamento. Nos navios do Amazonas, a alimentação era muito pior do que aquela dos vapores do Pacífico, e seria até mesmo ruim para os brasileiros, apesar de acostumados com má alimentação. A falta de limpeza e sobretudo de disciplina da população não poderia ser descrita. Assim, como o pavimento intermediário oferecia um quadro hediondo criado pelo caos de rêdes, das quais os viajantes cuspiam e escarravam, o viajante realizou a sua viagem sobretudo ao ar livre, no pavimento superior.


Em direção contrária: do Brasil ao Panamá


Poucos anos após a viagem de Perl, o suíço Dr. Wilhelm Müller, de Zurique, na sua viagem à América do Sul, percorreu a rota contrária, ou seja, pelo Estreito de Magalhães. As suas primeiras impressões foram marcadas assim pelo Brasil, Argentina, Chile e Perú, observado o Panamá sob o pano de fundo das imagens e das experiências obtidas no Sul. (Wilhelm Müller, Das Schöne Südamerika: Reisen in Argentinien, Brasilien, Chile und Perú, 2a. ed. Berlim: Globus 1928).


No seu relato de viagem, W. Müller dedica um longo capítulo ao trecho de Lima à Nova Iorque, passando pelo Canal do Panamá e Havana. Comparando com o relato de Perl, da década de 90, a descrição de W. Müller, relativa a 1913, testemunha as mudanças até então ocorridas, em poucos anos, com o prosseguimento dos trabalhos do Canal. Também êle atravessou o ístmo por estrada de ferro, uma vez que o canal ainda não estava pronto.


O caminho pelo Estreito de Magalhães para o Panamá, como acentuado pelo viajante, difere da rota contrária sobretudo pelas outras impressões da natureza. Aqui, após o contato com a natureza tropical do Brasil, o viajante vivenciava primeiramente as zonas áridas da costa ocidental do subcontinente, reencontrando o mundo tropical apenas à altura do Equador.


„O prosseguimento da viagem de Lima a Havana é, primeiramente, uma viagem ao longo dos litorais de Perú e do Equador, em geral a apenas 20 quilômetros ou até menos das costas. As zonas costeiras do Perú, também na parte norte do país, é um deserto árido. Rochas e areia, sem qualquer verde, é o característico desse litoral sêco, pobre em água. Ao redor de Payta passa-se pelos ricos campos petrolíferos peruanos (....) Até 5° ao sul do Equador, a temperatura não sobe acima dos 24° C. A partir daí, dá um salto, atingindo os 30° C. A brisa agradável desaparece, e o céu fecha-se com nuvens escuras; a atmosfera torna-se húmida. A costa do Equador é coberta de luxuriante vegetação, desaparecendo os desertos desconsolados das costas norte-chilenas e peruanas. Chegamos em região chuvosa e nos encontramos acima do Equador. (...)“ (op.cit. 162)


Nessa direção, o viajante experimentou de forma mais sensível o estado do oceano que justificaria a sua denominação de Pacífico. Mesmo no Brasil o viajante não tinha constatado o aroma das florestas tropicais com tanta intensidade do que na costa norte da América do Sul, já próximo ao Panamá:


„Nunca havia visto o oceano tão liso, um espelho, como à altura da latitude 4 e 7 ao norte do Equador, dois dias de viagem antes da entrada na baía do Panamá. A temperatura girava sempre ao redor de 30° C. Temporais cortavam de quando em quando os mares, em geral nas proximidades da costa. Dias e noites são nessa parte pacífica da América do Sul, apesar da brisa norte nas proximidades do Equador, insuportavelmente quentes, pois aqui extingue-se a corrente fria do oceano.

(...) quatro horas antes de Balboa, pode-se perceber o odor doce de terra e de plantas. Trata-se do aroma temperado das florestas que é marcante na costa norte da América do Sul e que indica com certeza a proximidade das costas. Esse aroma magnífico de plantas e terra nunca senti de forma tão intensa em toda a costa sul-americana, do Rio de Janeiro ao cone sul do continente até o Panamá como ao longo da costa norte, principalmente entre Trinidad e Panama ao longo da costa da Venezuela e da Colombia.“ (op.cit. 163)


Transformações sociais e culturais no decorrer da construção do canal


Particularmente significativa para os estudos histórico-culturais é uma comparação da descrição de uma viagem ferroviária pelo ístmo pouco antes da abertura do canal com aquela de Perl.  Esse interesse para estudos futuros foi previsto pelo próprio autor e por essa razão incluiu no seu livro o relato de uma viagem que ali havia realizado na direção oposta, ou seja, a mesma de Perl.


„Não seria sem interesse descrever aqui uma viagem pela ferrovia através do Panamá, como aquela que realizei pouco antes da inauguração do canal do Panamá, em 1913, quando se estava no meio de grandes trabalhos de construção. Pode-se ver, através da comparação, que progresso grandioso a navegação oceânica realizou nos últimos 15 anos, e como o homem tende a esquecer facilmente e rapidamente a edificação de tais obras gigantescas, que haviam durado décadas.


Numa tarde do ano 1913 parti de Colón, uma cidade da Costa Atlântica do Panamá, em direção à cidade meio japonesa-chinesa do Panamá. Da plataforma traseira do „observation car“ tínhamos um panorama sem fronteiras do país e do canal.


O calor da tarde tropical ainda nos pesava no corpo, e a sêde, com a qual sempre se sofre nos trópicos, muito nos martirizava. A refrescante água gelada que a Panama Railroad Company oferecia aos viajantes nos confortávels Hygiene Drinking Cups era tomada ávidamente pelos passageiros.


Após poucos minutos já nos encontrávamos de novo na selva. Florestas e capoeiras alternavam-se com amplas zonas tropicais de rios e pântanos. (...) Não durou muito e alcançamos Gatun, onde as comportas gigantescas do Canal do Panamá farão com que os navios possam ser elevados ao redor de 35 metros. Não se pode fazer uma idéia dessas portas de ferro, titânicas (....).


A vida numa dessas localidades é extremamente interessante. Embora tudo dê a impressão de improvisação, os olhos deparam-se com um grande bem-estar, até mesmo riqueza, pois quem trabalha no canal como engenheiro, arquiteto, técnico ou médico ganha muito dinheiro. (:..)

Nos anos 80 do século passado, quando os trabalhos do canal ainda estavam em mãos francesas, o governo norte-americano começou com o saneamento da costa norte da América Central com o objetivo de combate às epidemias de febre amarela e de malária. Os trabalhos do canal defrontavam-se na época com grandes dificuldades, pois diariamente grande número de trabalhadores morria com a malária e a febre amarela. Hoje, em 1913, vi nos hospitais de Colón, Boca del Toro, Panama, Pto. Limon, San Jose, St. Thomas, Curação, Pto. Columbia e em outras cidades das Índias Ocidentais e da América Central nenhum caso de febre amarela, o que prova de forma cabal o maravilhoso sucesso do govêrno norte-americano. (...)“ (op.-cit. 167)


Panamá como cidade „meio japonesa-chinesa“


Se Perl já havia constatado, em fins do século XIX, a presença de chineses e a influência cultural que exerciam na vida da capital panamenha, W. Müller testemunha o crescimento que a comunidade oriental havia tido nos últimos anos.


„Ao redor das oito horas alcançamos Panama. Um tráfego intenso e uma quantidade nunca antes vista de pequenas carroças definiam o panorama da grande praça diante da estação. A caminho do hotel, via-se que o Panamá hospedava uma grande quantidade de orientais, hindús, e nomeadamente também japoneses e chineses. Bairros inteiros haviam sido construídos a modo japonês-chinês; as lojas japonesas, as pessoas e os trajes conseguiam dar a impressão de se estar no país das Geishas. As ruas e as praças dos bairros melhores eram iluminadas de forma bastante clara e indicavam a existência de uma vida noturna bastante agitada. Vivacidade e descontração foram a primeira impressão que a cidade dava. Uma população homogênea não há no Panamá, como disse; tudo é ou da raça mixta centro-americana ou povo imigrado, estrangeiro, nomeadamente oriental, participante de alguma forma no canal do Panamá.“ (op.cit. 169)


Cosmopolitismo e expressões culturais indígenas e mestiças da „mais jovem república do mundo" - um documento inédito


Um texto de A. Leblanc relativo ao Panamá e seus habitantes logo após a independência do país e que surgia, em 1904, como a mais jovem república do mundo oferece alguns dados relativos à vida cultural do país (A. Leblanc, „Panama et ses habitantes: La plus jeue République du Monde“, Journal des Voyages, Paris, 13 Novembre 1904, 429).


O autor, que coloca de início em dúvida a durabilidade do novo Estado, salientando a forte presença e as possibilidades de anexação do país pelos Estados Unidos, dedica-se porém não à política, mas sim aos habitantes e a seus costumes. Baseava-se aqui na própria experiência pessoal, pois residira no Panamá até 1890.


Salienta que a região do Panamá seria uma área essencialmente cosmopolita e aqui estaria um dos fatores que havia permitido o sucesso da revolução de 1903: „Cans cette langue de terre qui sépare les deux océans et qui unit entre elles les deux Amériques, les Colombiens, depuis cinquante ans, ont toujours été en minorité.“


O autor testemunha, no seu texto, a transformação ocorrida na configuração populacional do Panamá. Nessa sociedade cosmopolita, a colonia francesa havia sido a mais numerosa no passado. Em 1903/4, era já porém a comunidade norte-americana a dominante. Além do mais, haveria chineses, aos milhares, além de negros da Jamaica. Incluindo indianos e árabes, estes vindos da Guiana, numerosos povos estariam representados na população do ísmo: „Et l‘on peut dire, en somme, que toutes les
nationalités du monde, y compris les Hindous et les Arabes (ceux-ci évadés de notre bagne de la Guyane), ont de nombreux représentants dans l‘isthme“.


O autor esboça, portanto, os diferentes caminhos de chegada de orientais à região. Os chineses vinham diretamente pelo Pacífico, os indianos e os árabes sobretudo pelo Ocidente devido aos elos coloniais da Grã-Bretanha e da França no mundo.


O autor guardara na memória também encontros com grupos indígenas. Havia conhecido últimos representantes da tribo dos Pénonomehs, uma família que vivia em vale inacessível entre as montanhas, a algumas léguas dos canteiros da Companhia do Canal. Salienta, no seu texto, o contraste que representava o modo de vida indígena com o mundo da técnica, e sobretudo o encontro de concepções do mundo, um voltado à permanência e conservação, outro à transformação radical marcado pela crença cega no progresso.


Com base nas suas recordações de vida, o autor comenta duas fotografias que haviam sido enviadas ao Journal de Voyages por um correspondente no Panamá. Uma delas trazia o título de „casamento em Colon“, outra mostrava uma cena do mercado na cidade do Panamá. Refletiam, assim, costumes de cidades portuárias das duas costas do país, do Caribe e do Pacífico.


A primeira delas seria um documento vivo dos costumes festivos panamenhos de tradição colombiana. O autor tece comparações entre as danças panamenhas e as européias:


„A cerimônia nupcial teve lugar de manhã. Como os seus compatriotas do passado, os colombianos, os nativos do ístmo são religiosos e, sobretudo, praticantes. Após a missa, celebrada com grande pompa na igreja vizinha, a noiva é dispensada de passar pelo cabildo, pela razão de que o casamento religioso é suficiente por lei para legitimar uma união. Sob os toldos levantados no terreiro da finca, um almoço lauto esperava os convidados e não é necesário de se dizer que ali se consome grandes quantidades de anisado e de cerveja de milho.


Enfim chega-se à hora da dança, dança de caráter, mais pitoresca, e digamos, mais elegantes e mais dignas que as nossas valsas e nossas polcas.
No centro de um círculo formado por pessoas da festa que observam curiosamente, os dois parceiros executam um passo gracioso, que pareceria por demais complicado para um europeu; é menos uma dança do que uma pantomina, e o homem e a mulher que dançam se esforçam de exprimir os seus pensamentos e suas sensações por gestos e atitudes.


Observe-se a roupa das mulheres; ela é especial aos panamenhos. É uma espécie de camisa de rendas que deixa os ombros livres, à direita e à esquerda, ou os dois ao mesmo tempo. Os braços são nús e ornados de braceletes. As cabeças são cobertas de chapéus de palha sem forma especial, mas cujas abas estreitas pouco servem para proteger dos ardores do sol.“


A segunda fotografia comentada oferecia uma imagem da outra margem do ístmo, da cidade do Panamá.


„Trata-se de um canto do mercado indígena que se realiza nos arredores da cidade, sob amplas galerias que possuem as casas.


No primeiro plano reencontra-se numa velha mercadora o costume que acabei de descrever. À sua frente oferece os produtos de sua pequena propriedade, ovos dentro de uma totuma (cabaça transformada em vasilha), e frutos dentro de uma gamela de madeira.


Ao lado dela, uma jovem oferece à venda totumas de dois calibres, cerâmica indígena e frutos. E dois jovens panamenhos observam com atenção o fotógrafo e seu aparelho.


Os clientes vão-se decidir em passear diante dessas lojas primitivas? Fariam bem em esperar algumas horas, pois as ruas parecem ser diabolicamente ensolaradas, e os raios do sol cozinham nas ruas da mais jovem capital do mundo!“


A.A.Bispo

  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais - Academia Brasil-Europa (A.B.E.) - e do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (Institut für Studien der Musikkultur des portugiesischen Sprachraumes, I.S.M.P.S. e.V.), visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens: http://www.brasil-europa.eu


  2. A A.B.E. é entidade exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias. É, na sua orientação teórico-cultural, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. A Organização de Estudos de Processos Culturais remonta a entidade fundada e registrada em 1968 (Nova Difusão). A A.B.E. insere-se em tradição derivada de academia fundada em Salzburg pelos seus mentores, em 1919, sobre a qual procura sempre refletir.