Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

_________________________________________________________________________________________________________________________________


Índice da edição     Índice geral     Portal Brasil-Europa     Academia     Contato     Convite     Impressum     Editor     Estatística     Atualidades

_________________________________________________________________________________________________________________________________

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 118/4 (2009:2)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2009 by ISMPS e.V. Edição reconfigurada © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2440


 



O ensino de letras clássicas no Brasil: Panorama histórico e cultural



Leonardo Kaltner



Introdução


A história do ensino de Letras Clássicas no Brasil, respectivamente do ensino de línguas e literaturas clássicas, i.e. o grego e o latim, é um complexo objeto de estudo. Ainda que tentássemos analisar em pormenores todas as experiências e vivências de profissionais que lecionaram e lecionam línguas clássicas no Brasil, o fato de o ensino das Litterae Humaniores ter iniciado no século XVI, na época da origem da nação, torna muito difícil exaurir em um só estudo toda a riqueza da educação de Humanidades clássicas na formação do Brasil. Assim, optamos por estabelecer um panorama, indicando os principais atos administrativos relacionados ao ensino de Letras Clássicas no Brasil.


Para a contextualização histórica do papel das Letras Clássicas na educação ocidental, seguimos, dentre outros, os excelentes ensinamentos de Mario Alighiero Manacorda, em sua reconhecida História da Educação. Como método descritivo, baseamo-nos na Introdução à Didática do Latim, obra fundamental sobre o assunto, cujo autor é o Professor Ernesto Faria, ao mesmo tempo a educação humanística foi abordada a partir de uma perspectiva contemporânea, assentada no valor corrente do desenvolvimento sustentável que o Brasil logra atingir.


Buscamos, por fim, apontar em novos horizontes como poderia se processar um retorno das Letras Clássicas à educação básica brasileira, mostrando a importância destes estudos no scenarium contemporâneo do Brasil, um país que luta por se desenvolver plenamente no século XXI. Neste momento, serviu-nos como contra-ponto a experiência dos países desenvolvidos e a relação do ocidente com a cultura clássica. Nosso interesse não é a discussão de métodos de ensino, mas objetivamos iniciar um debate sobre o caráter político de uma possível inserção da cultura clássica na educação básica brasileira.


Ensino de línguas clássicas: da Grécia à Renascença portuguesa


Na Antiguidade, os deuses e heróis da Hélade educavam os homens, serviam de exemplo para o comportamento social, ensinavam a bravura, o respeito, a audácia na guerra. Serviam como modelo moral, religioso, enquanto ensinavam os homens a viajar, saquear cidades ou cultivar seus campos. Todavia, os deuses e heróis educadores não agiam diretamente sobre seus educandos humanos. Para atravessarem do domínio metafísico à percepção física humana era necessária uma intervenção, e esta intervenção inicial era a poesia, a poesia épica de Homero e a poesia didática de Hesíodo, que revelavam os desígnios dos deuses e os atos dos heróis para servirem de modelo aos homens.


A Ilíada e a Odisseia tinham por finalidade, sobretudo, a educação, ensinavam ao homem grego a sua língua na modalidade jônica, os costumes da guerra, a arte poética de narrar os feitos e versificar, ao mesmo tempo que ensinava-o a preservar a memória como patrimônio de sua comunidade. Na poesia homérica, temos o aparecimento dos primeiros educadores gregos como personagens, mas o mais importante de frisar neste momento é a importância da literatura nacional e de obras literárias para o aprendizado da língua. Temos o herói Ulisses como perfil da educação homérica, para os homens gregos.


Já a educação romana, além da nítida influência grega a partir do período de helenização, estava ligada à educação familiar, à figura do pater familias, desde a origem da civilização latina. Entretanto, o escravo Lívio Andronico, tradutor da obra homérica em latim, em meados do século III a.C., demonstra-nos também a importância da assimilação cultural de povos estrangeiros para a contrução de uma civilização. Portanto, no início do período de helenização latina, após as Guerras Púnicas, são vitais novas práticas como o estudo de línguas estrangeiras, a tradução, e até mesmo a imitação das obras gregas, para a contrução da civilização romana. O perfil do orator republicano, do qual Cícero é o mais conhecido exemplo da época clássica, indicava uma pessoa intruída na civilização latina.


No período medieval, do século V d.C. em diante, o principal caráter da educação é a preservação do patrimônio cristão e clássico, que se perderia nas invasões bárbaras. Baseadas no mos synagogae, as escolas das paróquias e dos mosteiros além do alento espiritual ofereciam o ensino de teologia e de latim. Os manuscritos medievais de autores clássicos, neste momento histórico, mostram-nos que a preservação do patrimônio cultural, com sua transmissão e divulgação, sempre foram fundamentais para o ensino de línguas, principalmente as línguas clássicas.

Na época da Renascença, durante os séculos XV e XVI, iniciará o processo que culmina com a chegada do ensino de línguas clássicas no Brasil. Neste momento histórico, o fator mais importante, que proporcionou a expansão e até mesmo uma sistematização do ensino de línguas clássicas e da educação como um todo, foi a criação do livro impresso, pelo surgimento da tipografia, o que tornará dinâmicos a divulgação do conhecimento e os debates acadêmicos, que passam a ser publicados em formato de livro. Assim, as Univesidades da Renascença formaram um grupo de certa forma coeso, em que havia um esforço no sentido de padronizar a educação de forma universal. Esta é uma época de fértil composição de material didático para o aprendizado de línguas clássicas, como dicionários, gramáticas e a edição dos autores clássicos greco-latinos, com técnicas muito semelhantes às atuais. Será o humanista o perfil profissional ideal da educação desta época.


A chegada das Letras Clássicas ao Brasil está ligada à história da Universidade de Coimbra, à história da Companhia de Jesus e ao reinado de D. João III. Reformada em 1537, a Universidade contaria em 1548 com o Real Colégio das Artes, no qual estudou José de Anchieta ainda adolescente. O método de ensino, a organização dos estudos humanísticos da Renascença, de certa forma inspirarão os colégios jesuíticos fundados no Brasil colonial, na mesma medida em que a experiência didática das Humanitates em Portugal também inspirarão a Ratio atque institutio studiorum em 1599.


Letras Clássicas no Brasil


As Letras Clássicas chegam ao Brasil junto com os colonizadores europeus, logo a primeira missa rezada em 1500 por Frei Henrique de Souza, um dos integrantes da expedição cabralina, foi o primeiro registro oficial da língua de Roma no Brasil. Entretanto, a colonização portuguesa só seria efetiva a partir de 1549, com a instituição do Governo-Geral por D. João III e com a chegada dos jesuítas, que fundariam também os primeiros colégios do Brasil colonial.


Em 1556, o incipiente Colégio dos Meninos de Jesus da Bahia torna-se um colégio canônico, o Colégio de Jesus, que ensinava além de Teologia as Humanidades latinas. Outros dois colégios, além do colégio da Bahia, possuíam dotação real e se caracterizavam como centros de Altos Estudos, o do Rio de Janeiro e o de Pernambuco. Nessas instituições predominvam o ensino em latim, havendo, inclusive, cursos para o aprimoramento de docentes, as Academias de Letras Humanas, todavia o estudo de grego era substituído pelo de tupi, tendo em vista a política de conversão do gentio indígena.


No século XVII, o Pe. Antônio Vieira, da Companhia de Jesus, serve-nos como modelo deste padrão educacional, por ter sido educado desde a tenra infância no Colégio da Bahia, em que também atuou como professor posteriormente. Sua obra mostra-nos o alto nível de educação que atingiram os estabelecimentos jesuíticos, principalmente no que concerne ao domínio da língua. No início do século XVIII, foi fundado neste colégio da Bahia a Faculdade de Matemática, uma das quatro modalidades superiores que o colégio oferecia, alé do grau de Mestre em Artes, desde 1576.


Todavia, em 1759, o representante português do despotismo esclarecido, o político iluminista Marquês do Pombal, devido à Questão Cisplatina, expulsa por ato administrativo os jesuítas do Brasil. Surge um hiato repentino na educação brasileira, mas as Letras Clássicas já teriam se inderido no incipiente nacionalismo brasileiro de herança iluminista e neoclássica.


No final do século XVIII, tomando de empréstimo um trecho da primeira Bucólica de Vergílio, os Inconfidentes mineiros organizaram um dos primeiros movimentos nativistas do Brasil, cujo lema, ainda hoje presente na bandeira do Estado de Minas Gerais, é: Libertas quae sera tamen (Buc. 1, 27), que significa: Liberdade ainda que tardia. Logo o espírito clássico já estava arraigado na nação brasileira.   


Já no século XIX, no período de independência e afirmação do Brasil, a política de adesão ao liberalismo inglês dominava o scenarium político brasileiro. Quando o Seminário São Joaquim, a 2 de dezembro de 1837, foi finalmente reformado, surgiu o Imperial Colégio Pedro II, em um momento em que senadores e o próprio imperador discutiam uma possível educação pública em nível nacional e unificada. Ainda que a a voz liberal da sociedade escravocrata e agrária se opusesse ao ensino das Humanidades  clássicas, em prol das úteis Humanidades modernas, o Colégio Pedro II inicia seu fundamental papel constitutivo do ensino moderno de línguas clássicas no Brasil, agora em uma política do Estado. O ensino secundário durava sete anos, com cinco anos de estudo de latim. Assim, a educação humanística ligava-se novamente à civilização brasileira.


Já no século XX, na época do Estado Novo, temos o decreto de número 19.890 de 18 de abril de 1931, a reforma Campos, que determina a divisão do curso secundário em ensino fundamental com duração de cinco anos, havendo dois anos de estudo de latim, e o ensino complementar para quem desejasse cursar uma faculdade, que teria mais dois anos de latim para a carreira de direito. Ao mesmo tempo o governo buscava a nacionalização da educação, já que o federalismo da República Velha do início do século impedia qualquer esforço no sentido de intervenções federais em nível nacional, ainda que no campo da educação.


A reforma Capanema de 1942 é outro marco notório, que ocorre após a criação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo e da criação da Faculdade Nacional de Filosofia, a futura Universidade Federal do Rio de Janeiro, quando as Letras Clássicas se institucionalizam na esfera do ensino superior, data desta época o início dos estudos filológicos do Brasil. Em meados do século XX, as Letras Clássicas estavam presentes no Brasil da educação básica à superior.


Para entendermos como ocorre posteriormente a saída da cultura clássica da educação secundária, devemos antes observar alguns pressupostos, como a geopolítica praticada pela diplomacia brasileira na época do regime militar, a época da Guerra Fria. A principal tese desta geopolítica era o total alinhamento ao bloco dos Estados Unidos, que teve como sustentação ideológica uma política educacional que adotava irrestritamente o ensino técnico e profissionalizante, como registra a LDB de 1971.


O discurso e a política em prol do ensino profissionalizante, estabelecidos sem o devido cuidado, buscando atender uma suposta carência do mercado interno por mão-de-obra, foram suficientes para considerar o ensino de línguas clássicas como um mal a ser expurgado da educação secundária, e assim o foi paulatinamente.


Na década de 90 do século XX, a redemocratização do Brasil foi acompanhada por uma euforia neoliberal que quase desagregou as Universidades públicas brasileiras, logo a retração do ensino de Humanidades clássicas atingiu a esfera do ensino superior também, o que de certa forma marginalizou um conhecimento, um modus cogitandi, tão  fundamental para uma sociedade neolatina e ocidental como o Brasil. O estudo de Letras Clássicas ganhou aos poucos um status de exotismo fora dos meios acadêmicos, assim como a Filologia Românica, que foram completamente expurgados em relação à educação básica.


Em linhas gerais, esta é a história do ensino de línguas clássicas no Brasil, que, atualmente, se concentra apenas no ensino superior, particularmente nas Universidades públicas da região do sudeste do país. Cada período histórico é um complexo objeto de estudo, merecendo um estudo mais atento, buscamos, porém, interpretar esta questão dentro de um contexto político, consituindo assim um estudo cultural do tema. Visamos ampliar, por fim, o debate acerca da perspectiva futura das Letras Clássicas na educação brasileira.




BIBLIOGRAFIA

CERVO, Amado & BUENO, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil. Brasília: UnB, 2002.

FARIA, Ernesto. Introdução à didática do latim. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1959.

LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. São Paulo: Loyola, 2004. 4 v.

MANACORDA, Mario Alighiero. História da educação: da Antiguidade a nossos dias. Tradução de Gaetano La Monaco. São Paulo: Cortez, 2006.