Doc. N° 2375
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
115 - 2008/5
Bretanha-Brasil
Questões de Difusão Cultural e Pirataria A "Tomada do Rio de Janeiro" por René Duguay-Trouin. Memória em St. Malo
Saint-Malo. Trabalhos da A.B.E., maio-junho de 2008
A.A.Bispo
Saint Malo Trabalhos da A.B.E. 2008. Fotos H. Hülskath O problema da "pirataria" de bens culturais tem sido constatado e apontado por organizações de direitos autorais, escritores, músicos, compositores, instituições várias e tratado em eventos e conferências. Critica-se, entre outros fatos, a cópia de produções sonoras do Ocidente em países do Extremo Oriente, o comércio clandestino de CDs, fitas-cassete e videos em várias regiões, com prejuízos econômicos consideráveis para empresas e autores. Discute-se a oportunidade e o tipo de medidas a serem tomadas com os problemas criados sobretudo pela Internet. Materiais, textos e ilustrações colocados à disposição por esse meio são utilizados sem autorização e sem a consideração de preceitos de boa conduta por particulares e instituições. Há páginas, entidades e movimentos que se especializaram em reproduzir materiais de outros sites, manipulá-los através de complementações com imagens ou textos de outras fontes e, nessa reciclagem, oferecê-los como produtos próprios a serviço de uma Difusão Cultural no terceiro milênio. A apropriação de bens culturais não se restringe porém a casos evidentes de cópia e plágio. Há a apropriação mais sutil de idéias, de campos de trabalho, de estilos, de perspectivas, de imagens, de discursos, de instituições. Essa apropriação pode ocorrer sem dúvida de forma irrefletida, ingênua, e um sinal de retidão é corrigí-la tão logo se torne consciente. Tais auto-correções, já constatadas pela A.B.E., comprovam de forma positiva a permanência de fundamentos éticos, de sentido de direito e justiça de indivíduos e instituições. Entretanto, há também indícios de que até mesmo intelectuais e responsáveis por instituições universitárias de renome do mundo de língua portuguesa procuram justificar teóricamente um afrouxamento de princípios éticos de procedimento na sua própria conduta colocando em discussão a validade filosófico-cultural de critérios tais como originalidade e autoria, salientando aspectos da multiplicação e reprodução, ou seja, de pontos de vista que dizem respeito, em linhas gerais, à Difusão. A problemática das relações entre Difusão Cultural e Pirataria surge, assim, como de grande atualidade. Esse debate, hoje com empréstimos dos estudos de Gênero, retoma entretanto uma discussão de longa data. Já em simpósio internacional de São Paulo, em 1981, na sessão dedicada a Direitos Autorais, salientou-se o problema teórico básico representado pela diferença entre uma concepção de copyright, de orientação basicamente material e econômica, e de uma concepção de direito de autor que parte de concepções imateriais de valorização do processo de autoria e de criação e, assim, de propriedade intelectual. A discussão teórica das décadas seguintes dirigiram a atenção às questões filosóficas inerentes a tais distinções, entre elas às da inserção de argumentos em concepções do mundo de fundamentação ontológica ou de sua negação. Poder-se-ia dizer que aqueles que defendem os seus próprios procedimentos com o questionamento da validade da autoria e da idéia em ato criador em nome de uma liberdade de reprodução, de multiplicação e de difusão inserem-se, consciente ou inconscientemente, de forma coerente ou não, em sistemas ou tendências de pensamento que tentam superar fundamentações ontológicas. Difusão Cultural e de Pirataria surgem, aqui, como questões a serem tratadas no âmbito das relações entre Direito e Filosofia, Direito e Teoria do Conhecimento e das Ciências. Sob o aspecto dos estudos culturais em contextos internacionais, esse complexo de questões necessita ser tratado sobretudo sob o aspecto da análise de processos histórico-culturais, de suas contextualizações e de seus mecanismos. Como já tratado em eventos e seminários (Veja textos em números anteriores desta revista), constata-se aqui a existência de elos estreitos da Difusão Cultural com a história política. No passado, sobretudo através de ministérios e de serviços de propaganda, de instituições de intercâmbio de informações, de cultura e das artes, a Difusão Cultural a serviço de concepções e situações políticas foi claramente tematizada. Esquece-se, muitas vezes, da pressão que essa Difusão Cultural oficialmente dirigida por govêrnos autoritários exerceu sobre associações e outras iniciativas privadas, a acampação e instrumentalização de idéias e concepções. Sob um aspecto muito mais sutil, essas relações entre a Difusão Cultural e o Poder poderiam ser detectadas e estudadas em épocas posteriores, inclusive no presente. O receio de que a imagem de nações possa sair do contrôle de instâncias políticas e suas representações levam ao fomento direto ou indireto, através de fundações e institutos oficiais ou oficiosos, da difusão da própria cultura ou do intercâmbio e do diálogo cultural. Também aqui se constata a vigência de concepções segundo as quais os fins justificam os meios e que se manifestam de várias formas, não só na prática de concessão ou não-concessão, no silenciamento e marginalização de estudiosos e iniciativas, mas sim também na tomada de posse de idéias, campos de trabalho, designações e programas de pesquisa e de ação. Para a discussão desse complexo de questões relacionadas com a Pirataria de forma contextualizada no espaço e no tempo, a A.B.E. encetou uma série de reflexões concernentes à Tomada do Rio de Janeiro por piratas franceses no século XVIII. Essas reflexões tiveram lugar em Saint-Malo no âmbito do ciclo de estudos "Normândia-Bretanha-Brasil" da A.B.E.
Pirataria e cultura memorial
A jornada foi sobretudo dedicada à questão da Pirataria nas diferentes perspectivas de acordo com o ponto do observador, ou seja, da problemática de sua relativação histórico-cultural que silencia aspectos de ética, de Direito e de justiça. Para o desenvolvimento dos estudos histórico-culturais torna-se necessário considerar não apenas auto-criticamente visões porventura demais unilaterais da historiografia brasileira, o que vem ocorrendo, mas sim também visões do outro lado, ou seja, das diferentes nações européias.
Essa consideração recíproca de enfoques e imagens surge como de relevância para estudos de relações culturais em contextos internacionais que procuram superar limitações nacionais em vista dos esforços integrativos da atualidade.
Para exercícios refletivos, a "Tomada do Rio de Janeiro" por franceses no início do século XVIII surge como particularmente instigante. Representa um episódio sensível na história portuguêsa e brasileira, doloroso para a auto-imagem de Portugal e do Brasil, e seria compreensível que tal ato de agressão e de ingerência fosse visto e tratado negativamente. O estudioso brasileiro e português admira-se, assim, em Saint-Malo, cidade natal do principal protagonista dessa aventura, em constatar as honras que lhe foram concedidas na época e a sua perpetuação em monumentos e na memória coletiva. A heroização de vultos da história independentemente de aspectos éticos deveria ser visto como um problema cultural a ser analisado em época de esforços integrativos. Entretanto, a cultura memorialista difere nos vários países. Se, em alguns, figuras questionáveis por seus procedimentos da história política, até mesmo criminosos, por exemplo dos anos 30, não são comemorados em estátuas, nomes de ruas e praças, outros há em que figuras do passado mais remoto são honradas em panteões, monumentos e designações de vias públicas. A cultura memorialista - também uma questão de patrimônio cultural apresenta inúmeros paradoxos, tanto no Brasil como na Europa.
Relações com a Difusão Cultural
A já clássica História Geral da Civilização Brasileira, sob a direção de Sérgio Buarque de Holanda e colaboração de renomados historiadores, em volume dedicado à época colonial, empresta uma atenção surpreendente a esse episódio da história do Brasil-Colonia, procurando-o tratar com neutralidade e objetividade (Pedro Octávio Carneiro da Cunha, "Política e Administração d 1640 a 1763", História Geral da Civilização Brasileira I: A Época Colonial 2, 4a. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: DIFEL 1977, 9-44, 29 ss.). O problema aqui reside no fato de que a principal fonte para esse pormenorizado estudo foi aquela escrita pelo próprio líder dessa aventura.
Suas memórias foram editadas por Beauchamps (Paris 1740, 4 volumes; Londres 1742; Amsterdam 1748). Com base nessas memórias, La Landelle escreveu uma Vie de Duguay-Trouin (2a. ed. Paris 1876), J. Poulain um Duguay-Trouin (1882), sucedida por uma biografia no fim do século (Philipp, Paris, em 1892. A vida no auto-enfoque de Duguay-Trouin foi difundida no século XX sobretudo pela edição de Henri Malo, Vie de Mr. Duguay-Trouin, écrite de sa main.. (Bossard, Paris, 1922).
Sobre o personagem: René Duguay-Trouin (1673 - 1736). Um esboço
Os dados sobre René Duguay-Trouin obtidos da literatura não são totalmente coerentes e não deixam de levantar questões, de modo que um esboço de sua vida e ações apenas pode ser altamente deficiente. A intenção aqui apenas pode ser a de dar traçar um quadro geral do contexto onde estudos mais pormenorizados deveriam ser efetuados. René Duguay-Trouin proveio de família de armadores enriquecida pelo comércio proporcionado pela navegação nas cidades portuárias da Normândia e Bretanha. Era conhecida em meios da marinha mercante da sua região natal. O seu futuro deveria ter sido o do sacerdócio. Recebeu, para isso, formação cuidada, realizando estudos em Rennes e em Caen. A sua personalidade, espírito aventureiro e o seu estilo de vida impossibilitaram porém o prosseguimento de seus estudos. Com a permissão de seus pais, embarcou, em 1689, como marinheiro. Participou da guerra de sucessão do Palatinato no ataque a navios inglêses holandeses. Em 1691, a sua família possibilitou-lhe o comando de uma fragata bem equipada militarmente. Atirado por uma tempestade às costas da Irlanda, próximo a Limerick, realizou ali proezas, incendiando dois navios. Na traversia da Mancha fêz também vários aprisionamentos. Em 1694, próximo a Sorlingues, encontrou-se em meio a 6 naves inglêsas. Em situação desigual de combate, em longas horas de luta, foi ferido e teve de render-se. Levado cativo a Plymouth, deveu a sua liberdade a uma jovem.
Após o seu retorno, as suas façanhas chegaram aos ouvidos de Louis XIV, que o levou a entrar na marinha real. Continuou aqui, em parte sob ordens de Nesmond, a capturar navios inimigos. Assim, em 1696, venceu e aprisionou o admiral holandês Wassenaer. Em 1697, foi nomeado Capitão de fragata da frota real. Na costa sul de Spitzbergen acossou, roubou e incendiou mais de 30 baleeiros. Durante a guerra de sucessão na Espanha, assolou as costas desse país, assim como dos Países Baixos e da Inglaterra. Em 1703, assolou 40 navios holandeses. Em 1704, tomou um vaso de guerra de 54 canhões e 12 navios mercantís do ártico nas costas da Grã-Bretanha.
Em 1706, como capitão de uma nave, atacou uma flota brasileira à altura de Lisboa, composta de 3 naves, repleta de víveres e de munições para o Arquiduque. Essa flota escortava 10 vasos de guerra. Após dois dias de luta foi derrotado, uma primeira e grande experiência negativa na vida de Duguay-Trouin e que parece explicar em parte a compensação oferecida pela sua façanha posterior no Rio de Janeiro. Após ter-se recuperado, apossou-se de uma uma grande esquadra com 6 vasos de guerra, prejudicando na Espanha os negócios do Arquiduque. Em 1707, conquistou 60 naves de transporte e 4 vasos de guerra que os acompanhavam. Foi elevado a cavaleiro da Ordem de S. Luis. Em 1709, diz-se ter assolado ca. de 300 (!) navios mercantes e 20 naves de guerra ou de corsários.
Tomada do Rio de Janeiro
A maior das proezas de Duguay-Trouin foi a tomada do Rio de Janeiro, em 1711. Foi a mais espetacular, pois a cidade era bem fortalecida na entrada da baía, sendo considerada inexpugnável. Além das perspectivas de lucro, a mola principal teria sido a da honra que Duguay-Trouin poderia adquirir com um empreendimento tão difícil. A viagem foi possibilitada econômicamente por acionistas, entre- os quais o Conde de Toulouse. Foi preaprada em Brest. Apesar do segrêdo, tornou-se conhecida em Lisboa, que teria mandado aviso ao Brasil para que se preparasse. Portugal teria tentado por obstáculos ao empreendimento, pedindo à Inglaterra que enviasse navios de combate a Brest. Duguay-Trouin passou a La Rochelle, de onde partiu para o Rio de Janeiro, a 9 de junho. Um navio inglês veio ao Rio de Janeiro a pedido de Portugal, aqui chegando a 30 de agosto. A cidade esta assim preparada, fortificada na cidade baixa e armada nos altos dos morros. Cinco batalhões armados haviam chegado e sete navios foram estacionados entre Santa Cruz a Boa Viagem. As circunstâncias na chegada dos navios franceses surgem nos esboços históricos como misteriosas ou infelizes. Gaspar da Costa, doente mental, mandou incendiar naus portuguesas encalhadas, e a pólvora em Villegaignon queimou-se acidentalmente, com muitas mortes. Duguay-Trouin tomou a Ilha do Pina para a proteção do desembarque. Ocuparam o Saco de São Diogo e os morros de São Diogo, Livramento e Conceição. Um normando, a serviço da marinha portuguêsa, conseguiu tirar informações de franceses aprisionados. O ataque, com 17 navios, 700 canhões, ca. de 6000 homens, durou 11 dias. Forçou a cidade a pagar 100.000 libras em ouro ou 610.000 Cruzados para a sua saída e a libertar 1000 prisioneiros franceses. Alegava que estavam sofrendo mal-tratos. O governador, Castro Morais, garantia que estavam sendo tratados segundo as leis de guerra, apesar de serem piratas. Saqueando a cidade, do levaram do Convento de Santo Antonio dois milhões de cruzados. No ajuste de capitulação, levaram 610.000 cruzados, cem caixas de açúcar, duzentos bois, 110 contos da Casa da Moeda, 67 contos dos cofres da Fazenta, além da daqueles da Companhia de Jesus. Roubaram 60 navios mercantes, 3 navios de guerra e 2 fragatas. Tomada a posse da cidade, os esboços históricos atestam um bom comportamento dos franceses. Logo chegaram comerciantes e um cônsul. Partiram depois de um mês e meio.O governador, Francisco de Castro Morais, seria posteriormente condenado a prisão perpétua na Índia. Outros envolvidos na capitulação também foram condenados. Após esse feito, o renome de Duguay-Trouin esteve definitivamente assegurado. Foi nomeado chefe de esquadra, em 1715, membro do Conselho das Índias, em 1723, tenente-geral em 1728 e comendador da Ordem de São Luís. Pelo Duque de Orléans foi chamado a fazer parte do Conselho de Estado. Em 1731, foi encarregado pelo rei do comando de uma esquadra destinada a defender os interesses comerciais de francêses no Levante. Somente enfermidades o levaram a afastar-se dessa vida de aventuras. Foi enterrado na igreja de São Roque e, em 1973, transportados para a catedral de São Vicente, em Saint-Malo.
Memória de Duguay em Saint-Malo
Na sua cidade natal, Duguay-Trouin tornou-se festejado herói. Sobretudo a sua proeza no Rio de Janeiro calou fundo na imagem popular. Foi decantada em canções que se tornaram tradicionais. Ainda em meados do século XIX eram relembradas. Nessa época, um canto tradicional que as memorava era entoado para crianças pelas mães de Saint-Malo. Passavam, assim, a história heróica da cidade às novas gerações. A pirataria surge quase que um elemento da identidade cultural. O estudioso de tradições da Bretanha, Paul Sébillot, no seu Folclore da França (IV, 374) anotou dela alguns versos em fins do século XIX. Ela supunha que teria sido corrente em Saint-Malot na sua versão já tradicionalizada ao redor de 1845. Nesses versos, faz-se referência à nave Achille de Duguay-Trouin.
Monsieur Duguay z'a t envoyé Un tambour de l'Achille Pour demander à ces braves guerriers S'ils veulent capituler. Les dames du château S'ont mis à la fenêtre:
Monsieur Duguay, apaisez vos canons, Avec vous je composerons
Outros versos, alguns deles variantes, teriam sido recolhidos por outro pesquisador (Loudéac) (Paul Sébillot. Légendes locales II, 142-143)
(...)
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).