Doc. N° 2370
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
115 - 2008/5
Itália-Brasil
Quartetto Italiano 1968 na História Contemporânea das Relações Interculturais Questões de difusão cultural refletida
pelos 40 anos de fundação da Sociedade Nova Difusão entidade constituidora da Organização Brasil-Europa
Trabalhos da A.B.E. 2008
Uma das preocupações concernentes a questões de difusão musical em São Paulo de fins da década de 60 dizia respeito à música de câmara. Discutia-se já há anos a necessidade de um maior fomento da prática camerística e, sobretudo, de uma renovação do público das salas de concerto. Essa discussão vinculava-se com aquela da necessária reforma do ensino musical, uma vez que os conservatórios formavam sobretudo pianistas e, em menor escala, cantores e executantes de outros instrumentos. A formação de instrumentistas de corda e de sôpro surgia como de prioridade para a intensificação da prática orquestral e camerística. Esses anseios levaram à constituição de grupos em diferentes formações, sobretudo em círculos de alunos de professores de instrumentos de corda. A participação de estrangeiros radicados no Brasil no fomento da prática de música de câmara era relevante, um fato que também já era conhecido do passado, dos anos 20 e 30. Assim, cidades com forte presença de imigrantes de determinadas nacionalidades tornaram-se também os principais centros da revitalização da prática camerística. Em São Paulo, além de círculos alemães e austríacos, cumpre salientar a relevância de instituições italianas e ítalo-brasileiras, entre elas a do Auditório Itália com a sua série "A Grande Música de Câmara". Sob o ponto de vista teórico-cultural, porém, a preocupação daqueles que discutiam a necessidade de uma Nova Difusão, consciente e participativa, associada a reflexões sobre o próprio sentido da prática camerística, dizia sobretudo respeito ao repertório a ser divulgado, o público a ser atingido e as conotações sócio-culturais que se vinculavam com essa prática. A visita de conjuntos de câmara do Exterior ofereciam a oportunidade para a discussão dessas questões sob uma perspectiva comparada de situações e de tendências.
Quartetto Italiano e o Brasil
Um dos pontos altos da presença da música de câmara européia no Brasil na segunda metade dos anos sessenta foi a apresentação do Quartetto Italiano em São Paulo, como 10° e último concerto da temporada da Sociedade de Cultura Artística. Tratava-se de um dos mais renomados quartetos de cordas do mundo. O programa constou do Quarteto KV421 em ré menor de Mozart, do Quarteto op. 51 n.1 em do menor de Brahms e do Quarteto de Ravel. O Quartetto Italiano estava estreitamente vinculado com a história recente da música no Brasil, pois tinha sido êle que apresentara, em 1947, na Accademia Filarmonia Romana, em primeira audição mundial, o Quarteto n°9 de Heitor Villa-Lobos. O programa do concerto salientava a distinção pública que o Quarteto recebera do Presidente da Itália em reconhecimento a seus méritos adquiridos durante muitos anos. Além dos aspectos propriamente musicais, o interesse que despertava o Quartetto italiano sob a perspectiva teórico-cultural residia no fato de ter-se originado de um grupo de jovens que se conheceram durante um concurso musical (Concorso Nazionale di La Spezia), em 1940, e desde então teriam renunciado à carreira de solistas para, com entusiasmo juvenil, consagrarem-se inteiramente à música de câmara. Assim, o Quartetto Italiano surgia como um exemplo que poderia ser seguido no Brasil, pois uma das questões que se levantavam era a de que o ensino instrumental tradicional estava unilateralmente dirigido à formação de solistas. Como nem todos os instrumentistas alcançavam essa meta, devendo atuar profissionalmente como músicos de orquestra, tinha-se um generalizado problema de forças mal encaminhadas e carreiras interrompidas, com todas as conseqüências resultantes das decepções e frustrações pessoais. A valorização da prática camerística correlava assim com uma mudança de finalidades do ensino. Correspondia também a uma mudança de espírito, do individualismo e mesmo de um egocentrismo freqüentemente criticados à prática em grupo, não na anonimidade do músico de orquestra, mas na co-atuação consciente em conjunto, onde cada voz possui responsabilidade e relevância fundamentais para o Todo. Evidentemente, a prática camerística surgia assim até mesmo como metáfora de formas de ação social e política.
Ponte: anos de fim da Segunda Guerra e 1968
Paolo Borciani, Elisa Pegreffi e Franco Rossi, que se conheceram no concurso citado, em 1940, reencontraram-se no verão de 1942 na Accademia Musicale Chigiana, onde Arturo Bonucci, titular da classe de música de câmara, os colocaram em contacto com o violista Lionello Forzanti. Prepararam o quarteto de Debussy, executado a 9 de setembro. Como Nuovo Quartetto Italiano, as suas atuações tiveram início a 20 de agosto de 1945 na casa de Paolo Borciani, em Reggio Emilia, com obras de Beethoven, Stravinsky, Corelli e Debussy. No mesmo ano, a 12 de novembro de 1945, deram o primeiro concerto em Carpi, para a Società degli Amici della Musica. Dois dias depois, em Reggio Emilia, apresentaram-se para a Organização Juvenil Italiana. Nesse mesmo ano, a 13 de dezembro, em concerto em Milão, constataram então a necessidade do Quartetto como exigência do momento na sociedade de fim da Guerra. Após vencer concursos em Roma, na Accademia di S. Cecilia, e na Accademia Filarmonia, em 1946, o quarteto dedicou-se a uma intensa vida de concertos, entre êles para a Società del Quartetto em Milão e na Tonhalle de Zurique. A partir de 1947, Lionello Forzanti foi substituído pelo violista Piero Farulli, que então passou a tomar parte no quarteto que se manteve surpreendentemente constante na sua constituição através dos anos. Assim, no programa do concerto de São Paulo, salientava-se: "O fato dos quatro músicos nunca se terem separado é um caso raro de unidade de espírito e um exemplo quase único na história dos quartetos." Nesse anos, já com reputação estabelecida na Itália, o conjunto deu continuidade à atuação internacional iniciada na Suíça: Áustria, Inglaterra, sobressaindo-se o Festival Internacional de Música Contemporânea de Veneza e as semanas de música de Engadin. O número de concertos nos anos seguintes documenta uma atividade internacional impressionante. Só em 1948 realizaram 63 concertos em diferentes países europeus, em 1949 acima de 100, o mesmo em 1950. Nesse ano, o Quartetto teve a sua primeira grande experiência fora da Europa, no Egito. Em 1951, o Quartetto deu início a suas apresentações no continente americano. A abertura deu-se com um concerto em New York, altamente elogiado pela crítica. Só em 1953, realizaram 59 concertos nos USA e no Canada.
Uma decisão importante para o desenvolvimento do Quartetto foi tomada em 1957, A partir de então, passaram a não mais tocar de memória. Com isso, tiveram a oportunidade de ampliar o repertório. Também aqui o Quartetto ofereceu impulsos à prática de música de câmara no Brasil, legitimando, com a sua autoridade, a possibilidade de execuções apoiadas pela leitura.
Síntese de culturas de execução e interpretação
Além de uma técnica elaborada individual e de conjunto, de respeito rigoroso da notação musical, o quarteto era louvado pelo fato de fundir as vozes "à italiana" e por uma concepção profunda, antes característica do pensamento alemão. Surgia, assim, como um exemplo de integração, de síntese de duas culturas. Nas condições da vida musical de São Paulo, em 1968, correspondia assim à cultura cameristica tanto dos círculos alemães como a dos italianos e seus descendentes e discípulos.
Entretanto, sob a perspectiva histórico-cultural, surge como particularmente relevante a inserção do Quartetto Italiano num desenvolvimento europeu de fins da Segunda Grande Guerra e os elos dali derivados para a situação de 1968. Assim como na música sinfônica, a tragédia européia representada pela Guerra e a fase de reconstrução pós-guerra criaram uma situação de extraordinária procura pela cultura musical, o que tem sido elucidado sob diferentes aspectos. A música de câmara, nas suas características intimistas e exigentes de alta compenetração, ofereceu, no seu recrudescimento experimentado na época, possibilidades para reflexões e análises. Esse elo com a situação social e cultural iniciada com o término da Guerra, porém, colocou essa prática em estreito relacionamento com uma sociedade que passava a ser criticada pelos espíritos de renovação jovem de fins da década de 60. A análise dos pressupostos dos movimentos renovadores de 1968, tendo já salientado o fator do arrefecimento do desenvolvimento econômico iniciado após a Guerra como uma das causas elucidativas dos ímpetos críticos da época, poderia encontrar, na história da prática camerística, um significativo campo de estudos.
Grupo redatorial dir. A.A.Bispo
Nova Difusão. 40 anos de fundação: 1968-2008
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).