Doc. N° 2368
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
115 - 2008/5
Bretanha-Brasil
Questões de Difusão: mare clausum/mare liberum Em torno de Ana da Bretanha - Rainha da França à época do Tratado de Tordesillas
Morlaix e Le Folgoet. Trabalhos da A.B.E., 2008
A.A.Bispo
Morlaix. 1-2-3-5: Casa de Ana da Bretanha Trabalhos da A.B.E. 2008. Fotos H. Hülskath O estudo histórico-cultural das relações euro-brasileiras exige a consideração das bases político-culturais e legais que determinaram diferenças entre os processos de difusão cultural dos países europeus com o Novo Mundo. Através do Tratado de Tordesillas, Portugal e Espanha possuiram uma posição privilegiada na constituição de esferas de ação e posse, fundamentada na autoridade pontifícia. Essa não era a situação de outros países europeus que, para a garantia de suas pretensões, necessitaram criar outras bases para a sua ação. Essa situação determinaria processos histórico-culturais dos séculos seguintes.
Mundo português e França
O historiador português Joaquim Veríssimo Serrão, na sua obra Portugal no mundo (Portugal en el mundo: Un itinerario de dimensión universal, Madrid: Mapfre, 1992, pág. 160) salienta a fraqueza dos laços diplomáticos entre Portugal e França no século XVI, elucidando-a a partir da opção da coroa portuguesa pela aliança com a Espanha. A França não poderia constituir um parceiro privilegiado de D. Manuel I° e, menos ainda, de D. João III. Enquanto Portugal, no período anterior a 1521 levava à frente as suas ações no mundo extra-europeu, sobretudo no Oriente, a França se preocupava com questões internas da Europa, tais como problemas de expansão na Itália e com ameaças representadas pela Áustria. Assim, segundo o historioador, a França teria contado pouco ou nada no quadro da diplomacia portuguesa à época do Descobrimento do Brasil. Os laços exteriores seriam antes determinados por tratados com a Inglaterra e com Flandres (op.cit. 160). A partir de 1520, teria havido segundo o historiador uma certa aproximação política, esta, porém, teria sido mais em defesa da navegação portuguesa no Atlântico do que em busca de uma aliança. Os grandes problemas das duas nações, entre 1520 e 1550, seria aquele provocado pela ação de corsários franceses na costa atlântica e no Brasil. (op.cit. 161)
Se as relações com a França não foram relevantes à esfera diplomática, o mesmo não pode ser dito no concernente aos vínculos inoficiais, comerciais. Como Joaquim Veríssimo Serrão salienta, houve estreitas relações comerciais de Lisboa, do Porto e de outros centros marítimos portugueses com portos do sudoeste francês, do Languedoc, da Provence e, sobretudo, da Normândia (Honfleur, Rouen, Dieppe) (op.cit. 161). Essas relações eram de remota data. Já em 1290 havia portugueses em Honfleur, chegando a receber privilégios comerciais por parte de Felipe o Belo. A partir do reinado de D. Diniz, esse comércio intensificou-se com os apoios dados à navegação mercante (op.cit. 53). Sob esse pano de fundo, a referência à presença de um navegante de Honfleur em várias partes Brasil, Paulmier de Gonneville, sugere a necessidade de considerações mais aprofundadas das tensões constatadas nas relações entre Portugal e a França. S egundo Veríssimo Serrão, Francisco I°, não dispondo de meios para competir com Portugal na esfera marítima, ter-se-ia decidido a agir contra os seus interesses em zonas neurálgicas, por meio da guerra naval. A partir de ca. de 1510, navegadores de Dieppe e outros portos da Normândia passaram a atacar com mais intensidade navios de Portugal. Em 1510, João da Silveira foi enviado a Luís XII para alcançar medidas contra os ataques e solicitar retratações, sem maiores resultados. Em 1522, enviou-se uma nova embaixada extraordinária com a finalidade de conseguir a restituição de bens que armadores franceses tinham capturado de portugueses. João da Silveira permaneceu na França até 1530. Paralelamente, estabeleceu-se em Portugal o mercador francês, Honoré de Caix, mais tarde cônsul e embaixador (op.cit. 162). As animosidades no mar não são explicáveis sem a consideração da história do livre comércio e de concepções diversas da legitimidade nas relações com outros povos e do estabelecimento de esferas de influência e poder. Entretanto, o estudo dessa história inoficial necessitaria ser mais aprofundado. Como Veríssimo Serrão salienta na bibliografia portuguesa uma obra de conjunto sobre as relações comerciais entre Portugal e França no século XVI (Portugal en el mundo: Un itinerario de dimensión universal, Madrid: Mapfre, 1992, pág. 160, nota 45).
mare clausum e mare liberum
Uma causa da fundamental discordância entre a França e o mundo ibérico era o Tratado de Tordesillas. A França não reconhecia a divisão do mundo legitimada pelo Pontífice, tornando-se a principal nação européia a defender a liberdade dos mares. Tratava-se de uma questão de diferentes concepções de legitimidade: para a França, a posse ou o estabelecimento de esferas de influência se justificaria ou através de relações comerciais com os habitantes de outras regiões do mundo, ou seja, pelo caminho pacífico, ou pelo domínio militar, ou seja, através da força, sempre, porém, por razões de fato.
Política interna na França: integração da Bretanha
A Bretanha já era um reino em fins do século V, pelo menos na região de Cornouaille, na Finistère. Sob Carlos Magno, a partir de 799, foi incorporada à França. Tornou-se ducado independente, em 845, e, posteriormente, novamente reino (851). Em 952, o último rei bretão morreu, sendo o país governado por vários duques. A região foi dividida, situando-se entre as esferas de poder da Inglaterra e da França. No século XIV, nas guerras de sucessão , o domínio dos duques foi reconhecido pelo rei francês. Em 1488, porém, o duque da Bretanha sublevou-se contra a França. Vencido, teve de comprometer-se que a sua filha, Ana, não seria dada em casamento sem a permissão do rei francês. Em 1489, após a morte do duque, Ana, com 12 anos, tornou-se Duquesa da Bretanha.
Morlaix, principal porto da Baixa Bretanha
A cidade, a poucos quilômetros da costa, na confluência dos rios Jarlot e Queffleuth, foi, no século XV, um dos principais centros mercantís da costa-norte da Bretanha. Possuía o monopólio da venda de linho que era tecido na região. A cidade tornou-se o principal porto comercial da Baixa-Bretanha, concorrendo com Saint-Malo. Expressão do poderio econômico da época e da cultura profundamente religiosa da região é a igreja Saint Mélaine (1489), uma igreja do gótico tardio com três naves, renomada pelo teto de madeira em forma de navio que cobre o seu interior. Com o desenvolvimento docomércio, a cidade vivenciou um período de apogeu. Nobres rurais que se encontravam empobrecidos conseguiram recuperar as suas finanças e mudaram-se para a cidade, contribuindo para que nela surgissem casas de maiores dimensões, as "casas de lanterna". Essas casas se caracterizam por ter no interior um pátio como uma escada que une os vários andares, sendo o pátio interno iluminado por uma clarabóia. Os vários comodos dos respectivos andares são unidos por uma galeria (ponts d'allées = Maison à Pondalez). Uma dessas casas é a Maison de Reine Anne, situada acima da praça do mercado, um monumento da arquitetura de estrutura de madeira com os seus três andares e as decorações de sua fachada. Consta que a rainha Ana pernoitou nessa casa por ocasião de uma peregrinação a Le Folgoet.
Ana de Bretanha: Personalidade européia
Ana de Bretanha é dos vultos femininos mais destacados da história política européia. Soberana de várias regiões da Europa à época das grandes navegações e do Descobrimento do Brasil, foi também um grande vulto da vida literária e artística da Corte francesa. De herdeira do Ducado da Bretanha tornar-se-ia rainha da França, concretizando assim a integração da Bretanha à França. O Descobrimento do Brasil, assim, ocorreu em período decisivo para a história da Bretanha e para a integração francesa.
Nasceu em Nantes, a 25 de janeiro de 1477 e morreu em Blois, a 9 de janeiro de 1514. Era filha de Francisco II, último duque da Bretanha, e de Marguerite de Foix. Em 1490, foi dada em casamento ao Arquiduque da Áustria, um Habsburgo, posteriormente Imperador Maximiliano I; as núpcias foram realizadas sem a presença do imperador. Tornou-se, assim, embora por pouco tempo, Arquiduquesa da Áustria. Esse fato fêz com que o rei da França, Carlos VIII, invadisse a Bretanha, levando à anulação do casamento ainda não consumado. Ana foi obrigada a com êle casar-se. Assim, tornou-se Rainha da França (Saint-Denis, 8 de fevereiro 1492). A incorporação da Bretanha através essa política matrimonial tem sido comparada no seu significado com a conquista de Granada pela Espanha. Ambos as nações teriam alcançado uma unificação dentro de fronteiras que configurariam por séculos as respectivas nações. Tornou-se rainha da Sicília e de Jerusalém com a conquista de Nápoles. Quando o seu marido morreu, em 1498, Ana foi obrigada a casar-se com o novo rei francês, Luís XII. Isso o fêz sob a condição de que a Bretanha se tornasse um Ducado com certa soberania. Esse casamento levou à união da Bretanha com a França, pois a sua filha Cláudia, nascida desse casamento, tornar-se-ia mulher de Francisco I e, assim, rainha da França. Com esse casamento, Ana continuou sendo Rainha da França, além de ser soberana de regiões italianas, da Sicília, da Apúlia, da Calábria e de Nápolis, além de rainha de Jerusalém e duquesa de Milão. Com a sua morte, em 1514, a Bretanha permaneceu um Ducado até 1532, tornando-se então província autônoma da França. Luís XII, Duque de Orléans, primo do falecido Carlos, marido de Ana, era de constituição doentia, mas bem quisto pelo povo e na Corte. Para casar-se com Ana, Luís fêz que se anulasse o seu casamento com Joana, filha de Luís XI. Como neto de Valentina Visconti de Milão, Luís resolveu anexar esse ducado a seus domínios. Esse intuito veio de encontro aos interesses de Veneza, da Suíça e dos Borgias, de modo que, a partir de agosto de 1499, Milão já se encontrava na sua posse. Entretanto, assim que retornou à França, Ludovico Sforza conquistou novamente Milão, em janeiro de 1500. Apenas em abril de 1500 - ou seja, quando o Brasil estava sendo descoberto - é que Luís conseguiu retomar Milão. Tentado a prosseguir com os seus empreendimentos até Nápoles - supõe-se aqui a influência do seu principal conselheiro, o Arcebispo de Rouen, George D'Amboise, pode garantir essa posse apenas através do Contrato de Granada, de 11 de novembro de 1500, pelo qual Luís se comprometou a dividir a planejada conquista com Ferdinando de Aragonia. Com a anuência papal, Luís entrou em Nápoles, em julho de 1501. Entre francêses e espanhóis logo surgiram animosidades. Os franceses capitularam em 1 de janeiro de 1504 perante Gonzalo de Córdoba.
O Papa Júlio II usou de Luís na Liga de Cambrai contra Veneza. A seguir, mudando de partido, formou a Santa Liga, em 1511, contra Luís. Já em 1512 tornava-se evidente que a política do rei francês na Itália falira. Luís também foi atacado pelos ingleses. Henrique VIII fêz com que um exército francês debandasse em Guinegate, em agosto de 1513. Após a morte de Ana de Bretanha, Luís casou-se em terceiras núpcias com Maria Tudor, irmã de Henrique VIII, falecendo logo após, em 1515. Os funerais de Ana duraram 40 dias, tornando-se modêlo de futuras exéquias reais. O seu coração foi depositado em relicário de puro ouro, conservado na catedral de Nantes. Em 1792, foi esvaziado por ordem da Convenção Nacional. (S. Harrison Thomnson. Das Zeitalter der Renaissance (Europe in Renaissance and Reformation, New York: Harcourt, Brace& World/München 1977, 1983, 328, 331 f.).
Ana da Bretanha e a Religião
"Pequena, magra, de busto chato, mancando, com um nariz em forma de batata e com uma boca demasiadamente grande numa face oval gótica, era tão voluntariosa, matreira e ambiciosa como uma bretã pode ser. Em atos oficiais surgia majestáticamente com brocado de ouro e jóias. Senão, prefiria o negro simples, amava porém as artes e a literatura. A obra mestre de Jean Bourdichon, Les Heures d'Anne de Bretagne surgiu sob sua encomenda. Sem jamais ter esquecido a sua pátria amada, escondia o seu orgulho sob discreção modesta, costurava muito e procurava dar mais disciplina a seu esposo e à sua corte.(...)". (Will Durant. Kulturgeschichte der Menschheit/The Story of Civilization. the Reformation, 1957/ XVII, Von Wiclif zu Luther, Lausanne: Rencontre s/d, pág.169).
Ana de Bretanha permanece viva na história cultural sobretudo através do seu Livro de Horas, um dos mais significativos monumentos da arte da iluminura européia, apenas comparável às Horas do Duque de Berry (Heures d'Anne de Bretagne, Paris, BnF, Département des manuscrits, Latin 9474 f° 8; Le livre d'heures de la reine Anne de Bretagne, Ed. L. Curmer, 1861; Le livre d'heures d'Anne de Bretagne, ed. Jean de Bonnot, 1979). Foi realizado sob encomenda, entre 1503 e 1508. Os seus artistas foram Jehan Bourdichon e Jehan Poyet. Além do seu significado para a história da arte, essa obra, com ca. de 476 páginas, em latim, com 49 iluminares de página inteira e 337 marginais, é de particular interesse para estudos culturais. Os textos das Horas são acompanhados de imagens da natureza, em particular de plantas e flores, de insetos, borboletas, libélulas, abelhas, grilos e de animais (serpentes, tartarugas, macados, entre outros), que não apenas permitem estudos históricos sobre a flora da época, mas sim também da linguagem simbólico-religiosa. Uma particular menção deve ser feita a um símbolo que surge como de importância para os estudos das tradições culturais, também no Brasil: a árvore de maio. Ao pé de uma árvore ornada de frutos, dois jovens, gêmeos, vestidos de verde, se movimentam, dando-se as mãos.
Uma consideração cultural dessa obra necessita partir de uma perspectiva hermenêutica adequada. Um dos fatores da análise é fornecido pelo próprio nome de Ana de Bretanha. Assim, o nome de Santa Ana surge inscrito no calendário das Horas em duas datas: a de 30 de janeiro, em vermelho, e a 26 de julho, em ouro. Também surge em ladainhas e em orações votivas. O relacionamento tipológico-antitipológico entre o Novo e o Velo Testamento determina a representação das imagens. Além desse tipo de relacionamento de imagem e conteúdo, salienta-se também a presença de alegorias, entre elas da Justiça, da Força, da Prudência, da Caridade, da Fé e da Esperança.
Ana, que dominava várias línguas, entre elas o latim, o grego e, em parte, o hebraico, entrou na história da cultura como grande protetora das artes e da música. Famosas são as tapeçarias por ela comissionadas, entre elas as chamadas do unicórnio, realizados por ocasião do seu casamento com Luís XII. Adquiriu numerosos manuscritos e subvencionou poetas e artistas. A sua biblioteca particular possuia mais de 3000 volumes, na sua maior parte de proveniência italiana. Um livro de orações de Ana de Bretanha, para ela e seu filho, feito entre 1492 e 1495, em Tours, hoje na Pierpont Morgan Library, em New York, apresenta 34 miniaturas, obra de Jean Poyet. Tem-se apontado, nessa obra, a importância que, para Ana, tinha a religião na vida quotidiana e o seu intento de transmiti-la a seu filho. Tal como Santa Ana, Ana de Bretanha surge aqui coma a mestra.
Le Folgoet: Virgem Negra
Um dos principais centros de peregrinação à época da Rainha Ana da Bretanha era Le Folgoet. Até hoje é um dos principais centros marianos da Finistère e um dos vários centros de veneração de uma imagem negra da Virgem, em pedra de Kersanton (Veja texto no número 114 desta revista). Um estudo cultural das concepções religiosas e das tradições que se prendem a Folgoet contribui para a compreensão do universo religioso-cultural da época e da própria espiritualidade de Ana. A igreja é considerada um dos principais monumentos arquitetônicos e esculturais da Bretanha,com as suas galerias e balustradas, com a sua ornamentação vegetal, sua fonte e figuras de monstros nas bôcas de calhas, salientando-se o portal dos apóstolos e a Jube, uma tribuna que separa a nave do coro. Essa Jube (de Jube, Domine, Benedicere), de cinco metros de altura e 6,50 metros de largura, é um dos exemplares mais significativos do gênero da França. Foi, no passado, coroada com imagens de Maria, de Cristo e de São João.
Três Reis Magos
Um dos motivos mais significativos da igreja de Le Folgoet é o tímpano sobre a porta de entrada, portador de um baixo-relêvo representando a Adoração dos Três Magos do Oriente, perante Maria, singularmente em posição deitada, e a criança. Constata-se aqui a perspectiva antropológico-cristã no qual se insere inicialmente a veneração mariana nessa Basílica. Trata-se da vinda dos magos de diferentes regiões da terra para adorar a Sabedoria divina encarnada na humanidade carnal, representação simbólica trina do Homem quanto a espírito, alma e corpo que recupera, com essa adoração do Logos, a dignidade perdida do primeiro homem, de Adão expulso do Paraíso. Esse paralelo entre a dignidade perdida do primeiro homem e aquela que os magos a recuperarão - retornarão "reis" - corresponde também a concepções simbólico-etnológicas e missionárias: são as nações longínquas que vêem à adoração da Sabedoria perene. (...)
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).