Doc. N° 2367
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
115 - 2008/5
Bretanha-Brasil
Difusão cultural e Apologética em contextos euro-brasileiros H.-F. R. de Lamennais - Dieu et Liberté
Abbaye de Beauport e Saint-Malo. Trabalhos da A.B.E. 2008
A.A.Bispo
Abbaye de Beauport, Bretanha. Trabalhos da A.B.E. 2008. Foto A.A.Bispo As ruínas da Abbaye de Beauport, na Bretanha, restos de um convento premonstratense do século XIII, abandonado desde a Revolução Francesa, hoje museu, local decantado pela atmosfera romântica que irradia, surge como particularmente sugestivo para reflexões concernentes às relações entre a história cultural e a história da religião no período pós-revolucionário, restaurativo do século XIX. Perante as ruínas evocativas de um passado medieval, que surge como transfigurado em visão nostálgica, compreende-se empaticamente estados de espírito que, na situação sentida como ruinosa deixada pela Revolução e pelo subseqüente período napoleônico levaram a anseios de revitalização do Cristianismo e de apologia do Catolicismo. História cultural do Romantismo e história do pensamento católico do século XIX surgem em estreita vinculação. A difusão de expressões culturais européias dessa época em outros contextos e regiões não pode ser analisada sem a consideração do ímpeto apologético a elas inerente. No ciclo de estudos Normândia-Bretanha-Brasil, desenvolvido pela Academia Brasil-Europa, tratou-se, sob diferentes aspectos, dessas questões relacionadas com o Romantismo no período pós-revolucionário francês do século XIX e seus elos com o pensamento católico na história cultural do Brasil. Sobretudo Chateaubriand com o seu Génie du Christianisme marcou um conjunto de tendências de reação ao pensamento do século XVIII, voltadas à defesa da religião e à reconstrução cristã da sociedade. (Veja relato no nr. 114 desta revista) Ao lado dos impulsos dados por uma literatura de autores laicos, não se pode deixar de considerar aquela mais propriamente de cunho teológico de sacerdotes e religiosos. Poder-se-ia dizer que a relação entre a Cultura e a Religião surge aqui sob outro enfoque: não a Religião é vista sob o aspecto da Cultura, mas sim a Cultura sob o da Religião. As duas perspectivas necessitam ser consideradas nos estudos histórico-culturais, sobretudo naqueles de processos de difusão. Há porém dificuldades para a consideração adequada da literatura religiosa propriamente dita. Uma delas reside no fato de que a Homilética, na qual o pensamento teológico mais se difunde, tem a sua ação ampla garantida pelos púlpitos das igrejas, tem, porém, ao mesmo tempo, vida mais breve, raramente permanecendo na história da literatura e da cultura. Sob o ponto de vista da história literária pode ser talvez justificável esse esquecimento, do ponto de vista da história cultural, porém, não o é. A influência do pensamento apologético na formação sacerdotal e de missionários não pode ser subestimado, uma vez que atuaram como multiplicadores e agentes de sua difusão. Correntes e acontecimentos que marcaram desenvolvimentos na história eclesial e até mesmo político-cultural do Brasil do século XIX não podem ser compreendidas sem a consideração da influência do clero e, sobretudo, daqueles seus representantes formados em seminários franceses ou sob a ação da literatura religiosa francesa.
No estudo histórico-cultural do pensamento apologético do século XIX, nas suas relações com a restauração e o romantismo, a atenção é dirigida a nomes hoje em geral esquecidos, tais como Lamennais, Montalembert e o dominicano Lacordaire. Uma consideração especial merece Lamennais, uma vez que as suas obras influenciaram de forma particularmente intensa o pensamento teológico e filosófico de vários países, incluindo o Brasil. Para a Espanha, poder-se-ia lembrar de K. L. Balmes e J. Donoso Corés, para a Itália de V. Gioberti e A. Rosmini. No caso do Brasil, ninguém salientou melhor o significado de Lamennais do que Joaquim Nabuco. Na sua autobiografia, menciona que As Palavras de um Crente, de Lamennais, constituiu nada menos do que um dos evangelhos de sua geração, ao lado da História dos Girondinos, de Lamartine, de o Mundo caminha, de Pelletan, e de os Mártires da Liberdade, de Esquiros. (Joaquim Nabuco, Minha Formação, Prefácio de Carolina Nabuco, Rio de Janeiro/São Paulo/Porto Alegre: Jackson 1952, pág. 12).
O interesse de Lamennais justifica-se também pelo significado que hoje se reconhece na sua obra então combatida pela Igreja, nela até mesmo encontrando-se concepções de um Catolicismo de orientação social que tornar-se-iam condutoras no século XX, sobretudo após o Concílio Vaticano II. Conhecido como ultramontano na sua época, hoje surge até mesmo como um precursor do catolicismo liberal e da doutrina social cristã. À luz dessa reavaliação de Lamennais, as circunstâncias paradoxais de sua vida surgem como particularmente trágicas, até mesmo injustas. A sua reconsideração representaria, aqui, uma questão de justiça histórica. Entretanto, para o historiador da cultura, a paradoxia na história de vida de Lamennais surge como passível de estudos culturais mais amplos, levando à consideração de contextos e de estruturas e processos que possivelmente mantém-se vigentes nos seus mecanismos. Comportamento, atitudes e reações de Lamennais surgem como singularmente conhecidas de outros contextos, indicando aqui a presença de fatores culturais e sócio-culturais que ultrapassam o seu caso individual.
Crer pela força de vontade e militância
A figura trágica de Lamennais lança uma luz significativa na história do pensamento religioso não só do século XIX. Como poucos outros mostra a tentativa de alcance de uma segurança na convicção religiosa pela força de vontade e pela militância. O combate destemido e quase que agressivo a favor da Igreja surge quase como um meio de superação da própria insegurança, por não dizer do próprio desespêro. Pode-se compreender, quão próximo se encontra essa militância da crítica à tolerância, e que surge como sintoma de fraqueza.
Formação cultural bretã de Lamennais
Hugues-Félicité Robert de Lamennais nasceu em Saint-Malo a 19 de junho de 1782. Faleceu em Paris, a 27 de fevereiro de 1854. Seu sobrenome real era Robert e o nome de Lamennais é derivado do local "la Mennais", onde o seu avô possuía uma propriedade.
Tendo sido criado em ambiente marcado pela cultura tradicionalmente católica da Bretanha, vivenciou na sua juventude os anos de crítica e de combate à Igreja da França revolucionária e bonapartista. Entusiasmado pela Natureza do local onde cresceu, o domínio de Chesnaie, perto de Dinan, e pela leitura de Rousseau, teve a sua primeira comunhão adiada pela desconfiança do sacerdote na solidez de sua fé.
O seu irmão Jean-Marie, que era sacerdote, exerceu uma grande influência na sua formação. Com êle ocupou-se do estado da Igreja na França (Réflexions sur l'état de l'Église en France pendant le XVIIIe siècle et sur sa situation actuelle, 1808; Tradition de l'institution des évêques en France, 1814). Em 1809 recebeu a tonsura em Rennes, em 1816 alcançou o sacerdócio em Vannes. Esteve aqui sob a influência do Abbé Carron, um religioso que conhecera na Inglaterra, quando ali estivera fugido quando Napoleão retornara do exílio.
A Imitação de Jesus Cristo, de Thomas a Kempis, que traduziu, foi de significado marcante no seu desenvolvimento. Do ponto de vista histórico-cultural, porém, não se pode deixar de atentar à situação de exílio, de imigração, tantas vezes de significado para processos de conscientização sobre os valores da própria cultura de migrantes. Sob esse aspecto, o polemismo e o direcionamento apologético de Lamennais parece ser particularmente compreensível.
Combate ao indiferentismo
Seguindo o exemplo de F.-R. Chateaubriand, com Le Génie du Christianisme, Lamennais escreveu uma apologia de título Essai sur l'indifférence en matière de religion (1817-1823). Essa sua obra surgiu assim antes de duas outras significativaas da restauração de Bonald (Recherches philosophiques, 1818) e de Joseph de Maistre (Le Pape, 1819). Ao contrário do sugerido acima, onde a militância surge como expressão de insegurança e desespêro, era para Lamennais o indiferentismo, ou seja, uma atitude morna de não-decisão e do "deixar-em-aberto" o real sinal de um desespêro existencial e grave indício da situação moral da sociedade. O ensaio sobre a indiferença em matéria religiosa de Lamennais representa uma crítica à formação religioso-cultural do período napoleônico e do galicanismo francês. Tendo sido uma obra que alcançou considerável difusão, influenciou profundamente o pensamento católico na França e em vários outros países.
Lamennais, que salientava a importância da religião tanto para o indivíduo como para a sociedade, surge como um advogado do reconhecimento da autoridade infalível da Igreja e do Papa. Segundo a sua argumentação, o senso comum e a razão geral incorpora-se na Revelação Divina e no Papa. Elas deveriam ser guias da razão individual. A opinião particular, tendendo à arrogância e à dúvida, deveria curvar-se perante a opinião geral. Lamennais criticava o individualismo, defendendo antes uma atitude de convicção baseada no consentimento de todos.
Ambivalências e paradoxias
Lamennais apresentava-se tanto como cura de almas como guia intelectual. Na sua posição perante a autoridade, porém, apesar de suas afirmações, deixava entrever um singular campo de tensões que poderia ser alvo de análises sob diversos aspectos. Uma problemática que não é desconhecida em círculos eclesiásticos até o presente: o militante tinha problemas com as autoridades mais próximas, com o seu próprio bispo, mantinha distância crítica para com o clero a que pertencia, e orientava-se na sua obediência segundo a autoridade distante, o Pontífice em Roma. Em complexas situações marcadas por fortes emoções tomava posições aparentemente contraditórias. Assim, era não apenas um clerical que se mostrava inimigo do clero, um ultramontano que se mostrava inimigo da hierarquia, como também era um legalista que combatia o Poder de Estado e um realista que tomava partido contrário ao do rei.
Sacerdos in aeternum
Essas posições aparentemente discordantes têm sido explicadas, em parte, pela auto-consciência de Lamennais de seu ministério sacerdotal:
Saint-Malo. Trabalhos da A.B.E. 2008. Fotos A.A.Bispo "Houve dois homens na França que num sentido especial, num sentido poderoso, terrível e isolado mostraram o que era um sacerdote: Saint-Cyran e Lamennais. Lamennais o mostrou à sociedade em 1817, aos bispos em 1826 e ao Papa em 1834. Ele mostrou o que é um sacerdote, que está só, que realizou o corte, um sacerdote sem Igreja - pelo seu exemplo além da sua morte - 'trema', dizia Bossuet, apenas ao ouvir a palavra separação" (Albert Thibaudet, Histoire de la Littérature Française de 1789 à nos jours, Paris: Stock Delamain et boutelleau, 1936; al. Geschichte der Französischen Literatur, 2a. ed. Freiburg/München: Karl Alber 1954, pág. 274)
Cultura do clero e sua formação
A grande preocupação de Lamennais era a da formação de um clero culto, instruído no sentido de ser capaz de responder à altura dos desafios e ataques dos intelectuais. Nesse sentido, procurava tirar da formação do clero a influência do pensamento laico que impregnava o sistema de ensino e as universidades francesas, reorientando segundo a autoridade papal a ser reestabelecida na França. O seu modêlo de pensamento parece ter sido aquele da reforma religiosa do século XVII. Embora não sendo jansenista, possuía uma grande biblioteca jansenista e era um admirador de Saint-Cyran. Para possibilitar a sua obra restauradora, fundou, em 1828, a Congrégation de Saint-Pierre. Uma parte da geração mais jovem do clero francês seguia-no como um líder. Um dos centros religioso-culturais daqueles que compartilhavam com os seus anelos era o domínio La Chesnaie, nas margens da Rance. Ali se formaram Maurice de Guérin, La Morvonnais, Gerbet, Salinis, Lacordaire e Montalembert. Seu irmão, Jean-Marie de la Mennais fundou uma ordem religiosa, os Frères de l'Instruction Chrétienne de Ploërmel.
Religião e ordem política
Da concepção de Lamennais decorria naturalmente a sua relevância para a política. Em 1825, publicou De la religion considérée dans ses rapports avec l'ordre politique et civil. Nesse ano, encontrou-se com Auguste Comte. Lamennais procurou mostrar que a República necessitava de uma base espiritual, de uma religião civil. Promovia uma aliança entre a Igreja e as idéias libertárias, assim como esboçou uma doutrina social. Propôs um projeto de constituição no qual religião e política seriam intrinsecamente vinculadas entre si. Foi amigo de Pierre Lerou e influenciou com as suas idéias socialistas Charles Augustin Sainte-Beuve.
l'Avenir. Relações entre o liberalismo político e a autoridade eclesial
Em 1830, fundou, com Montalembert e Lacordaire, o jornal l'Avenir. O seu moto era "Deus e Liberdade". Nessa publicação, propaga a liberdade de consciência, da imprensa e da religião. Procurava combater o liberalismo com as suas próprias armas, catolizando-o. Politicamente, se sob Carlos X tinha sido da direita, era, agora, sob Luís Felipe, da esquerda.
Em 1831, indignado pela condenação da sublevação da Polonia, se opôs ao papa Gregório XVI, afirmando que o Pontífice defendia mais os interesses dos grandes do que os do povo. O Pontífice surgia, assim inserido nos poderes reacionários Na bula Mirari vos, de 15 de agosto de 1832, o seu periódio l'Avenir foi condenado. Enquanto os seus companheiros Lacordaire e Montalembert se submeteram, o mesmo não aconteceu com Lamennais.
Parole d'un Croyant e a causa polonesa
Em 1834, Lamennais publicou Paroles d'un croyant, uma obra lírica, inspirada no Livre des Pèlerins Polonais de Mickiewicz, uma coleção de versos bíblicos e ataques contra autoridades. Lamentava o desencantamento do mundo e lançava uma apelo à liberdade da Igreja. A partir dessa data, começou a desenvolver tendências socialistas e democráticas. Com essa obra, Lamennais selou a sua ruptura com Roma. A obra foi condenada pelo Papa Gregório XVI na encíclica Singulari nos, de 15 de julho de 1834.
Corte com a Igreja e Republicanismo de salão. Credo no Progresso
Em 1835, sendo abandonado por muitos de seus amigos, foi conduzido por Fleury, Arago e Liszt a Marie d'Agoult e George Sand. No salão desta última, onde se reuniam muitos republicanos, Lamennais, apesar de não aceitar idéias de Georges Sand sob o aspecto da moral, foi, juntamente com Michel de Bourges, o seu mentor no caminho ao socialismo político.
Em 1838, publicou o Livre du peuple, onde surge como uma espécie de precursor do socialismo. Uniu-se em laços de amizade com Louis-Joseph Papineau, do Canadá, quando este visitou a França. Em 1841, após ter criticado o governo real, foi condenado a um ano de prisão.
Entre 1840 e 1846, escreveu Esquisse d'une philosophie, na qual apresenta a sua concepção de um Cristianismo por assim dizer sem Igreja, capaz de arregimentar as massas em direção ao progresso pela caridade. O terceiro volume dessa obra, dedicado à Arte e ao Belo, tem sido considerado como significativo para a história da estética no século XIX. Em 1848, foi eleito deputado à Assembléia constituinte. O alcance da liberdade de ensino é visto, hoje como um dos frutos tardios do l'Avenir. Após o golpe de Estado, retirou-se para a sua propriedade de la Chesnaie, na Bretanha.
Questões de difusão. Deus e Liberdade no discurso brasileiro
Tem-se salientado a influência que o pensamento de Lamennais exerceu na orientação religiosa dos autores do Romantismo, entre êles Victor Hugo (Misérables), Sainte-Beuve, Lamartine, George Sand (Spiridion). Assim como Lamennais, esses escritores ter-se-iam evoluido politicamente em direção da esquerda. A sua influência poderia ser constatada sobretudo no pensamento de um outro bretão, também de formação religiosa: Renan. Assim como Lamennais, também esse autor afastar-se-ia da Igreja (Thibaudet, op. cit. 274-276) (veja artigo sobre Renan e o Brasil no número 114 desta revista). Como a menção acima citada de Joaquim Nabuco sugere, a influência de Lamennais no pensamento religioso de escritores e personalidades da vida pública do Brasil no século XIX parece ter sido de excepcional significado. Assim como Nabuco se afastaria de Renan, ter-se-ia distanciado também de outros "evangelhos" de moda da sua juventude, entre êles de Lamennais. Apenas estudos mais pormenorizados poderão porém demonstrar elos mais profundos.
Péricles Eugênio da Silva Ramos (Do barroco ao modernismo. Estudos de poesia brasileira, 2a. ed. rev. e aum. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1979) chegou até mesmo a intitular um dos ítens de sua obra de "De Lamennais a Franklin Dória - Castro Alves" (pág. 121-125):
"A influência de Félicité Robert de Lamennais (ou La Mennais, 1782-1854) sobre os poetas românticos brasileiros já está nalguns casos não só apontada como até esmiuçada. Sabe-se que o sacerdote francês, com sua teoria desejosa de encaixar o liberalismo democrático na ortodoxia católica, sua crença na tradição inspirada, na razão geral como regra de certeza, seu humanitarismo que sofria com as violentas desigualdades entre os homens e preconizava a justiça social, seu amor a Deus e Liberdade, sua crença no povo e em seus direitos, no progresso e no futuro, foi uma das figuras mais debatidas do catolicismo e das letras religiosas (...). Logo na Minerva Brasiliense, vol. III n° 7, de 15 de fevereiro de 1845, o Hino à Polônia, de La Mennais, foi traduzido da prosa francesa para o verso português por Dutra e Melo." (...) O tema da Polônia oprimida, como não se ignora, motrou-se constante em nossa poesia condoreira.
Viria a seguir Gonçalves Dias, com sua Meditação, "ensaio de estilo bíblico", publicado na revista Guanabara, vol. I, pág. 102 (1850). Nesse documento, que ficou inacabado (...) clama por justiça para o escravo e arrola os males do regime servil (...) Sua fonte de inspiração, segundo Antônio Cândido, terá sido a Voz do Profeta (1836-7), d Alexandre Herculano, ou, diretamente, a fonte comum, as Palavras de um Crete, de Lamennais (...).
Álvares de Azevedo, para citarmos outro grande (...), embora não tenha sido adicto à poesia social, nem por isso deixou de tomar conhecimento de Lamennais e de citá-lo. É ver Idéias íntimas, V: Aquele é Lamennais - o bardo santo, cabeça de profeta, ungido crente (...)" Quanto a Fagundes Varela, o próprio poeta confessou a influência sofrida: foi sob a inspiração das belas páginas bíblicas de Lamennais que ele escreveu O Exilado, Ecos do Cárcere e Aurora. (...)
Não se desconhece que Fagundes Varela influiu sobre Castro Alves; entre outras imagens de Vozes d'América absorvidas e sintetizadas pelo poeta de Espumas Flutuantes está uma de Aurora (...)
Pois bem, anteriormente a Fagundes Varela, um poeta houve que deu à estampa um livro singularizado por alguns pontos, entre os quais o lamennaisianismo. Esse poeta foi Franklin Américo de Meneses Dória (...). "
Metamorfoses ultramontanas e a Questão Religiosa
Sobretudo a sua concepção da liberdade da Igreja com relação ao Estado parece ter preparado a discussão que marcaria, no Brasil, a assim-chamada Questão Religiosa. Embora diferentemente contextualizada, também no Brasil tratou-se da liberdade da Igreja com relação ao Império através de um fortalecimento da autoridade papal e de sua infabilidade, também aqui tratou-se da questão da formação do clero no sentido de instruí-lo para o debate contra os intelectuais, também aqui a liberdade de ensino propagada por círculos do clero se inseriu num desenvolvimento eclesiástico global que levava à reação do início do século. A assim-chamada Questão Religiosa seria assim apenas o ápice de um processo muito mais amplo, cujo vir-a-ser histórico e o seu desenvolvimento apenas podem ser analisados sob a perspectiva das relações euro-brasileiras. Não o Lamennais tardio, precursor de concepções democrático-socialistas que cortou os seus elos com a Igreja e tornou-se Deísta, sugerindo até mesmo que se falasse de Cristianismo, não de Catolicismo, mas o Lamennais anterior ao corte com Roma é que parece indicar os caminhos para um entendimento mais profundo dos acontecimentos no Brasil. Esse enfoque amplo traz à consciência a existência de desenvolvimentos paradoxais na história do pensamento, nos quais conceitos conotados como progressistas - liberdade da Igreja, liberdade de ensino, República - surgem na realidade vinculados com a Reação. No seu estudo sobre os conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil, Nilo Pereira salienta a "epopéia religiosa da Igreja no século XIX", da qual uma das testemunhas no Brasil foi Dom Vital Maria de Oliveira, Bispo de Olinda, assim como Dom Macedo Costa, no Pará. Tratando mais especificamente de Dom Vital, Nilo Pereira traça um quadro que muito se assemelha ao do início da vida de Lamennais. Também êle veio de um ambiente provinciano, profundamente impregnado da cultura católica tradicional, também êle se confrontou com uma situação marcada por concepções liberais, também êle se caracterizava pessoalmente por uma atitude desassombrada perante o poder político e a hierarquia, também êle tinha a força de uma auto-consciência de sacerdos in aeternum. "Diziam que trazia de Paris, de Saint-Sulpice, o espírito ultramontano e jesuítico. Mas Renan, o racionalsita da Fé, se anteciparia na defesa do velho Seminário, de onde saiu cético e descrente, disposto a tornar humana - ou simplesmente filosófica - uma religião que era divina. Cresceu na admiração geral o frade que parecia áspero, duro, intransigente, ultramontano. Por onde se vê que não é uma religião liberal, acomodatícia, temerosa do temporal, que se impõe; mas uma Fé intrépida, sem vacilações, nem tibiezas (...). Ao escrever aos seus diocesanos da fortaleza onde estava detido, dizia: Episcopus sum. (...) Era o Bispo, quisesse ou não quisesse o Estado, mesmo porque não era o governo que fazia os Prelados (...)" (Nilo Pereira, Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil, 2a. ed., Recife: Massangana/Joaquim Nabuco 1982, pág. 184-185) "Escreve Gilberto Freyre: -'Não foram poucos (...) os brasileiros recém nascidos que receberam de pais ortodoxamente católicos nomes com alguma coisa de militante em sua afirmação de Catolicismo: o de Vital, em homenagem ao bispo que enfrentara com desassombro raro o regalismo do Império. O de Pio, o de Leão, o de Inácio de Loyola, o de Luiz Gonzaga, o de Francisco de Assis, o de Vicente de Paulo" (Ordem e Progresso II, Rio de Janeiro: José Olympio 1959, 522).
Eram os Vitais que, daí por diante, como sacerdotes ou como leigos, iriam tentar honrar essa herança do Bispo de Olinda, um Vital diferente, bravo, coerente e lúcido. E nesse vitalismo é que a Igreja Católica iria encontrar, no Brasil, um dos seus melhores esteios. (...) Estaria nesse 'vitalismo' uma fonte em que, por fim, vieram se abeberar padres e leigos, desejosos mais do que nunca da libertação da Igreja (...)" (op. cit. pág. 186) Somente a consideração ampla de processos histórico-culturais em contextos euro-brasileiros permite ao estudioso reler diferenciadamente a literatura específica, levando em consideração o posicionamento dos estudiosos, em parte claramente partidários da militância:
"O ultramontanismo, afinal, tornou-se um meritório e notável esforço para afirmar a distinção entre a Igreja e o mundo, e assim proclamar sua transcendência" (João Camilo de Oliveira Torres, História das Idéias Religiosas no Brasil, São Paulo: Grijaldo 1968, pág. 112, cit. Nilo Pereira, op.cit. 325)
Um dos problemas que se impõe é o da distinção entre enfoques histórico-culturais e apologéticos nos estudos propriamente culturais. A literatura religiosa, sobretudo a apologética do século XIX surge sobretudo como importante objeto de estudos contextualizados quanto à época e a esferas de relações internacionais, não como guia por assim dizer científico de análise de processos. A segurança militante, desassombrada e entusiástica do discurso de cunho apologético parece ter contribuído a que estudiosos assumissem avaliações de situações e de processos culturais que apenas deveriam ser consideradas em função da perspectiva religiosa. Constata-se, assim, na historiografia, repetidas afirmações quanto a um baixo nível do catolicismo durante o Império, quanto à falta de espiritualidade do culto e das festas religiosas, muitas vezes citando-se sem maior diferenciação crítica pensadores da militância, tal como o Pe. Júlio Maria: "A grande massa misturou o que há de superficial nos ensinamentos do catolicismo às crenças dos indígenas e às importadas pelos escravos africanos, dando origem a um sincretismo afro-católico (...) As elites, em geral, embuídas de voltairianismo, mais por hábito, compostura social ou tradição, continuavam a reverenciar o culto católico, batizando, casando e tendo o padre a seguir-lhes os enterros, sempre, como diz Sérgio Buarque de Holanda, menos atentas - como aliás a massa - ao sentido íntimo das cerimônias que ao colorido e à pompa exterior. Tal era também a ignorância do clero, em geral, e a sua decadência, que D. Vital, por ocasião da Questão Religiosa acreditava que esta fizera "um bem inaudito à fé (...)" (João Cruz Costa, "O pensamento brasileiro sob o Império" In: História Geral da Civilização Brasileira III: O Brasil Monárquico, 3. ed., São Paulo/Rio de Janeiro: DIFEL, 1976, págs. 328-329)
Sob o ponto de vista dos estudos culturais, uma tal aceitação indiferenciada de avaliações decorrentes da literatura religiosa surge como insustentável. Representa uma falta de consideração por formas próprias de expressão desenvolvidas através dos séculos no Brasil, de suas tradições religioso-culturais, das características de sua espiritualidade e ofensiva aos religiosos e sacerdotes que atuaram em tantas localidades no Brasil e que são designados como ignorantes e sem princípios. É apenas compreensível sob a perspectiva apologética militante do ultramontanismo ou de determinadas correntes do pensamento eclesiástico. Os estudos histórico-culturais defrontam-se aqui com uma dupla tarefa: o da maior consideração da literatura propriamente religiosa, que não encontra em geral lugar na história literária e, ao mesmo tempo, um maior cuidado na assimilação irrefletida de análises e avaliações críticas de desenvolvimentos, formas de expressão e estruturas oferecidas por essa própria literatura.
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).