Doc. N° 2365
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
115 - 2008/5
Bretanha-Brasil
Questões de difusão cultural: Concepções sistemáticas na tradição religiosa popular
Guimiliau e Lampaul-Guimiliau. Trabalhos da A.B.E. 2008
A.A.Bispo
No âmbito do ciclo de estudos "Normândia-Bretanha-Brasil" desenvolvido pela A.B.E. em maio e junho de 2008, deu-se particular atenção às assim-chamadas áreas paroquiais de várias localidades, terrenos murados com igreja monumental, cemitério, calvário e ossário, monumentos arquitetônicos e da plástica que surgem como característicos e determinantes de uma imagem da Bretanha. Para além de seu significado histórico-artístico, esses monumentos surgem como de particular interesse para os estudos culturais. Como construções monumentais em pequenas comunidades rurais, surgem como exemplos históricos de uma cultura popular, profundamente impregnada de religiosidade. Nas suas expressões artísticas, oferecem caminhos para estudos de sistemas de concepções e de imagens. Não são monumentos de passado encerrado, mas sim vivo, centro de práticas e cerimônias através dos séculos e até hoje ponto de partida e de chegada de procissões no âmbito dos tradicionais Pardons. Essas áreas da Bretanha oferecem assim particular interesse para uma História Cultural orientada a partir da cultura popular e para aproximações culturais da História da Religião. Acima de toda a necessária contextualização dirigem a atenção a aspectos supra-regionais, a estruturas comuns na expressão e no sentido de um Catolicismo transmitido por assim dizer inoficialmente na cultura popular (Veja textos no número 114 desta revista).
Similaridades na Plástica
O estudioso brasileiro fica de início surpreendido em constatar uma certa similaridade na estatuária semi-popular dos Calvários bretões com aquela que se liga ao nome do Aleijadinho. Essa sensação de similaridade levanta questões que a possam justificar. A pedra empregada, na sua tonalidade, surge como um dos fatores que explicam tal associação. Constata-se, porém, que fisionomias e trajes, por exemplo de profetas do Antigo Testamento, apresentam semelhanças com aquelas conhecidas de Minas Gerais. Independentemente de diferenças estilísticas, as do Brasil surgem mais explicitamente como expressões barrocas do que as da Bretanha, a percepção da existência de uma certa similaridade causa um certo desconforto para o observador. Não havendo nenhum elo histórico conhecido que justifique tais similaridades entre regiões tão distantes, procura-se razões para tal similaridade percebida em concepções e formas de expressão transmitidas pela tradição popular da Idade Média. Naturalmente, toda e qualquer aproximação nesse sentido não pode representar mais do que apenas um exercício de percepção e análise.
Questões de plástica e imagens
Dentre os locais visitados, salienta-se a área paroquial murada de Guimiliau, uma das mais significativas desse gênero. A paróquia englobava no passado os territórios de Guimiliau e de Lampaul-Bodénès. Depende do bispado de Léon- Como as outras áreas fechadas paroquiais, a de Guimilliau se compõe de igreja, de um pórtico triunfal, de um ossuário e de um calvário. Da igreja do século XVI apenas conservou-se o campanário(1530); o restante, em estilos flamboyant e renascentista, é resultado de reconstruções do século XVII. A atenção concentrou-se na estatuária religiosa, uma vez que Guimiliau, o segundo maior dos sítios religiosos dessa natureza na Bretanha. O seu Calvário, construído entre 1581 e 1588 supera todos os demais em número (ca. 200) e riqueza simbólica de figuras. Esse número de estátuas não é sem importância sob a perspectiva sócio-cultural, uma vez que tais conjuntos arquitetônicos foram edificados em concorrência entre as diversas povoações, manifestando assim a consciência e a força das comunidades. Construido segundo um plano otogonal é emoldurado por quatro contrafortes unidos por uma arcada e decorado a dois níveis. O nível superior expõe a infância de Jesus e os primeiros momentos da Paixão. O nível superior expõe os grandes momentos da Paixão. A área de entrada da igreja é ornamentada com figuras e cenas do Novo e do Velho Testamento. O portal do Sul, tendo ao alto uma estátua de S. Miliau, é famoso pela profusão decorativa. No interior, figuras dos apóstolos se sobrepõem a uma frisa com cenas do Velho Testamento. Também aqui o centro das atenções é dirigido à Paixão. O vitral principal, da Crucifixação e da Deposicão da Cruz, é de 1599. O retábulo de S. Miliau, atribuido a Guillaume Lerrel, data de 1580. Uma particular consideração na análise da programática teológica expressa pelas imagens merece o vínculo das mesmas com concepções musicais. Essas se manifestam sobretudo nos quadros esculpidos da tribuna do órgão (de Thomas Dallam, de 1677). Aqui se apreentam o triunfo de José, o rei David do Velho Testamento em correspondência à Santa Cecília, da história cristã.
Questões hagiográficas
Guimiliau deriva do bretão Gwic (burgo) e de Miliau, rei de Cornouaille. O significado desse santo na Bretanha manifesta-se no uso do seu nome na designação de outras localidades, tais como Ploumilliau e Pluméliau. É o santo padroeiro de Plonévez-Porzay. A sua festa é celebrada a 24 de julho. É representado com uma coroa ou no ato de dar uma parte de seu manto a um mendigo. É visto, assim, como protetor dos pobres. A sua hagiografia levanta problemas históricos e de interpretação. Segundo uma tradição, São Miliau Budic, filho (ou neto) de Alin Le Long, 11° rei da Bretanha-Armorica, tinha como irmãos Theodoric e Rivodius. Théodoric e Rivodius. Miliau, casando-se com a rainha Haurille, teve Mélar como filho, também santo venerado em várias localidades da Bretanha (veja texto na edição 114 desta revista). Miliau teria sido assassinado pelo seu irmão, Rivodius, ou Rivod, ao redor do ano de 531. Um dos problemas históricos dessa tradição apontados pelos historiadores diz respeito ao fato de que Alan I, rei da Bretanha, vivou no século VIII e morreu em 907. Teria tido realmente um filho chamado Budic, que não o sucedeu como rei. Dá-se o ano de 892 como data do martírio de St. Miliau, tornado assim contemporâneo dos imperadores carolíngios. Haveria assim uma distância de mais de três séculos entre Miliau e Mélar. Alguns acham que a conexão entre ambos represente um mal-entendido. Outro fator de questionamentos é o fato de que S. Hervé, cuja morte é datada de 556, ser considerado como nascido em Guimiliau.
Lampaul-Guimiliau
O nome da localidade, um desmembramento da antiga paróquia de Guimiliau, deriva da designação bretã de ermida (lan) de São Paul Aurélian, assim como de Guimiliau. Era denominada no passado de Lampaul-Bodénès. Dependendo do bispado de León, era sede de residência campal dos bispos daquela diocese. Dessa propriedade ainda existe um moinho com as armas do Mons. rolland de Neufville, bispo de León de 1568 a 1613. Já essas indicações indicam o caráter campestre, rural da localidade e auxiliam a compreensão do cunho popular-do monumento. Do ponto de vista arquitetônico, Lampaul é famoso pela sua torre, uma das mais antigas da Finistère (1573). O portal da igreja, de 1533, em estilo gótico, é considerado artisticamente como uma das obras primas da arquitetura do século XVI. O seu principal interesse para os estudos culturais, porém, reside no programa teológico da ordenação das imagens. É encimado por uma estátua do Arcanjo São Miguel, compreensível no conjunto mortuário do todo. Mais acima, entretanto, encontra-se a imagem de São Pol e, mais ao alto, a da Virgem com São João. No portal da igreja encontram-se estátuas dos 12 apóstolos, em granito. No interior, a trave do arco de triunfo, do século XVI, apresenta Jesus na Cruz, com Maria e São João. No friso, estão representadas cenas da Paixão: a Agonia no Monte das Oliveiras, Flagelação, Coroação com Espinhos, Ecce homo, Tomada do Sangue, Carregamento da Cruz, Devestimento, Crucificação e Descida da cruz. Na parte interior, a imagem principal é a da Anunciação, cercada pelas 12 sibilas. No interior, as manifestações do pensamento sistemático na apresentação da história sagrada podem ser constatadas por vários lados. Assim, no Coro, tê-se à direita uma imagem de Pedro, com as chaves, e à esquerda uma de São Paulo. O centro das atenções é dirigido ao retábulo da Paixão, do século XVII, que mostra S. Miliau, padroeiro de Guimiliau, no seu martírio. A parte central foi elaborada por um atelier de Antuérpia, apresentando 80 figuras da Paixão.
Simbólica dos Evangelistas e dos Doutores
No púlpito (1759-1760), estão representados os 4 Evangelistas em correspondência a Doutores da Igreja. Nesses paralelos tem-se a demonstração de como o pensamento em tipos não apenas marcava a compreensão do Velho Testamento nas suas relações com o Novo Testamento mas também a própria história da Igreja. Aqui não se tratam de Tipos e Anti-Tipos, uma vez que os Evangelistas já correspondem a Anti-Tipos, mas sim a correspondências. Como, porém, os Evangelistas indicam através dos seus atributos simbólicos as conotações dos Tipos, com os seus múltiplos elos decorrentes de concepções filosófico-naturais correspondentes aos elementos, essas vinculações anti-tipológicas transferem-se aos dos Doutores da Igreja colocados em correspondência. Assim, os elos simbólicos com o elemento ar, que permite uma leitura à luz de suas conotações do Evangelho de Mateus, passa a determinar também a leitura de obras de Agostinho. Os vinculos com o fogo, que nas suas múltiplas conotações dirige a atenção na leitura do Evangelho de Marcos, passa a determinar também a leitura de obras de São Jerônimo. Os elos com o elemento terra, que perspectivam a leitura do Evangelho de São Lucas, permitem também uma interpretação de sentido especial de textos de Ambrósio. Por fim, os elos simbólicos com a água, que caracterizam nesse tipo de hermenêutica a leitura do Evangelho de São João, passam a dar um cunho particular à leitura de textos de São Gregório. Essas equivalências constatadas em Lampaul são de particular significado para os estudos culturais. O ímpeto educativo dos programas de imagens das igrejas, salientado pelos estudiosos dos monumentos bretões, não é apenas narrativo mas transmite um sistema de concepções e imagens que vale também para a história do homem e da Cristandade através dos séculos. O camponês ou o fiel analfabeto que assim era instruído pelas imagens ganhava dos Doutores da Igreja um conhecimento por assim dizer plástico, e mesmo sem poder estudar os seus textos sabiam inserir o seu pensamento em sistema complexo de correspondências. Também no Brasil, por exemplo igrejas de Minas Gerais, tais como Catas Altas, as representações dos quatro Doutores da Igreja foram de significado na programática teológica das igrejas. Dificilmente encontra-se porém um relacionamento tão explícito entre os Doutores e os Evangelistas na linguagem simbólica e, portanto, as chaves para a interpretação adequada. Com a mudança da hermenêutica no decorrer dos séculos, com o esquecimento de antigas tradições de pensamento, essas chaves podem ser antes encontradas em manifestações da cultura de tradição popular, tal como em Lampaul.
Encenação plástica
Há porém, em Lampaul, uma representação que maior interesse ainda oferece ao estudioso da cultura em relações euro-brasileiras. Se, nas demais áreas paroquiais cercadas da Bretanha a sensação de similaridade com esculturas de um Aleijadinho surpreende pela estatuária das partes externas, em Lampaul o observador é fascinado pela representação realístico-teatral da Deposição de Jesus na tumba, de 1676. Trata-se de um conjunto de figuras esculpidas em pedra mole calcária, independentes, agregadas ao redor da imagem do Cristo deposto e que representam José de Arimateia, Nicodemos, Gamaliel, Maria, S. João, Maria Magdalena, Maria, a mãe de Tiago e Salomé. Esse conjunto de figuras encontrava-se originalmente na capela dos mortos, na casa dos ossos, de 1667, construída pelo arquiteto G. Kerlezroux. É considerada como uma das mais significativas desse gênero de representação realista, de teatralização da narrativa - aqui não de um sistema - , pela expressividade das feições e dos gestos. A surprêsa do observador brasileiro é constatar aqui a similaridade da representação no seu todo e nas suas figuras, nos gestos e nas expressões com aquelas dos Passos da Paixão do Santuário do Bom Jesus dos Matozinhos. Antonio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, foi contratado em 1796 para realizar imagens dos personagens que se vinculam com as cenas do Calvário de Jesus Cristo, assim como os profetas, mais tarde colocados nas escadarias e no adro da igreja. As figuras d Via Sacra, correspondendo às sete estações - a Santa Ceia, o Horto das Oliveiras, a Prisão de Cristo, a Flagelação , a Coroação de Espinhos, a Subida ao Calvário e a Crucificação - foram colocadas em seis capelas dispostas alternadamente na subida do monte. (...)
Grupo redatorial dir. A.A.Bispo
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).