Doc. N° 2364
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
115 - 2008/5
Bretanha-Brasil
Questões de Difusão, Geografia Humana e Ciências das Religiões: Ar paganiz (Terre des paiens) Geografia humana e estudos culturais: E. Reclus
St. Pol de Leon. Trabalhos da A.B.E., maio-junho 2008
A.A.Bispo
No âmbito do ciclo de estudos "Normândia-Bretanha-Brasil" da Academia Brasil-Europa, realizado em maio-junho de 2008, considerou-se com especial atenção questões relacionadas com expressões religiosas consideradas como sobrevivências de práticas e concepções pré-cristãs. A A.B.E., em eventos e publicações, vem-se dedicado há anos ao estudo de fenômenos e mecanismos sincretísticos no Brasil e seus fundamentos histórico-culturais e sistemáticos. A ponte entre concepções e práticas constatadas no Brasil e aquelas do passado mais remoto investigadas através de fontes históricas e da arqueologia material e imaterial parte sobretudo de análises de edifícios imagológicos e conceptuais do presente. Os estudos bretões possibilitam novos subsídios ao trabalho reconstrutivo de desenvolvimentos histórico-culturais e de sistemas, um esforço que exige contínua reflexão acerca de suas próprias bases e seus pressupostos teóricos. Essa importância da Bretanha reside no fato de ter conservado por mais tempo antigas tradições culturais e de concepções do que a maior parte das regiões européias. Estudiosos do século XIX, época marcada pelo desenvolvimento das ciências naturais e pelos intuitos de elevação da pesquisa cultural à ciência, reconheceram essa situação e procuraram descrevê-la como a da sobrevivência do "paganismo" sob roupagens do profundo catolicismo bretão. Esse intuito marcou não apenas uma fase inicial importante dos estudos mais específicos das tradições populares e da etnografia, mas sim também o da geografia humana. Criticadas a seguir, no decorrer do século XX, essa visão e os procedimentos interpretativos empregados surgem nas últimas décadas como merecedores de reconsideração. Alguns dos caminhos que hoje novamente são percorridos parecem retomar, sob novas perspectivas, questionamentos da época. O problema que se levanta é, sobretudo, a das diferenças de enfoques e de conceitos da atual discussão com relação a esses aportes do século XIX. O tratamento desse problema permite dar profundidade histórica à discussão teórica, impedindo que propostas atuais surjam como "ovos de Colombo" e que repitam irrefletidamente modêlos interpretativos do passado sem a necessária diferenciação.
Elisée Reclus e a "nova geografia francêsa" do século XIX
A designação de uma das regiões da Bretanha como sendo "terra de pagãos", tomada da linguagem popular, foi perpetuada na mais monumental obra geográfica do século XIX, a Nouvelle géographie universelle de Elisée Reclus, em 19 volumes (Nouvelle Géographie niversele: La Terre et les Homes II, La France, Paris: Hachette, 1879). Considerado como fundador da nova geografia francêsa, Elisée Reclus nasceu em Sainte-Foy-la-Grande, a 15 de março de 1830 e faleceu em Thorhout, a 4 de julho de 1905. Suas obras, a partir de La terre, em dois volumes (1867/68), alcançaram grande difusão e serviram de base para o estudo da geografia em vários países, entre êles o Brasil. A consideração de tradições populares de fundamentação religiosa no contexto de descrições da geografia física não pode levar à suposição de um conservativismo do autor. Pelo contrário, como também muitos dos estudiosos da etnografia e das tradições culturais do século XIX na França, Reclus situava-se politicamente antes "à esquerda". Socialista, até mesmo anarquista segundo alguns autores, sentiu-se obrigado a viver no Exterior a partir de 1852. Em 1892, tornou-se professor em Bruxelas. Na sua exposição relativa à geografia humana da Bretanha, Reclus baseia-se sobretudo em trabalhos de Paul Broca no Bulletin de la Société d'anthropologie (1861) e na Revue scientifique (12 de agosto de 1876), de Paul Renan na Revue des Deux Mondes (15 de março de 1876), assim como na Ethnogénie gauloise, de Roget de Bellognet.
"Barbarie relative" e druídas
Reclus justifica, de início, a razão pela qual os habitantes da Bretanha mereceriam um estudo especial. Assim como os euskarianos dos Baixos-Pirineus, os bretões se distinguiriam claramente de outros francêses pela língua, pelos costumes e pelo estado social. A própria situação geográfica da península, à parte da massa continental, rodeada de mares tempestuosos, teria mantido os habitantes numa "barbarie relative". Desde os primeiros tempos da história gaulesa, a Armorica, segundo as antigas descrições, sempre fora uma região pouco visitada, onde os costumes religiosos se conservaram mais rigorosamente do que em outras partes do mundo: era o país celta por excelência, onde os druídas tiveram o seu maior poder.
Celtas e colonização da Bretanha
Os bretões descenderiam segundo Reclus provavelmente na sua maior parte desses armoricanos de idades remotas, mas o seu nome não teria essa origem. A península dos gauleses recebeu a sua designação de Bretagne, ou, mais exatamente, de Petite-Bretagne, dos bretões da grande ilha do norte, emigrados em diversas épocas a partir do século XIII, sobretudo naquelas de invasões de jutos, de anglos e de saxões. Os recém-chegados se estabeleceram ao lado dos antigos habitantes, transformando-se em mestres e iniciadores, impondo o seu nome e suas formas religiosas. A sua língua, muito próxima à dos nativos, tornou-se o idioma preponderante. Esses colonos da Grã-Bretanha foram os fundadores de várias cidades da costa, tais como Saint-Pol-de-Léon, Saint-Brieuc, Tréguier e Saint-Malo. A origem dessas cidades teria sido na regra um mosteiro emoldurado por um minihi ou círculo sagrado, onde as populações tinham no abade um mestre absoluto.
Bretões e bretões
As diferenças entre bretões e bretões, sobretudo nas costas setentrionais da península, poderiam assim ser explicadas pela diversidade de origens. Descendentes de bretões insulares podem ser reconhecidos na sua maior altura, nos seus cabelos loiros e olhos azuis, tipos humanos encontráveis no seu estado mais puro nas ilhas de Batz e de Ouessant. Em toda a região do Léonais, os bretões são maiores do que em outras. A maior parte dos armoricanos que vivem sobre a vertente meridional das montanhas de Arrée são menores, mais escuros e possuem uma cabeça redonda, não tão alongada. Certas populações das montanhas e das ilhas, vivendo à parte de outros bretões, também apresentam uma origem distinta. Esses seriam os "selvagens" que habitam os distritos recuados do Finistère, no interior das colinas de Edern e de Pleiben. No conjunto, os bretões do interior e da costa meridional, nomeadamente os Morbihannaises, seriam os mais bretonantes dos bretões, com aparência similar aos do Limousin e outros habitantes do Planalto Central pela constituição e até mesmo nas suas doenças e taxas de mortalidade. Nessas parcelas populacionais poder-se-ia detectar segundo Reclus os celtas pouco modificados pela imigração de colonos da Grã-Bretanha. Até mesmo já se teria comparado os habitantes da península armoricana com populações longínquas e de origem diferente. O bretão de "puro sangue", segundo um estudioso bretão, Bertillon (La Démographie figurée de la France), com a sua forma de crâneo, a pele de um amarelo pálido, os olhos negros ou marrons, e os cabelos negros, teriam uma aparência singularmente aparentada aos Cabiles da Algéria (!). Em ambos notar-se-ia a mesma "cabeça dura", a mesma força de opiniões, a mesma resistência às fadigas, o mesmo amor à independência.
Um Pardon da Bretagne. De Ch.Delon, Les Peuples de la Terre, 5a. ed. Paris: Hachette, 1905.
Os bretões que falavam ainda a língua céltica ou breizad, muito similar ao welsh da Grã-Bretanha, dividir-se-iam em quatro grupos segundo as diferenças de seus dialetos. Os limites dessas línguas coincidiriam com os antigos limites das dioceses. Uma certa rivalidade poderia ser constatada entre os habitantes das diversas regiões, Tréguier, Léon, Cornouaille e Vannes. Bretões de diversos dialetos manifestariam a sua animosidade na forma com que se referiam aos demais. O dialeto que mais se distinguia dos outros era o de Vannes. No seu conjunto, a literatura da Baixa-Bretanha não poderia ser comparada em riqueza com aquelas das línguas irmãs da Irlanda e do País de Gales. Alguns mistérios, dos quais o mais antigo data do século XV, um glossário, obras de devoção, cantos populares, alguns deles acomodados ao gosto do século, poemas e textos políticos de escritores contemporâneos constituiriam o tesouro literário do breizad. A diversidade dos dialetos, o emprêgo do francês como língua usual em Brest, em Morlaix e nas cidades principais, sobretudo a ignorância da leitura, ainda geral nas zonas rurais, tais seriam as causas que teriam impedido o nascimento de um patriotismo de idioma comparável àquele dos flamengos ou dos gauleses. Se esse patriotismo fosse algum dia despertado, o trécorien, idioma da região de Tréguier, seria o que se transformaria no baixo-bretão literário: de Tréguier é que viria o maior número de cantos, de narrativas e de provérbios célticos.
O domínio do baixo-bretão, apesar de tudo, permaneceria o mesmo do ponto de vista geográfico: os limites entre os bretões gallots ou afrancesados e os bretões bretonantes da península pouco se haviam modificado desde o século XII. Antes dessa época, as freqüentes incursões de normandos, os massacres e a depopulação que a eles se seguiu, assim como as novas ondas colonizadoras modificaram as fronteiras das línguas; os pontos extremos ao oriente foram marcados peelo golfo de Saint-Michel àquele de Saint-Brieux, e das margens da Loire àquelas da Vilaine; depois daquelas ocorrências, o limite das linguas, a não ser no litoral Guérandais, pouco ter-se-ia modificado. Os nomes de localidade indicam já o contraste das línguas: de um lado surgem, ao meio de nomes franceses, algumas designações bretãs já modificadas pelo uso, de outro lado, surgem muito numerosas e conservam a sua pureza: Aber-Ildut, Concarneau, Crhaix et Kergrist, Coetlogon, Landerneau, Locmariaker, Lesneven, Mené-Hom, Morlaix, Penmarc'h, Ploubalay, Roscanvel.
Se os costumes do baixo-bretão são diferentes daqueles dos bretões gallots, isso deve ser visto não como efeito de uma diversidade de origem, mas sim a de um isolamento mais prolongado. Assim, segundo Reclus, não haveria nada na vida dos bretões da península que se diferenciassem absolutamente dos costumes que se encontram nas regiões mais afastadas da França: tal prática bretã, que se considera particular dos habitantes do Morbihan ou da Cornouaille, se observaria igualmente nos Pireneus, nos Alpes, no Planalto Central, só que sem a mesma ingenuidade.
Idade Média viva
Para Reclus, o que interessa sobretudo na Bretagna, é o que nela ainda se poderia vivenciar como teria sido a França na Idade Média. Que fera ce peuple patient de la Bretagne quand, sorti du moyen âge, il entrera définitivement dans la société moderne? On peut espérer beaucoup de lui, car il est un de ceux qui savent le mieux vouloir". (op. cit. 621)
Sobrevivências do paganismo
A exposição de Reclus relativas à religião e às sobrevivências pagãs baseou-se sobretudo em Ernest Renan e em Roget de Belloguet. Seguindo esses autores, Reclus salientou que velhos costumes do paganismo ter-se-iam conservado ao lado daqueles do catolicismo, podendo-se neles estudar os fenômenos de transição entre os dois cultos.
No litoral do Léonais, ao norte do Lesneve, a península de Pontusval era conhecida como "Terre des paiens" (ar paganiz). Essa designação, de remotas origens, ainda corrente no século XIX, explicar-se-ia pela persistência de práticas de idolatria durante a Idade Média. Esse caráter não-cristão manifestava-se também nas normas de procedimento, questionáveis sob a perspectiva da moral cristã. Assim, os habitantes dessa quase-ilha, teriam conservado por mais longo tempo o horrível "droit de bris": eram acusados de dar sinais enganosos no litoral para que navios se perdessem e, assim, pudessem recolher os despojos.
Fora dessa "terra de pagãos", haveria em várias regiões da Bretanha locais onde ainda as forças da natureza seriam adoradas. Ainda no século XIX consultavam-se fontes de água e as grandes árvores. O gui era considerado "erva da cruz" e visto como portador de poderes curadores. Santuários de antigos deuses, transformados em capelas, receberiam segundo os folcloristas do século XIX ainda as "mesmas preces de dois mil anos, apenas endereçadas agora a uma outra divindade". Baseando-se em Émile Souvestre, Reclus lembra que, nas redondezas de Tréguier, havia uma capela onde se invocava "Notre-Dame de la Haine", uma Nossa Senhora vingativa caracterizada pelo ódio e que seria herdeira de alguma deusa celta. A essa Nossa Senhora mulheres rezavam pela morte de um marido detestado, um filho por um pai que demorava a morrer e a deixar a sua herança.
Similar ambivalência de bem e mal podia também ser visto no culto ao Santo Ivo, ou seja, ao próprio padroeiro da Bretanha. O "S. Yves da Verdade", cultuado nas redondezas de Tréguier, auxiliaria aos inocentes injustamente oprimidos, aos pobres, às viúvas, e aos órfãos. Ao mesmo tempo, porém, surgia como o grande justiceiro, o punidor daqueles que erravam ou oprimiam os desprivilegiados. Citando Renan, Reclus menciona que, quando alguém sofria alguma injustiça, podia recorrer a Santo Ivo e estar certo que o seu inimigo morreria dentro de um ano (!). Ainda no século XVIII, um canto de terra nos campos era sempre reservado pelos camponêses ao espírito maligno, era com esse preço que consentia em não devastar a plantação. Reclus salienta o papel das rochas, das fontes e das ervas na religiosidade bretã. Toda capela de peregrinação possuia a sua fonte, onde a água traria saúde e prosperidade. As pedras, porém, não eram menos importantes do que as fontes na herança deixada pelos antigos cultos. Ainda havia dolmens que eram venerados como tumbas de pessoas poderosas do passado. Quando uma lápide de pedra era colocada sobre a sepultura de um rico, a língua baixo-bretã a chamaria ainda de dolmen, diferenciando-a da simples terra que cobre a sepultura de um pobre. Inumeráveis seriam as pedras talhadas perante as quais os camponeses se persignavam ao passar. Eram vistas ou como obras do diabo, ou, ao contrário, de anjos e santos. Rapazes e jovens moças dedicavam-se a danças simbólicas realizadas ao redor de menhires. Perto de Saint-Renan, no Léonais, os recém-casados iam furtivamente tocar uma pedra, a fim de obter uma posteridade feliz. Entretanto, algumas pedras consagradas aos santos já haviam sido destruídas pelo clero. Para por fim ao costume de depostir alimentos sobre as mesas dos dolmens, o clero bretão declarou, solenemente, em 1658, que essas oferendas apenas poderiam servir ao diabo. As pedras cortadas pelo homem não teriam sido os únicos objetos de crença e veneração. Numerosos blocos esculpüidos pelas intempéries passaram a ter uma origem sobrenatural. Um pilar de granito foi considerado como tendo tomado uma figura humana, e aqui e ali, sobretudo nas redondezas de Douarnenez, o homem colaborou a que se tornasse uma estátua.
Para se fazer uma idéia do que fora um culto antigo, dever-se-ia percorrer as regiões de Morbihan e da Finistère, onde as pedras levantadas pelo homem ainda se elevavam aos milhares, em avenidas, em alamedas cobertas. No meio desses monumentos o viajante se sentiria transportado a outras idades da humanidade. Nos planalto desertos de Lanvaux, vastos espaços são cobertos de menirs parecidos as colunas de um templo prodigioso. Gelle-Ile e Groix são repletas de megalites. Em Carnac, não longe da baia de Quiberou, os pilares de avenudas são em número de mais de 500, resto de 12 ou 15 mil colunas que o canônico Moreau disse ter contado no século XVI e que se prolongavam numa distância de 10 quilômetros.
Mais curiosa era a gruta coberta pela tumba de Gavr'inis (ile de la Chèvre) no estuário de Morbihan. As paredes da câmara interna são cobertas de escullturas hieroglíficas em relêvo, parecidas na sua forma a tatuagens de certos insulares da Oceania. Uma prova do zêlo religioso dos construtores dessas pedras sagradas poderia ser avaliado: ao norte da ponte de Quiberon, a mesa de um enorme dolmen pesa ca. de 100 toneladas; nas costas da baia de Morbihan, perto de Locmariaker, haveria 4 fragmentos de um menhir que pesariam ao menos meio milhão de quilos: é o Men-er Hroeck, ou a Rocha da Fada. Um dolmen ao lado é chamado de "table des marchands", marcada por caracteres bizarros gravados na face inferior do bloco. Em numerosos lugares, notadamente ao redor de Auray, os camponeses que sofriam de moléstias reumáticas iriam dormir sob um altar, invocando São João.
Ciência das religiões e geografia humana
Como o autor mesmo indica, a sua exposição baseia-se em dados fornecidos por estudiosos das tradições populares de sua época. Coletas de contos e outras narrativas da literatura oral, assim como de recolhas de campo e de observações de usos e costumes foram por êle utilizadas sob a perspectiva da geografia humana e cultural. Entretanto, esses dados não podem ser considerados sem a sua necessária contextualização histórico-cultural. Representam uma fase na história dos estudos culturais e são resultados de questionamentos e conceitos culturais de uma determinada época. O desenvolvimento do pensamento científico relativo aos estudos da cultura popular, no qual a Bretanha desempenhou tão significativo papel, não pode ser separado daquele que levou da predominância do pensamento teológico ao das ciências comparadas da religião. A freqüente citação de Renan por Reclus é aqui particularmente significativa. O pensamento desse autor se reflete na interpretação de processos históricos nos quais são inseridos os fatos constatados na tradição viva. Colocando-se em questão determinados enfoques teóricos básicos, o edifício de interpretações se transforma. O desenvolvimento dos debates relativos aos mecanismos de transformação religiosa do mundo antigo ao Cristianismo, e os estudos da cultura religiosa da Idade Média e de suas transplantações para as regiões colonizadas extra-européias, demonstra que pressupostos das construções explicativas de Renan/Reclus não podem ser mais aceitas sem necessárias diferenciações. Os autores permanecem nas suas opiniões como de singular atualidade quando afirmam que, nas situações consideradas, seria possível estudar os mecanismos da passagem do mundo antigo ao Cristianismo. Esse estudo, porém, exige análises de estruturas simbólicas que, por sua vez, exigem procedimentos teóricos refletidos. Na exposição de Reclus percebe-se que essa "passagem" foi concebida simplesmente como uma substituição de divindades, de deuses por santos, de locais numinosos por capelas e igrejas, uma espécie de sucessão. Podiam, assim, falar de sobrevivências de concepções e práticas e de persistência de um mundo quase que paralelo àquele do Cristianismo. O processo de Cristianização do mundo antigo, porém, foi muito mais complexo. Autores que tiveram a sua formação teológica no século XIX, inseridos êles próprios num processo histórico-cultural, já não tinham acesso a antigas formas da hermenêutica que teria possibilitado a compreensão desses mecanismos de transformação cultural e de suas formas de expressão. Se assim não o fosse, não teriam interpretado a ocorrência de uma Nossa Senhora vingativa e cheia de ódio ou de um Santo justiceiro que levava a morte de outros simplesmente como sendo exemplos da permanência de deuses célticos sob roupagens cristãs. Também no Brasil se conhece essa interpretação simplista de "extensão" nos estudos culturais, ou seja, a de que antigas divindades continuaram a ser cultuadas sob formas cristãs para que senhores e autoridades cristãs poderosas não as percebessem. Tal suposição representa, na verdade, uma desconsideração de culturas profundamente católicas, como também é o caso da Bretanha. A consideração adequada do processo transformatório cristão pressupõe o conhecimento de uma hermenêutica baseada na reorientação anti-tipológica de um conjunto de natureza tipológica. Esse processo de metamorfose anti-tipológica é antes de mais nada o de redirecionamento a uma esfera imaterial, de significados, podendo-se manter a aparência externa das imagens. A questão, portanto, da existência de uma Nossa Senhora cheia de ódio e vingativa é antes expressão da falta de entendimento do observador externo: não percebe que o ódio e a vingança pertencem ao tipo, não ao anti-tipo intendido. Há, sem dúvida, a possibilidade de re-redirecionamentos, ou seja, de "trabalhos" ao nível do tipo; em todo o caso, trata-se de questões imagológicas e de perspectivações dentro de um edifício coerente, não de paralelismos, sobrevivências diretas ou extensões.
Grupo redatorial dir. A.A.Bispo
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).