Doc. N° 2341
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
114 - 2008/4
Tema em debate
Normândia-Bretanha-Brasil
Arqueologia da cultura atlântica e relações histórico-culturais
A.A.Bispo
Perros-Guirec e Ploumanac'h na Côte de Granit Rose. Bretanha. Trabalhos da A.B.E. 2008. Fotos A.A.Bispo A presente edição desta revista inclui relatos de trabalhos desenvolvidos nos mêses de maio e junho de 2008 pela Academia Brasil-Europa na França, mais especificamente nas regiões da Normândia e da Bretanha. Não foi a primeira vez que a A.B.E. dedicou a sua atenção a essas regiões sob a perspectiva dos estudos interculturais euro-brasileiros. Desde 1977 tem-se visitado cidades dos respectivos Departamentos franceses. Em 2001, na cidade de Eu, por ocasião de apresentação da nova ediçao de seu livro Tout m'est bonheur: Les chemins creux (Paris: Robert Laffont/Opera Mundi 1981 ISBN 2-221-00817-0), a Condessa de Paris salientou mais uma vez o significado dessa região para os estudos culturais em geral, recomendando com ênfase a continuação e o aprofundamento dos trabalhos.
Tradições culturais
Em 2007, em seminários da A.B.E., recordou-se o centenário da publicação de uma obra que representou um marco na história dos estudos culturais, o Le Folk-Lore de France, de Paul Sébillot (4 vols., Paris: Librairie Orientale & Américaine E. Guilmoto, 1907). Esse autor, de origem bretã, que foi Secretário Geral da Société des Traditions Populaires e presidente da Société d'Anthropologie, desempenhou importante papel na história dos estudos de cunho científico da cultura e das tradições populares. As suas obras e concepções também exerceram influência no mundo de língua portuguesa, em particular no Brasil. As suas concepções e metodologia, no decorrer do século XX, também foram alvo de críticas por parte de pesquisadores brasileiros que procuravam redefinições teóricas dos estudos do Folclore. Agora, após 90 anos da morte de P. Sébillot (1918-2008), pareceu à A.B.E. ser oportuno relembrar e promover releituras de seus trabalhos na sua devida contextualização histórico-cultural. Para isso, efetuou-se uma nova viagem de estudos à região que marcou de forma especial as suas obras e as suas concepções. Somente levando-se em consideração a situação particular dessa região no contexto europeu da época, as suas características físico-geográficas, a existência de monumentos de remoto passado, a força de tradições populares e de expressões religiosas e simbólicas de antigas raízes é que se pode compreender posições e questionamentos de Sébillot.
História cultural do século XIX
Das várias regiões européias que, ainda no século XIX conservavam no relativo isolamento um patrimônio cultural de remotas origens salientava-se a Bretanha. Desempenhou assim um papel de relevante significado na sensibilização de intelectuais para determinados complexos de questões culturais e, assim para o desenvolvimento teórico de um ramo disciplinar no seu todo. A Bretanha assume, assim na história do pensamento e dos estudos culturais uma posição excepcional, que ultrapassa de mundo o seu universo regional e até mesmo o âmbito nacional francês. Para isso contribuíram intelectuais de diversificados interesses que, sob o pano de fundo de sua experiência cultural em terras bretãs, puderam, através de formação obtida em grandes centros cosmopolitas, em particular em Paris, perceber, valorizar e questionar expressões, concepções e perspectivas nos campos de tensões entre tradição e renovação, antiguidade, cristianismo e secularização. Entre os grandes nomes da Bretanha salientam-se Chateaubriand, o autor do Gênio do Cristianismo e Renan, o da Vida de Jesus, representantes de posições e visões contrastantes, da apologia romântica da religião aos estudos de sua arqueologia, de sua inserção no mundo antigo e oriental. Basta a citação desses dois grandes nomes, profundamente marcados pela sua formação bretã para que se perceba o transcendência supra-nacional da Bretanha. Tanto Chateaubriand como Renan deixaram marcas e abriram caminhos na história cultural do Brasil. Inúmeros seriam os nomes que poderiam documentar a recepção e a ação de obras e concepções desses autores no Brasil, e só o vulto de um Nabuco de Araújo seria suficiente para provar a sua relevância. Também os estudos brasileiros, que então se inauguravam na Europa, principalmente através dos esforços de Sant'Anna Nery, autor da primeira grande obra sobre o Folclore Brasileiro, podem ser inseridos no ambiente de interesses por tradições populares promovidos sobretudo por Sébillot.
Cultura do Atlântico
Os elos que ligam a Normândia e Bretanha ao mundo de língua portuguesa são porém anteriores. País de mar e do Atlântico, como Portugal, participou de experiências semelhantes de exploração dos oceanos, dos descobrimentos e de colonização. De seus grandes portos, de Honfleur/Le Havre ou St. Malo partiram aqueles que fundaram o Canadá francês e, antes, haviam tentado a instituição de uma França Antártica no Brasil. Para essas regiões levaram a sua cultura, material e espiritual, e a própria natureza, frutos e ervas, de lá trazendo plantas, frutos e flores. Relações culturais e relações naturais se vinculam no contexto transatlântico, fomentando o desenvolvimento da botânica, processos consequentes à história dos Descobrimentos e atualmente alvo de particular interesse de pesquisadores.
Não só uma história política de campos de interesses diversos, de animosidades, de piratas e corsários deve ser objeto de interesses da história de relações culturais atlânticas. Há também uma cultura comum do mar, práticas e expressões religiosas e simbólicas compartilhadas e de mais antigo fundamento. A história missionária comum tem o seu representante maior em Pierre Bertholemy ou Dionisio da Natividade, carmelita que atuou tanto a serviço da França como Portugal, que atuou no Oriente português e cuja santificação hoje é promovida tanto por francêses e portugueses.
Arqueologia cultural
Assim como um Sébillot ou um Renan perceberam, os estudos culturais relativos à Bretanha levam porém a épocas muito mais remotas, à fase de cristianização da Europa, aos processos de harmonização de concepções do sincretismo da Antiguidade tardia. Os estudos desses processos, de constante atualidade para o Brasil, encontra na Bretanha um campo privilegiado para estudos de base. A hagio-historiografia bretã - tão distinta da de outras regiões da Europa - permite o reconhecimento de estruturas simbólicas que sugerem e incentivam análises de sentidos e significados. Estudiosos brasileiros estão em condições muito mais favoráveis do que aquelas de estudiosos europeus para a percepção do sentido mais profundo de imagens e de conotações espirituais de árvores, grutas, fontes em expressões religiosas, por conhecê-las em manifestações similares da própria cultura. Podem assim, contribuir para a elucidação de mecanismos cristianizadores do passado e de processos por êles desencadeados nessa região. Por essa razão, a A.B.E. fomentou, no ciclo Normândia-Bretanha-Brasil, estudos relativos à hagiografia bretã e à época de transição entre a cultura da Antiguidade e o Cristianismo. Folcloristas brasileiros criticaram, no passado, um interesse pela "arqueocivilização" de pesquisadores como Sébillot. Hoje, com a nova sensibilidade por questões de arqueologia cultural e do saber, cumpre rever, de ambos os lados, posições e avaliações. Uma redescoberta reinterpretadora de questionamentos e posições impõe-se, ela exige porém o conhecimento mútuo e a conscientização da existência de elos e fundamentos comuns, muitas vezes a serem detectados e revelados em contextos inesperados.
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).