Doc. N° 2352
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
114 - 2008/4
Resenha
Leticia Maronese, Mira Tchileva (Coord.). Patrimonio cultural gitano. Buenos Aires: Gobierno de la Ciudad de Buenos Aires, 2005. 160 p..15,7x 22,8 cm. ISBN 987-1037-31.7
A.A.Bispo
A publicação inclui comunicações apresentadas durante as Jornadas Memórias del Pueblo Rrom-Patrimonio Cultural Gitano , realizadas em abril de 2005, em Buenos Aires, pelas comemorações do Dia Internacional do Povo Cigano. O objetivo da Jornada foi o de debater questões de identidade e a problemática sócio-cultural cigana a partir de diferentes perspectivas.
A edição compreende um prólogo, palavras de abertura, uma introdução e dois capítulos. Seguem-se o hino gitano e um apêndice documental. No prólogo, Norberto La Porta, Presidente da Comissão de Cultura e Comunicação Social da Legislatura da Cidade Autônoma de Buenos Aires, parte da afirmação de que o povo Rrom não tem território definido, nem uma religião comum ou uma representação nacional ou internacional. Apesar disso, esse povo possui um profundo sentido de sua identidade, de seus costumes e tradições. Numa pesquisa publicada em 1987, Esteban Garay salientou que não seria possível indicar uma data precisa da chegada dos ciganos no território da Argentina. Não há nenhuma estatística ou registro. Possivelmente já houvesse ciganos na expedição de Pedro de Mendoza. Foi em 1774 que se tomaram as primeiras medidas repressivas contra representantes desse povo na história argentina, havendo menções documentais de deportação para Espanha. No século XIX já havia muitos ciganos no país. Novas ondas imigratórias constatam-se nos anos posteriores às duas guerras mundiais. Na atualidade, os Rrom argentinos perfazem aproximadamente 300 mil pessoas. Desde setembro de 2000, há uma Asociación Cultural Romani que trabalha na promoção da vida dos ciganos, de sua identidade e contra a discriminação e marginalização. Nas suas palavras de abertura das Jornadas, o Secretário de Cultura do Govêrno da Cidade de Buenos Aires, Dr. Gustavo López, salienta a inserção desse evento na concepção de diversidade cultural que orienta a gestão da cultura da cidade. A diversidade cultural significa aqui a possibilidade concreta de reconhecer o outro a partir do que o outro é, do que o outro pensa, sente, de como o outro imagina o futuro, visualiza o horizonte, constrói as suas próprias utopias a partir de sua escala de valores. O reconhecimento das diferenças permite a aproximação e o caminho comum. Segundo o Secretário, reconhecer-se-ia hoje que foi um êrro que a Argentina tivesse tido a necessidade de criar um imaginário nacional no qual se julgava que a única maneira de unificar a nação seria através da eliminação física do outro, não apenas a eliminação ideológica, política e de costumes. Esse processo ocorreu em toda a América Latina, e antes dele já na Europa, com a consolidação dos estados nacionais, causando um afastamento e uma isolação das minorias. O conceito de diversidade defendido implica no reconhecimento das diferenças, e isso num mundo globalizado onde a hegemonização dos standards de consumo estão eliminando as diferenças culturais. A diferença cultural surge como a única ferramente para opor-se à hegemonização cultural baseada no consumo. O primeiro passo a ser dado seria romper o mêdo; para isso tem-se que conhecer, para conhecer tem-se que explicar. Esse seria o objetivo dessas primeirs Jornadas dedicadas à cultura do povo Rrom. Na sua introdução, Leticia Maronese salienta que a cidade de Buenos Aires, como grande cidade-porto, possui uma grande riqueza em expressões, bens e manifestações culturais marcadas pela diversidade e que as mesmas contribuem para a construção social da memória dos distintos grupos sociais e para a formação de uma identidade porteña como um mosaico de identidades. Da espanholização colonial passou-se, na época da independência, à necessidade de diferenciação da Espanha e construção de uma nacionalidade própria. À época da grande imigração, a política monolinguística e o desenvolvimento da educação gratuita, laica e obrigatória deveriam ter levado à unificação da Nação. Mesmo que hoje já se esteja longe dos discursos xenófobos do passado e dos intelectuais que partiam de um estado de pureza criolla, ainda se constata o discurso de que Buenos Aires representa o Paris da América Latina, sem parcelas populacionais indígenas e afro-argentinas. A Ciudad Blanca, a Ciudad Europa, a Paris da América Latina se parece cada vez mais com a América mestiça. Surge, assim, a tarefa de revalorização do multiculturalismo argentino, de preservar as distintas expressões culturais e as línguas. A língua cigana - com exceção da Espanha e Portugal - se manteve por séculos. Os ciganos compartem com os judeus a diáspora e a tenacidade identitária. A própria autora teve a oportunidade de conhecer um acampamento cigano há 50 anos atrás, localizado na Villa Bosch, Partido de Tres de Febrero, em grandes espaços baldios. Após 20 anos, mudou-se ela própria para essa Villa. Já não encontrou terrenos baldios, nem ciganos. Hoje, seria difícil reconhecer ciganas nas ruas: seriam invisíveis. Teria havido uma grande modificação cultural no modo de vida dos ciganos nos últimos 50 anos. Sobretudo o sistema escolar, porém, enfrenta grandes desafios. As crianças ciganas enfrentam graves problemas de escolaridade. Somente uma escola que ofereça a possibilidade de um aprendizado bilíngue e que seja baseada no respeito à diferença poderá solucionar tais problemas. O primeiro capítulo da publicação traz o título Las voces gubernamentales . Consta de três comunicações: Modos de construção de identidade nos Estados-Nações modernos: O caso argentino (Daniel Feierstein); A Diversidade cultural (Luis Gotfryd); Política imigratória e construção da identidade na Argentna: a coletividade Rrom no nosso país (Enrique Oteiza). O segundo capítulo é dedicado ao tema Las voces gitanas . Nele são apresentadas as seguintes comunicações: Língua e tradições orais (Jorge Bernal); Ciganos espanhóis (José Campos); A música cigana (Gabriel Conti); Nomadismo e Oralidade (Jorge Nedich) e A mulher cigana; a adivinhação como patrimônio de gênero, descriminação e genocídio (Droujemira Tchileva). Jorge Bernal, presidente da Asociación Civil Identidad Cultural Romaní de Argentina, membro pela América Latina do Congresso Nacional Gitano (RNC), abre o capítulo com um texto sobre a língua e as tradições orais. O seu ponto de partida é a questão da escolarização no povo cigano. Alguns de seus grupos, sobretudo os Rrom de fala Romanés não aceitam a educação formal por quererem manter a sua língua e suas próprias tradições. No Brasil, a situação seria oposta. Pastores da igreja internacional Rrom têm manifestado a necessidade de criação de uma escola Rrom de fim de semana para a complementação do ensino oficial. A língua cigana, indoeuropéia, é um dialeto de tipo neo-indiano tal como o hindi, o gujarati, o mahra-ta e outros, aparentados com o sânscrito. As origens dessa língua foram reveladas por um pesquisador húngaro, Stefan Valyi, no século XVIII. Finalizando a sua comunicação, o autor transcribe mensagens em língua cigana, entre elas uma do Brasil, proveniente do Presidente do Centro Cultural Rromanó. Para um povo nômade, a tradição oral é em geral a única forma de transmitir as tradições. No passado, havia uma hora fixa para as narrativas. Com a televisão e o computador, a transmissão oral está ameaçada. Os narradores ciganos (paramichária), tendo consciência de que a comunidade é que é herdeira das tradições, procuravam adaptar as estórias às circunstâncias. Hoje, os narradores são menos numerosos, também pela falta de ouvintes. José Campos, cigano argentino de origem espanhola, pesquisador de flamengo e da cultura cigana espanhola, trata dos ciganos espanhóis. Menciona que os ciganos entraram na Espanha em 1425, por Perpignan, em grupos de 25 a 100 pessoas. Acreditava-se que provinham do Egito. Da idéia de Egito Menor provém o termo egipciano, que mais tarde se converteria em gitano e cigano. O autor considera as perseguições e as tentativas coercivas destinadas a levá-los a abandonar a sua cultura e identidade. Em fins do século XIX deu-se a primeira grande emigração para a Argentina. Quanto ao flamenco, salienta que o cigano de origem espanhol e o flamenco representam uma unidade, não se entendendo a arte flamenca sem os ciganos e vice-versa. Os distintos tipos de cante (deblas, tonás, martinetes, siguiriyas, cabales, livianas, soleares, tangos flamencos, bulerías, alegrías, cañas, cantes de levante e outros) teriam sido cultivados em tavernas e em reuniões familiares. Em meados do século XIX, os vários estilos passaram a formar uma árvore do cante . Menciona nomes de alguns cantaores e o Primeiro Concurso de Cante Flamenco, realizado em 1924. Gabriel Conti, pesquisador e poeta, dedica-se à difusão da cultura cigana e à valorização da cultura Quichua. Foi o criador do primeiro programa radiofônico do continente dedicado à cultura e à música ciganas (Amaró Gláso: Nuestra voz). Nas jornadas em questão, tratou da questão da música, oferecendo alguns dados que pretende publicar em livro. Após citar brevemente os elos de compositores europeus com a música cigana (Liszt, Glinka, Haydn, Falla, Sarasate e outros), traça um panorama da situação dos conhecimentos relativos a diversos países. Os intérpretes ciganos mais conhecidos da América do Sul seriam, no Brasil, o grupo Encanto Cigano e Alexandre Flores, na Argentina, Sandro, e, no Chile, Romá. Dedica breves observações ao flamenco e às relações entre os ciganos e o jazz e entre o mundo cigano e o tango. Jorge Emilio Nedich, autor de Leyenda Gitana, obra premiada em 1999, trata do tema Nomadismo y Oralidade. Salienta que os ciganos que habitam na Argentina são os Rrom e os Rrom calderas provenientes da Rússia, Sérbia, Grécia, Hungria e Romênia de fala romaní. Da Sérbia também provém o grupo Servian, o grupo Ludar, com os seus subgrupos e os Kale ou Kalons, espanhóis. O autor trata das relações entre o nomadismo e a oralidade, considerando, entre outros pontos, a motorização das caravanas, a solidariedade social em relação com o prestígio e os problemas da imagem cigana que leva a discriminações. Droujemira Tchileva, cigana da Bulgária, fundadora da Asociación Civil Identidad Cultural Romaní na Argentina e promotora do movimento Latinoamericano Rrom (SKOKRA), dedicou-se à questão da mulher cigana, em particular da adivinhação como patrimônio de gênero. Salienta que a mulher cigana constitui um fator fundamental de auto-estima para o povo e é portadora de sua cultura. Menciona a importância da vestimenta cigana, proibida, entre outros, em Portugal, em 1579. A adivinhação surge como ferramenta, embora haja criado uma imagem contraditória para o povo. Traça um esboço histórico da prática e de suas proibições. Dá uma especial atenção ao holocausto dos ciganos no período nazista. Salienta que hoje há grande número de ciganos profissionais em várias áreas da vida moderna, em particular nas disciplinas humanísticas. Este é o caso de Rrom da Colombia e muitos também no Brasil, sobretudo no campo da Educação. No apêndice documental, salienta-se o texto Los Rrom en Las Américas, apresentado à Comissão de Direitos Humanos, Sub-Comissão da Promoção e Proteção dos Direitos Humanos, Grupo de Trabalho das Minorias das Nações Unidas, em Genebra, em 2003. Entre os países considerados, o Brasil recebe particular atenção. Salienta-se que em geral se desconhece que o Brasil possui uma grande quantidade de ciganos, de 800 mil a um milhão de pessoas. A bibliografia sobre os Rrom no Brasil é pequena e se encontra dispersa. Menciona-se o descaso de autoridades, a discriminação em entradas lexicográficas, a falta de dados estatísticos. Atitudes discriminatórias derivariam de uma profunda ignorância de sua história. A sua história cigano no Brasil remonta ao século XVI. Os primeiros registros datam de 1591, embora se conheçam ordens de deportação portuguesa para as novas terras já de 1561 e 1574. Os primeiros que chegaram foram os Kalons nômades. Em 1808, alguns Rrom portugueses entretinham a Corte Portuguesa no Rio de Janeiro. Viajando por razões se sobrevivência econômica, participam hoje em festividades brasileiras, sobretudo de natureza religiosa. Apesar de serem citados no Programa de Direitos Humanos (2002), fato resultante de uma campanha realizada por Claudio Iovanovitch e a sua União Romana do Brasil/Associação para a Preservação da Cultura Cigana, de Curitiba, ainda não se registrariam medidas mais concretas. Existem no Brasil poucos Kalons sedentários. Alguns vivem em Minas Gerais, em São Paulo e na Bahia. Há homens que são bons músicos, cultivando uma tradição que trouxeram de Portugal e que apresenta similaridades com o fado; há mulheres que conservam antigos cantos. Também são intérpretes de flamenco. Os Rrom chegaram ao Brasil desde fins do século XIX e muitos vieram à época da Segunda Guerra Mundial. Mais tarde chegaram os Kalderash italianos e famílias Lovari alemãs. O Brasil pertence, ao lado dos Estados Unidos, aos poucos países que contam com Machwaya da Sérbia. Atuam como comerciantes de automóveis, havendo também entre eles universitários. Nas grandes cidades brasileiras há também membros do grupo Xoraxané, inicialmente muçulmanos, e Boyash, de origem rumena e sérbia. Há indícios que teriam sido os ciganos que trouxeram a tradição circense ao Brasil. O autor salienta que, em geral, as políticas regionais e locais se caracterizam por força e coerção, levando a um sedentarismo forçado e a expulsões. A imagem negativa dos ciganos no Brasil surge como um grande problema face ao recrudescimento de tendências políticas radicais em certos grupos populacionais. Por fim, salienta-se que o fundador da cidade de Brasília foi um Rrom. Juscelino Kubitschek, presidente de 1956 a 1961, era filho de um Rrom de origem tcheca. Quando presidente, costumava convidar ciganos ao palácio presidencial: Sin embargo, la mayoría del mundo desconoce esto, y los medios simplemente ignoran el hecho o dudan que sea verdad . (pág. 120) A publicação, à parte de sua intenção louvável e correspondente a uma exigência da realidade, inclui, na diversidade de seus textos, contribuições muito desiguais sob o aspecto científico-cultural. Alguns de seus textos são absolutamente insuficientes, sobretudo aqueles referentes à música e ao flamenco, repletos de imprecisões. Não correspondem, em absoluto, à situação atual dos conhecimentos. A publicação chama, porém, a atenção à necessidade de um maior desenvolvimento dos estudos específicos e traz à consciência a sua relevância para visões histórico-culturais orientadas segundo contextos globais. Para isso, entretanto, seria necessário primeiramente realizar-se um levantamento sistemático de fontes e da bibliografia. O interesse pelos ciganos não é recente no âmbito dos estudos culturais, também no Brasil. Deve-se aqui lembrar que um dos grandes estudiosos do Brasil, Mello Moraes Filho, já em 1904 dedicou um alentado texto aos ciganos (Quadrilhas de Ciganos In: Factos e Memorias, Rio de Janeiro/Paris: H. Garnier, 1904, 95-123). Embora repleto de formulações que podem ser consideradas como pejorativas e discriminatórias, esse estudioso registra dados de extraordinário interesse para a reconstrução da história cigana no Brasil. Uma particular atenção é dado ao bairro de Santo Antonio da Mouraria, em Salvador. Correspondendo à cadeia Nova da cidade, ali se estabeleceram ciganos fluminenses cuja história o autor procurou reconstruir.
O que era aquella freguezia na plaga do norte, quaes os usos e costumes de seus moradores, é o quze a historia nacional ainda não reivindicou para suas paginas, e o que, valendo-nos de reminiscencias e de fragmentos tradicionaes, vamos aqui descrever. (...) Na comprehensão dos primitivos colonos, de qu eram mouros os estranhos hospedes, e d'ahi a origem denominativa, os ciganos da Mouraria professavam a religião christã, de mistura com superstições absurdas, com praticas insensatas. /...) Espalhafatosos em suas exhibições religiosas, nas desaderaçadas salas de seus defumados casebres lobrigavam-se santos de madeira ou de barro sobre commodas com lamparina accesa, registros pregados á parede e enquadrados de fôfos de panninho, copos de agua benta e ramos de alecrim, e os restantes accessorios de superficial devoção. Tendo algum contratempo da sorte ou prevendo imminente revez, os ciganos do Egypto enfeitavam de abundantes lacinhos de fita as imagens de sua invocação, cercavam-n'as de moedas de ouro, suspendiam-n'as a provisorios altares, constantemente illuminados a velas de cêra. De conformidade com as promessas, evitando desavenças entre potencias celestes, fazendo simultaneos rapa-pés, os brodios se iniciavam, á chimbire (aguardante) que os aquecia, e, aos fandangos, aos sapateados, quadras louvaminheiras improvizavam-se á porfia, acompanhadas á viola que plangia nos intervallos da dansa: Nossa Senhora da Gloria Tem grande merecimento, Mas a Senhora Sant'Anna Trago mais no pensamento. E' lê... lê...lê... E' lô...é lá... No caso negativo, porém, si o milagre não se realizava, os pobres santos soffriam desacatos tremendos: eram despojados de seus adornos, cuspiam-lhes na cara, quebravam-n'os blasphemando, ou então, sem injurias, sem violencias, apenas despidos das galanterias do momento, os atiravam a um canto da casa, até que inesperada occasião se deparasse a novas promessas aos mesmos patronos . (...)´(pág. 114-119)
Esse texto, a ser considerado com distância pelo seu tom discriminatório, representa uma tentativa extraordinariamente precoce de reconstrução histórica da memória de um bairro e dirige a atenção aos elos entre a cultura religiosa cigana e práticas tradicionais do Catolicismo no Brasil. Esse vínculo da mística da cultura cigana com tradições místicas de outras proveniências no Brasil também foi mencionado nas Jornadas em questões, embora de forma não precisa (pág. 114). Tem sido pouco considerado em estudos etnológicos relativos a concepções e práticas religiosas no Brasil. Análises mais diferenciadas exigem, como pressuposto, estudos aprofundados de expressões religioso-culturais populares na própria Península Ibérica, onde se registravam, já em séculos passados, práticas que hoje muitas vezes são consideradas de forma demasiadamente simplista como extensões culturais africanas no Brasil.