Doc. N° 2317
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
113 - 2008/3
Consciência latino-americana e problemas de consciência: Direito de animais como fator cultural
Puerto Madryn e Buenos Aires. Trabalhos da A.B.E. 2008
A.A.Bispo
A cidade argentina de Puerto Madryn surpreende os visitantes pelo ritmo acelerado de seu desenvolvimento e que se manifesta nas suas construções da orla marítima, transformando-a numa das mais promissoras cidades do Mercosul. O especial interesse da cidade para os estudos culturais em contextos euro-brasileiros é despertado inicialmente pela participação de Galeses na colonização da região do Chubut, fato perenizado no nome da localidade segundo o castelo Madry de Gales e celebrado em placas comemorativas. Dando origem a lendas e mal-entendidos, as circunstâncias da fundação são até hoje discutidas. Entretanto, para os estudos a se realizarem à luz dos impulsos integrativos desencadeados pelo Mercosul, cumpre sobretudo considerar o fato de a região abrigar, na Península Valdés, reservas naturais de alto significado para a conservação da fauna marinha, uma região considerada como Patrimônio da Humanidade pela UNESCO. Em localidade próxima eterniza-se o respeito à baleia em placa comemorativa. Surgindo hoje como santuário de pinguins, leões e elefantes marinhos, dirige a atenção do estudioso da história cultural também para aspectos mais questionáveis da história das relações do homem com os seres viventes. A caça à baleia marcou no passado a história de vários países que hoje procuram aproximar-se - inclusive o Brasil -, e, na região, a de outros animais marinhos, realizada de forma particularmente cruel e em massa, foi permitida oficialmente ainda no início do século XX e manteve-se até meados do século. O centro ecológico existente à entrada da Península Valdés no Istmo Carlos Ameghino, dedicado à memória desse grande paleontólogo argentino (1865-1936), surge assim como local particularmente adequado para reflexões sobre os problemas culturais relacionados com a natureza em geral e, em particular, com a vida animal.
Temática ambiental e Direito de animais
A temática ambiental tem estado presente em publicações dedicadas ao Mercosul, podendo-se lembrar aqui os trabalhos de Fabio Feldman, Secretário de Estado do Meio Ambiente do Estado de São Paulo e os de Antonio Elio Brailovsky, Presidente da Fundação Fortuna, Professor das Universidades de Belgrano e de Buenos Aires no Mercosul, um atlas cultural, social e econômico (Buenos Aires, Rio de Janeiro: Manrique Zago/Intituto Herbert Levy 1997, págs 305 ss. e 309 ss.). Pouco, porém, tem-se considerado uma outra dimensão da questão, de significado até mesmo fundamental para debates que dizem respeito a questões de consciência: a dos Direitos dos seres viventes em geral. O animal continua em geral ausente das discussões que consideram temas ambientalistas e ecológicos. Cada vez mais toma-se se consciência de que aqui não se trata apenas de uma questão de compaixão e de proteção aos animais, em si de fundamental importância para toda a sociedade que se considere não-bárbara, mas sim de complexos de problemas muito mais amplos e que incluem tendências a uma mudança básica de paradigmas, incluindo sobretudo a questão dos Direitos dos Animais. Trata-se muito mais do que mero sentimentalismo - trata-se de problemas fundamentais da cultura e da filosofia.
Aspectos questionáveis e riscos
Os processos integrativos de países e nações não trazem por si necessariamente evoluções positivas no pensamento e nas ações concernentes às relações entre o Homem e os demais seres viventes. Na Europa, ouve-se muitas vezes a crítica de que teria havido nos últimos anos até mesmo um retrocesso quanto à legislação respectiva em alguns países e ao nível de percepção do sofrimento animal -, uma queda que acarreta um rebaixamento de nível de sensibilidade geral que poderia ter conseqüências altamente negativas para o próprio relacionamento humano e para a sociedade. Com a globalização - e com a divulgação e normalização de certas práticas abomináveis, sobretudo de países orientais, relativadas quanto à indignação que deveriam provocar por serem compreendidas como expressões de "culturas alimentares", há o perigo de uma expansão irrefletida ou cínica de atos de crueldade no mundo globalizado. Na Europa, poder-se-ia aqui citar, como um dos muitos casos, a problemática das touradas espanholas e portuguesas, agora uma questão que diz respeito também a todos os demais países. Outro exemplo seria o da "indústria" de peles, desenvolvida de forma ética muitas vezes indigna a países civilizados, estreitamente relacionada com a moda e, portanto, com questões da cultura contemporânea. Os processos integrativos, portanto, criam novas situações e estruturas que exigem a ampliação das discussões e das ações anteriormente desenvolvidas em contextos nacionais. Fatos e práticas questionáveis do passado e do presente dos diferentes países, considerados como expressões de caminhos históricos e tradições culturais próprios, e que o sentimento nacional impede de serem vistos como manifestações de baixo nível humano e de sub-desenvolvimento civilizatório passam a ser toleradas e compreendidas como normais e naturais. Torna-se necessário, portanto, na aproximação de estudiosos dos vários contextos nacionais que agora procuram integrar-se, que se fomente um distanciamento crítico com relação a expressões e práticas questionáveis mas não refletidas na sua própria vida econômica, social e cultural no concernente à vida dos outros seres. Tal conscientização não é fácil, pois exige em muitos casos não apenas a revisão de visões históricas e de imagens que caracterizam nações e regiões, assim como identidades de grupos e profissões. Exige também o repensar de paradigmas teóricos que têm até hoje possibilitado o ofuscamento da percepção e da sensibilidade, relativando fatos e procedimentos que desnobrecem o Homem. Trata-se, aqui, por ser questão de cunho ético, que se reconsidere o problema do valor e da atribuição de valores em novas perspectivas. Para essa auto-crítica cultural, o estudioso pode ser auxiliado pelas visões e pelas atitudes daqueles colegas de outro contexto cultural, ainda não acostumados com determinadas práticas e ainda não presos por múltiplos laços de identidade com um contexto que justifica e que procura desculpar tais procedimentos. Embora tratando-se de questão fundamentalmente de relevância teórico-cultural, pouco tem sido considerada na discussão e nas ações de órgãos e entidades respectivas dos vários países.
Orientação teórico-cultural e Direito de seres viventes
Observa-se um positivo, intensivo e crescente interesse por questões de justiça social, pela identidade de grupos marginais, alternativos, menos privilegiados, pela cultura do quotidiano do homem das grandes cidades, pela diversidade cultural e outros temas de alto significado; a perspectiva antropocêntrica, porém, permanece inalterada. Ela é até mesmo intensificada, pois o "potencial de indignação" de estudiosos responsáveis e sensíveis a questões éticas é quase que esgotado e as consciências apaziguadas com os esforços empreendidos a favor da cultura de contextos e grupos sub-privilegiados. Não se têm olhos para o horror sanguinolento que turva a história, o presente e até mesmo marca a identidade cultural construida de nações envolvidas no processo integrador. Trata-se, na teoria e na praxis, de patrimônio arquitetônico e cultural, amplia-se o seu conceito a patrimônio imaterial; quase não se considera, porém, o patrimônio natural, animal e, sobretudo, o patrimônio que representa as múltiplas tentativas do pessoas e organizações do passado que procuraram elevar o nível de sentimento e de consciência do Homem para com os demais seres viventes.
Herança negativa do passado
Os países que procuram agora integrar-se não apenas possuem um patrimônio de bens materiais de altíssimo nível que necessita ser reciprocamente conhecido, apreciado e avaliado. Não apenas possuem um patrimônio imaterial cada vez mais reconhecido, constituído por expressões culturais, música, dança, literatura, repertório de idéias e de imagens. Não apenas possuem um patrimônio natural que sob o ponto de vista ecológico, passa a ser valorizado por estudiosos e idealistas. Os países do Cone Sul não apenas podem estar orgulhosos de suas heranças positivas e que podem ser mutuamente compartidas e se transformarem em bens comuns. Eles possuem, também, heranças negativas, cada um em si e no seu conjunto, e que não podem ser esquecidas. Ainda que sendo desconfortável, o discurso integrativo não pode ser apenas otimista a tal ponto que a consciência seja turvada. Faz parte também de um processo integrativo considerar mutuamente a herança negativa do passado e procurar caminhos para a sua superação. A essa herança negativa pode-se incluir a da crueldade, a da falta de respeito para com os outros seres viventes. Alguns países até mesmo construiram em parte a sua imagem e a sua identidade acima da chacina de milhões de outros seres.
Falta de sensibilidade, colonialismo e o papel da Europa
Poder-se-ia argumentar, aqui, que essa falta de sensibilidade é também uma herança do colonialismo, uma extensão de práticas, costumes e usos da Península Ibérica. Sem dúvida tem-se aqui um transplante de mecanismos e práticas culturais altamente questionáveis do homem europeu, que aqui implantaram uma economia e um modo de vida que não respeita e não considera a Vida, apesar de toda a fundamentação religiosa do Colonialismo. No momento atual, porém, em que se coloca em revisão as estruturas coloniais implantadas, em que se procura uma nova identidade baseada na integração, dever-se-ia questionar essa herança "cultural" negativa, desmerecedora da civilização, sentida e compreendida como fato óbvio, natural, universal do gênero humano. Seria um péssimo contributo à Humanidade se os países que agora se integram também se fortalecessem nas suas heranças negativas, na desumanidade de práticas "naturalizadas", não mais refletidas. Além do mais, não se pode esquecer que essa herança negativa não é apenas de origem no colonialismo ibérico. Outras nações européias, entre elas a Grã-Bretanha, possibilitaram, em séculos posteriores, com o seu capital e técnica, a instalação e o desenvolvimento de empreendimentos altamente questionáveis do ponto de vista de uma ética para com os seres viventes. Também sob essa perspectiva dever-se-ia sustentar que a integração latino-americana, acima de interesses econômicos, necessita ser antes de tudo cultural. Se, impulsionados pelo Mercosul, a mola condutora dos esforços for primordialmente dirigida a interesses econômicos, então não haverá possibilidades de superação dessa herança negativa de falta de respeito para com os outros seres viventes. Ter-se-á cada vez mais a sua instrumentalização, o seu uso para fins lucrativos. Se, porém, a condução do processo integrativo se der sobretudo sob a perspectiva da reflexão histórico-cultural, então tem-se pelo menos a possibilidade de ganhar-se consciência da indignidade de situações vistas como normais, às vezes até mesmo estilizadas como típicas de nacionalidade. Ter-se-ia pelo menos um incentivo para que fossem procurados outros meios para o alcance de fins econômicos. O respeito à vida, a compaixão para com o sofrimento evitável e, sobretudo, o reconhecimento dos direitos de outros seres viventes deveriam constituir bases de uma verdadeira consciência integrativa.
Relações com contextos inglêses
A lista dos horrores da ação do Homem nos países do Cone Sul nas suas relações com a Europa é longa. Deveria fazer parte de uma história cultural construtiva apontar também - de forma autocrítica e mútua - a esses pontos desnobrecedores. Os documentos, os relatos do passado fornecem subsídios para a reconstrução necessária dessa história desconfortante e que não pode ser silenciada nos estudos euro-latinoamericanos. Muito não foi fixado, uma verdadeira visão nas suas verdadeiras dimensões pode apenas ser esboçada. Em geral foram olhos de estrangeiros que, ainda não acostumados "culturalmente" a situações como os nacionais dos vários países, que registraram, muitas vezes com comoção, práticas desumanas. "Es ist ein furchtbares Massenmord, ein wahrer Kulturfrevel" Como exemplo, recorde-se aqui descrição de Wilhelm Müller do Frigorífico Anglo de Buenos Aires, no seu livro tão elogioso sobre a América do Sul e cujos 80 anos estão sendo lembrados no corrente ano. "Entre as atrações técnicas e industriais de Buenos Aires e da América do Sul em geral encontram-se as grandes instalações frigoríficas de carne e as fábricas de conservas de carne, que sustentam uma grande parte do mundo com carne congelada e em conservas. Como carne congelada vem em questão principalmente carne de bois, vacas, carneiros e porcos. Através do intermédio amigo da representação suíça, consegui permissão para a visita da grande fábrica inglesa Anglo, onde diariamente pelo menos de 3000 a 4000 peças são mortas e no mais curto espaço de tempo, ou seja, em poucas horas, completamente industrializadas. Essa enorme fábrica, com os seus imensos estábulos de reses, que estão sempre repletos e que são desvaziados todos os dias, encontra-se nos fins da Bocca, ao mar. Já de longe ouve-se o mugir lamentoso dos pobres animais que esperam pelo seu destino. Os grandes cercados, em ca. de 10000 unidades estão permanentemente prontos a serem mortos, encontram-se ao redor da fábrica. Tem-se um quadro verdadeiramente triste dessas criaturas, em geral animais da bela raça argentina, marrom-escuro ou vermelho-marrom, bem alimentados, de porte mediano, exemplares mais novos e mais velhos, que diariamente vêm de todas as partes do país, da província Buenos Aires, de Rosario, Cordova, Santa Fé etc. em longos transportes. (...) Dos cercados, as reses são dirigidas inicialmente a grandes instalações com duchas e depois a banhos quentes. É um trágico-cômico ver sob o chuveiro e no banhos essas criaturas que nada imaginam do que vai ocorrer. Cheias de mêdo comprimem-se pacientemente às centenas, estarrecem com os seus grandes olhos apavorados através das grades, lamentam e mugem dolorosamente. A seguir, são empurradas para um corredor que leva do chão em linha direta ao sexto andar da fábrica. Esse corredor, pelo qual os animais limpos são conduzidos ao seu triste destino tem ca. 300 metros de comprimento, O meu guia e eu subimos então por um pequeno caminho balançante ao lado dessa rua da morte até o andar mais alto da fábrica. Os lamentos dos animais aumenta cada vez mais. Chegados ao alto, o observador, mesmo que já esteja preparado para ver todo o tipo de crueldade, depara-se com um quadro horrendo. O caminho, de ca. 4 metros de largura, pelo qual os animais são empurrados, vai ficando cada vez mais estreito. Se de início 4 ou 5 animais podiam caminhar um ao lado do outro, agora alcançam um canal estreito, em forma de mangueira, e que dá lugar apenas a um animal. Vários boiadeiros se encontram dos dois lados desse estreito corredor e instigam as reses que, angustiadas pretendem voltar atrás, com espetos elétricos para que sigam para frente. Os animais eletrizados se jogam nervoso- e convulsivamente para a frente, onde os esperam a tragédia. Quatro açougueiros, com bonés brancos e aventais de couro, encontram-se ao lado do corredor pelo qual os animais são instigados. No espaço de ca. de meio minuto cai uma machadada após a outra na cabeça das pobres criaturas. Um colosso após o outro cai. É uma horrenda chacina em massa do mundo animal, um verdadeiro crime cultural na criatura vivente. A visão faz estremecer, e poucas pessoas podem contemplar esse massacre criminoso sem chorar. Logo após a mortandade começa o tratamento industrial. A técnica da açougaria alcança aqui triunfos. Há uma competição entre máquina e o trabalho das mãos. O homem surge apenas como complemento da máquina e exerce só os atos principais. O animal, ainda se estremecendo na morte, ainda vivo, é amarrado por uma das patas dianteiras e elevado por um guindaste (...). As veias do pescoço são abertas com cortes violentos, o sangue escoe e é industrializado. O couro é preparado rapidamente (...). O material de conserva é enviado completamente a Londres. A fábrica e propriedade da sociedade de navegação Blue Star Line. Um tal fábrica de carne congelada é, na realidade, algo único e realiza, como dito, inacreditáveis na rápida preparação dos animais mortos. Do ponto de vista estético, porém, uma instalação desse tipo, que nas suas dimensões apenas pode ser encontrada em Chicago, um empreendimento questionável e, do ponto de vista moral, certamente duvidoso, pois uma carnificina tão horrenda a serviço do Homem representa um fato aterrorizante e um crime cultural no indefeso mundo animal.
(...)
O trabalhador numa fábrica como essa ganha um salário de 50 centavos por hora, um preparador até um pêso, ou mais. O trabalho estremece os nervos, é pesado e exige completa concentração. Os matadores trabalham em acordes de 3 horas. Outros trabalham 5 a 8 horas por dias. Mulheres e meninas recebem 30 centavos por hora. Como o chão da maior parte dos departamentos está sempre molhado e coberto de sangue, trabalham com tamancos. Muitos andam de pés nús em sangue e água. No departamento mais alto, onde ocorrem a matança, o destripamento e o corte dos animais, domina um odor penetrante, nojento, decorrente do sangue e da carne ainda quente, assim como das partes internas ainda vaporentas dos animais mortos. (...)"
(Das Schöne Südamerica. Reisen in Argentinien, Brasilien, Chile und Perú von Dr. Wilhelm Müller, 2a. ed.. Berlin: Globus, 1928, 63-67)
AAB
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).