Doc. N° 2331
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
113 - 2008/3
Cueca Chilena Gênero e paradoxos na consciência da nacionalidade de expressões culturais
Sessão do Seminário "Pesquisa da Cultura Musical na América Latina e Ciências Políticas" e extensões
Coquimbo e La Serena. Trabalhos da A.B.E. 2008
A.A.Bispo
O Seminário "Pesquisa da Cultura Musical na América Latina e Ciências Políticas", já considerado em outros números desta revista, dedicou especial atenção às danças consideradas como nacionais nos diferentes países e a sua função em discursos relativos à identidade nacional. Nesse contexto, considerou-se como significativo exemplo a Cueca Chilena. Nos estudos relativos à pesquisa cultural latinoamericana sob o enfoque de suas relações com a política há vários exemplos manifestos do significado político - e da instrumentalização política - de danças e gêneros musicais. O papel desempenhado pela guitarra como instrumento emblemático de combate , por exemplo no seu relacionamento com a Nueva Canción são explícitos e tratados nos próprios textos de canções. Com relação a danças, pode-se citar, entre muitos outros, o Merengue dominicano, cuja história apresenta indícios de sua instrumentalização política à época de Rafael Trujillo e, sobretudo, a Cueca chilena, cuja posição de dança nacional foi decretada pelo General Pinochet, em 18 de setembro de 1979. Nesse documento, lê-se: "Vistos os dispostos nos decretos leis números 1 e 28 de 1973, e 527, de 1974, e considerando: 1. Que a cueca constitui quanto a música e dança a mais genuína expressão da alma nacional; 2. Que na sua letra alberga a picardia do engenho popular chileno, assim como também acolhe o entusiasmo e a melancolia; 3. Que se identificou com o povo chileno desde o início da independência e celebrou com êle as suas gestas máis gloriosas, e 4. Que a multiplicidade de sentimentos que nela se conjugam refletem, não obstante a variedade das danças, com maior propriedade que nenhuma outra o ser nacional numa expressão de autêntica unidade. Decreto Art.1. Declara-se a cueca dança nacional do Chile Art. 2. O estado fomentará, através dos diversos organismos e instituições do setor cultural, o ensino, a divulgação, a promoção e a investigação de seus valores musicais e coreográficos." Essas singulares palavras, que demonstram e justificam o interesse particular do Estado num determinado gênero de dança e música, levantam questões que transcendem as fronteiras chilenas. No âmbito do Seminário, considerou-se a função da Cueca assim fomentada no âmbito da educação e da formação cultural, seja em escolas chilenas, seja em círculos chilenos do Exterior. A relevância dessas questões para os estudos culturais interamericanos em geral exigem porém uma superação das orientações tradicionais da musicologia e dos estudos do folclore e de etnomusicologia, dirigindo a atenção aos aspectos simbólico-antropológicos da ordenação semiótica do processo cultural colocado em vigência pela colonização.
Mais genuína expressão da alma nacional...
Já há muito constatou-se a notável expansão dessa dança e de danças com similar denominação em vários países da América Latina, o que torna digno de nota ser a mesma considerada como tipicamente nacional de um determinado país. O caminho para a elucidação dessa difusão em tão amplas regiões é naturalmente histórico, este, porém, não pode ser separado das conotações simbólicas da expressão. As discussões aqui deram prosseguimento a troca-de-idéias desenvolvidas nos anos 80 com Samuel Claro-Valdés, autor, com Carmen Peña Fuenzalida e María Isabel Quevedo Cifuentes, da mais pormenorizada publicação relativa à Cueca (Chilena o Cueca Tradicional. De acuerdo con las enseñanzas de Don Fernando González Marabolí. Santiago: Universidad Católica de chile, 1994, ISBN 956-14-0340-4). Considerado o marco teórico da obra, Samuel Claro-Valdés salientou o fator patrimonial da Cueca nos seus elos com a Europa: "No nos interesa aquí detenernos en el etudio de la música oficial, documentada, sino, en cambio, nos interesa indagar sobre la verdadera herencia musical de España en América: aquella que se preserva por tradición oral. Asimismo, adentrarnos en el estudio del conglomerado humano que se afincó en el Nuevo Mundo y que creó una fisionomía cultural y social propia y distintiva, que preservó tradiciones que anteceden al Descubrimiento y que se mantienen aún vivas entre nosotros". (pág.21) O interesse principal era o da reconstrução de um paradigma, um intento que indica claramente determinadas concepções historiográficas do projeto. "Nos atrae el fascinante hecho de que, a través del estudio de la música que nos ha llegado por tradición oral, se puede retroceder en el tiempo hasta reconstituir el modelo original, el cual, con el pulimiento de los siglos, ha ido adquiriendo cada vez mayor perfección." (ibidem) As principais proposições desse marco teórico eram:
1. As origens da chilena ou cueca tradicional se encontram na tradição oral recebida do povo árabe-andaluz que acompanhou o conquistador na sua passagem ao Novo Mundo, a que mantém a herança poético-musical árabe chegada à Península Ibérica a partir da dinastia dos Omeya, no século VIII;
2. Na América se preservaram traços musicais provenientes da herança musical de uma Espanha tridimensional: cristã, judia e muçulmana. Essa tradição se manteve principalmente por meio da mestiçagem racial e cultural que caracteriza o continente, especialmente por via paterna, e chegou com notável fidelidade até os dias atuais. Graças à persistência da tradição oral é possível recuperar e reconstruir versões originais de espécies que já desapareceram nos seus lugares de origem e que se mantiveram no tempo, com uma enorme força de identidade;
3. Durante o período colonial, essas expressões tradicionais se mantiveram na penumbra, toleradas oficialmente como bailes da terra, alcançaram novo vigor com o processo da independência, para serem posteriormente perseguidas pela sua imensa capacidade de coesão e identidade; justamente pela condição insular do Chile, preservou a sua força mestiça e a tradição árabe-andaluz recebida a partir da Conquista;
4. A chilena ou cueca tradicional interpreta e trata de reproduzir a perfeicão do universo criado por Deus, suas relações matemáticas e a harmonia da evolução dos corpos celestes; há, assim, uma verdadeira interpretação da chamada música das esferas expressa na cultura;
5. Os trabalhos realizados até o momento não compreenderam a fundamental relação numérica que existe entre poesia e música, a que dá ao gênero estrutura e força criadora;
6. O estudo da estrutura da cueca revela importantes relações com outras espécies musicais da tradição popular, tais como a cumbia, a tonada, o tango, a marinera - que não é outra coisa que a cueca -, a valsa e a canção, assim como com jogos populares que poderiam ser denominados de cosmológicos;
7. Tudo isso permite sustentar que o Novo Mundo tem um horizonte cultural muito mais antigo que os 500 anos de encontro que estavam para ser comemorados em 1992, tendo raízes em milênios de culturas ocidentais e orientais e conservando tradições que o Velho Mundo já perdeu. (op.cit. 21-22)
Novas reflexões sobre a simbologia: galinhas e galinhas chocas
Apesar da excelência da obra citada, modelar sob muitos aspectos e marco de uma fase do desenvolvimento de uma musicologia de orientação cultural, o Seminário dedicou-se à necessidade de reconsideração de seus pressupostos teóricos e das conseqüências das análises. Apenas alguns aspectos da discussão podem ser aqui esboçados. Várias têm sido as tentativas de esclarecimento das origens da Cueca. As hipóteses levantadas implicam sempre em elucidações do termo. Uma das explicações mais divulgadas da designação Cueca para essa dança é aquela que a vê como deturpação do espanhol Clueca, ou seja, que se refere a uma galinha. De fato, o termo Clueca surge explicitamente como designação da dança em termos compostos (Zambaclueca). A dança representaria, assim, a côrte amorosa de um galo a uma galinha. O fato de o par dançar separado, os pequenos saltos ágeis, o uso de lenços, o gesto das dançarinas com as saias no sentido de sofrear o parceiro e sobretudo o sapateado (Taconeo) foram interpretados nesse sentido. Alguns estudiosos, porém, consideram como estranho que movimentos tão brejeiros possam representar uma galinha que esteja choca. Percebe-se, assim, como a falta de uma orientação simbólico-antropológica em perspectivas disciplinares tradicionais pode levar à incompreensão quanto ao sentido de uma expressão cultural. O termo choca pode ser entendido, primeiramente, não que a galinha estivesse chocando ovos, mas sim, do ponto de vista do linguajar popular, que a parceira da dança não está disposta ao cortejo amoroso, o que força o parceiro, naturalmente, a esforços particularmente intensos para conquistá-la. Embora podendo surgir de forma substantivada, trata-se de um adjetivo que indica o estado não-receptivo e a atitude esquiva da galinha, um termo que não aparece explicitamente. Sabe-se, porém, que a palavra galinha pode ser empregada com significado pejorativo para designar uma mulher, insinuando que esta leva uma vida leviana, sendo fácil de ser obtida, ou seja, barata. Trata-se, portanto, de uma dança com particular interesse para estudos de Gênero, uma vez que a sua designação, no feminino, diz respeito a uma mulher e tem conotações de cunho sexual pejorativo: indica uma mulher em princípio volúvel e sem princípios morais rígidos que se encontra momentâneamente sem interesse para o jôgo erótico. Torna-se compreensível, assim, que entre as diferentes formas de expressão da Cueca exista uma que se chame de Cueca prostibularia, com textos lascivos e de duplo sentido, outra com o título de Cueca carcelera, sugerindo situações em presídios, ainda outra Cueca caminera, relacionada com trabalhadores itinerantes. A relevância dessas considerações resulta porém da questão: qual é o tipo de mulher insinuado? Qual seria aquela momentaneamente esquiva, "choca", mas em geral sempre pronta para a ação sexual? Essa questão pode ser claramente respondida considerando-se a designação completa da dança, tal como ainda é conhecida em várias regiões: Zambaclueca, Zambacueca ou Zamacueca. O tipo de mulher insinuado é a Zamba, e aqui se revela todo o potencial discriminatório da designação. Zamba (Samba) significa aqui, na terminologia advinda do período colonial, a mulher que é produto da miscigenação entre o africano e o índio. A pejorativa insinuação que a Zamba seria uma galinha manifesta portanto uma atitude altamente ofensiva com relação à mulher resultante de tal união. As características de temperamento e de caráter que se imputavam a essa mulher diferenciavam-se daquela da africana e da mulata, embora também negativas. A dança representaria, assim, a mestiça afro-índia que estaria atipicamente sem vontade, e o termo Choca, independentemente empregado, implicaria que se trata de uma mulher em princípio sensual, tal e qual uma Zamba. O tipo aqui sugerido indica a mestiça por excelência dos grupos menos privilegiados da sociedade colonial. É a representação com conotação feminina da esfera mais popular, socialmente mais inferior da população. A partir daqui torna-se compreensível que essa dança assumisse cunho emblemático com relação a determinados grupos populacionais e a regiões, em particular aquelas camponesas, rurais e afastadas. Conhece-se, assim, uma Cueca nortina, de cunho rústico do Norte do Chile, a Cueca campesina e a centrina da Zona Central, a Cueca chilota (de Chiloé), a Cueca boliviana e, naturalmente, a própria Cueca chilena. O complexo jogo de conotações se manifesta sobretudo no fato de que esses termos designativos de cunho regional e nacional podem ser reduzidos à sua substantivação, transformando-se assim a Cueca Chilena simplesmente em Chilena. Dessa forma difundiu-se na América Central e no México, trazida por trabalhadores chilenos. Toda a atenção é aqui pouca na necessária diferenciação do sentido das palavras. O termo Chilena indica aqui não o tipo feminino representado, não a Zamba, mas sim a identidade nacional da expressão. A conotação negativa ou irônico-grotesca que recebe a Zamba indica que essa expressão cultural não é auto-denominação, ou seja que a dança não é de origem africana, indígena ou mesmo mestiça, mas sim do colonizador ou de seus descendentes. O europeu e o criollo representam aqui a mulher do povo, com toda a carga discriminatória transmitida por concepções consuetudinárias, representam-na porém não no sentido de admoestação e crítica, mas sim de forma lúdica, divertida, alegre, por assim dizer com simpatia. Aqui reside, pelo que tudo indica, a principal potencialidade política dessa expressão cultural marcada pela perspectiva de europeus ou de descendentes de europeus: a atenção condenscendente para com o povo, a demonstração de que se está do seu lado, atitudes que tornam compreensível o papel da Cueca no período da Independência e na longa história da política conservadora do Chile. Tudo indica que haveria uma potencialidade para o populismo nessa expressão cultural.
Quais seriam, porém, as origens e os fundamentos dessa expressão na ordem simbólica da cultura européia colonial? A figura da Zamba representa apenas o resultado de uma adaptação às circunstâncias da mestiçagem populacional na América Latina. Qual seria o prototipo dessa imagem da mulher de vida e reputação duvidosas e qual seria a justificativa conceitual de um sistema que a representaria de forma lúdica? Sabe-se que a palavra Zamba era utilizada na Península Ibérica no passado. Na Cueca Chilena, a própria dançarina é denominada de China. Também esse termo é conhecido da história da cultura popular ibérica. Apesar das dificuldades que surgem para a explicação desse termo, poder-se-ia pelo menos afirmar que aqui se trata de uma denominação que indica uma estranha ou uma estrangeira. Qual seria, porém, o tipo de mulher a quem caberia tal conjunto de conotações -vida fácil, escura ou mestiça, estrangeira? A atenção se dirige aqui naturalmente à figura da moura, cujo papel na cultura ibérica do passado é conhecido de tradições e de estudos histórico-culturais.
Imagem da "moura", seus fundamentos e representações lúdicas
Vários musicólogos e folcloristas chilenos procuraram demonstrar uma origem íbero-árabe da Cueca. Essas tentativas corresponderam, pelo que tudo indica, também a um desejo de nobilitação histórico-cultural dessa expressão cultural. Com base na condução do pensamento acima exposta, porém, uma derivação direta de expressões culturais árabes parece ser totalmente improvável. Nada justificaria tal sobrevivência na ordenação cristã da cultura ibérica e, muito menos, a conotação por assim dizer grotesca da expressão. Poder-se-ia porém partir da idéia de uma representação (discriminatória) da moura, justificando assim o uso de atributos identificadores - inclusive sonoros - da vida moura. Essa elucidação explicaria a presença de elementos que sugerem ambientações árabes constatados pelos musicólogos e folcloristas. A figura da moura no populário cristão é plenamente compreensível a partir da hermenêutica bíblica correspondente a Ismael, o filho de Abraão de Hagar, a escrava do Egito, que, segundo a elucidação paulina, representaria uma alegoria da obra da carne. Isso explicaria também a simbologia da tenda e da itinerância constatada por pesquisadores da cultura na prática da Cueca. A representação distanciada, lúdica desse mundo superado pelos cristãos é própria das expressões lúdicas de determinadas épocas do ano, em particular do Natal, do Carnaval e da natividade do Precursor. A Zamba estaria assim relacionada com a moura a partir da tipologia alegórica da mestiçagem representada em Hagar. Somente nesse sentido simbólico-antropológico é que as expressões culturais relacionadas com a Zamba teriam uma origem africana. Toda a interpretação positivista que sugira uma derivação histórica direta - "extensões" - é produto de uma falta de compreensão da hermenêutica da ordem simbólica da cultura cristã. Tais supostas evidências - até mesmo comprovadas através de análises comparativas -representam não a origem das expressões, mas sim o uso de atributos que auxiliam ao observador e ao participante a representação de determinado contexto simbólico. A visão condutora, a perspectiva sob a qual a expressão se manifesta é européia. Dependendo das circunstâncias da constituição populacional das diversas regiões da América Latina, esses atributos - também sonoros - relacionaram-se mais ou menos com as múltiplas possibilidades oferecidas pelo complexo simbólico: africano, árabe, mouro, homem rústico europeu, campesino latinoamericano ou mestiço. Isso explica as diferentes formas de manifestação visual, coreográfica e musical de uma mesma configuração simbólica, seja a Zambacueca dos vários países, a Zamba argentina, o Samba brasileiro nas suas várias modalidades. Sob esse aspecto, os estudos do Samba estão a exigir fundamental revisão de suas bases epistemológicas. Esses estudos apenas poderão ser desenvolvidos a partir de uma perspectiva que considere processos culturais interamericanos em estreito relacionamento com processos transatlânticos. Os debates deverão ter continuidade.
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).