Doc. N° 2338
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
113 - 2008/3
Auto-consciência e identidade na história cultural das intenções integradoras: Uruguai 75 anos do Americanismo Musical
Atividades comemorativas da A.B.E./ISMPS. Trabalhos em Montevideo, 2008
A.A.Bispo
Montevideo Jornadas da A.B.E. 2008. Fotos A.A.Bispo Em pronunciamentos referentes ao Mercosul, constata-se que representantes do Uruguai salientam um papel especial dessa nação na história dos esforços integrativos que teriam preparado a recente dinâmica de aproximação dos países do Cone Sul do continente. A declaração de que Montevideo representa a capital do Mercosul ornamenta, em cartazes e faixas edifícios públicos, museus e ações culturais. Para os estudiosos de assuntos teórico-culturais em relações internacionais coloca-se a tarefa de considerar as razões da consciência que aqui se manifesta, os fatos que são apontados como justificadores e a análise histórico-cultural das correntes de pensamento e de ação impulsionadas pelo Uruguai. Uma das manifestações mais expressivas dessa consciência pode ser vista nas palavras que Sérgio Enrique Abreu Bonilla, ex-chanceler da República Oriental do Uruguai, pronunciou, há dez anos, por ocasião da publicação do "Atlas cultural, social e econômico" do Mercosul. O Uruguai é apresentado explicitamente como centro dos esforços integradores do Cone Sul, e essa posição corresponderia a uma identidade nacional conformada pela situação geográfica, pela história e pela realidade econômica. O padrão cultural assim definido, que marcaria a identidade cultural do país, seria ao mesmo tempo um critério de sua diferenciação no contexto latino-americano. "O Uruguai manifestou sempre uma clara intenção integradora. Sua posição geográfica, seus antecedentes históricos e sua realidade comercial e econômica o ligaram aos seus sócios naturais da Bacia do Prata. Os campos do Uruguai, suas fronteiras e porto definiram uma identidade que, apesar das rápidas mudanças da história, situam o país no centro dos esforços integradores do Cone Sul.
A integração para o Uruguai, porém, não se resume aos aspectos comerciais. sua estratégia geopolítica e sua composição demográfica definiram também um padrão cultural que o distingue na policromática expressão da América luso-hispânica. (...) O Uruguai vê na integração um projeto político, econômico e cultural (...) E cultural porque, em seus recursos humanos, em suas capacidades e possibilidades, descansa o verdadeiro papel que o país deve desempenhar no quadro multilateral e regional." (Mercosul: um atlas cultural, social e econômico, Buenos Aires/Rio de Janeiro: Manrique Zago/Instituto Herbert Levy 1997, 64-67, 64).
Papel da música na história integrativa do Urugua
Revendo-se a história dos impulsos integrativos partidos do Uruguai no âmbito da cultura, constata-se uma singular importância da música. Esse fato pode parecer surpreendente, uma vez que a música uruguaia não marca a imagem do país tão intensamente como a de outros países, entre êles o Brasil e a Argentina. Não se trata, porém, aqui, da criação musical uruguaia, mas sim do papel privilegiado reconhecido na música como fator integrativo, e nesse sentido, pode-se dizer que o Uruguai assumiu uma posição pioneira e influente na história cultural e das idéias, apenas explicável por fatores relacionados com a auto-consciência integrativa que marca a identidade cultural do país. Um dos grandes vultos da história cultural do século XX que encarnaram anseios integradores a partir do Uruguai e que mais lutaram para a sua difusão no Brasil e em outros países americanos foi Francisco Curt Lange, musicólogo de origem alemã radicado no país e que determinou por décadas o desenvolvimento do pensamento musical na América Latina. As suas concepções e ações partiram explícitamente da música como privilegiado fator integrativo. Assim, já em 1931, através da fundação do Instituto Interamericano de Musicologia, transformava-se Montevideo em sede de uma instituição que, embora vinculada ao Ministério das Relações Exteriores, tinha claramente objetivos supranacionais. Uma auto-consciência de ser o centro dos esforços integradores do continente não poderia ser expressa de forma mais evidente do que aquela que marca as publicações e as ações da instituição e de seu fundador-diretor através das décadas. Em 1981, por ocasião da passagem dos 40 anos de fundação desse instituto, quando o Uruguai até mesmo lançou um sêlo comemorativo, Francisco Curt Lange, em carta-pronunciamento dirigida a instituições de todo o mundo, lembrou que esse instituto representou um esforço impar, que teria dado, através de várias gerações, seus esperados frutos.
"Nuestra América Latina guarda en el humus de su tierra, rica en sorpresas, y en el seno de sus habitantes provenientes de tres razas, forjadoras del crisol americano, insospechados recursos. Y de éstos, música y musicología formarán parte indeleble de un incontenible proceso de superación."
Americanismo musical a partir do Uruguai e o Brasil
Em fins de 1934, Francisco Curt Lange realizou uma viagem de estudos e contactos ao Brasil na sua qualidade de diretor da Seção de Investigações Musicais do Instituto de Estudos Superiores da Universidade de Montevideo. A convite da Associação Brasileira de Música, proferiu conferências no Rio de Janeiro. O tema da sua primeira conferência, realizada para o Instituto Nacional de Música foi, significativamente: "Americanismo musical: Idéias para uma futura sociologia musical latino-americana". Essa conferência pode ser considerada como um marco no desenvolvimento das reflexões músico-culturais na América Latina e, ao mesmo tempo, importante manifestação da história dos esforços integradores do Uruguai. Nessa conferência, Francisco Curt Lange, salientou o significado transcendente do movimento integrativo guiado pela música sob o pano de fundo das circunstâncias político-internacionais ameaçadoras da época. No seu pensamento, a integração americana sob a égide da música seria uma garantia para a paz. A música, como condutora, seria muito mais eficiente do que o próprio papel irmanador do idioma.
Neste momento, que não deixa de ser histórico, o Brasil e o Uruguay estão construindo, em nossa paizagem artistica, uma ponte indestructível, que deve servir de exemplo às demais artes. Emquanto na Europa os horizontes carregam-se de nuvens obscuras, que parecem annunciar uma nova hecatombe, procuremos eliminar semelhantes possibilidades do Continente Latino-Americano, contribuindo com nossa arte. Sabemos por experiência - a historia o ensina - que a identidade de idiomas, em nações irmãs, não impede a deflagração de guerras fratricidas. antes que se extremem os problemas economicos devemos construir essa ponte cheia de ideaes communs, para irmanar as nações no laço indestructivel da linguagem superior da musica, unida á literatura, á poesia, á architectura, ás artes plasticas e ás sciencias. ("Americanismo musical: Idéas para uma futura sociologia musical latino-americana", Revista Brasileira de Música II/2, 1935, 93-113, 113)
Desconhecimento mútuo
Um dos graves obstáculos que Curt Lange via na aproximação dos povos americanos residia no desconhecimento recíproco. Apesar da proximidade geográfica, muitos intelectuais latino-americanos, sobretudo também os brasileiros, dirigiam os seus olhares sobretudo à Europa. Pouco teriam percebido e avaliado as similaridades culturais existentes acima de todas as diferenças culturais entre as várias nações latino-americanas,
Vivemos em um continente que, sem duvida, poucos leitores conhecem em seus multiplos aspectos geographicos, economicos e culturaes; poucos terão contemplado, já, suas tão variadas e numerosas bellezas naturaes, estudado seus esforços espirituaes e procurado reconhecer a semelhança de expressões emanadas de cada uma das nações que o compõem, não obstante suas particularidades nacionaes e regionaes. É, entretanto, bem elevado o numero dos que conhecem perfeitamente o meio physico da Europa, e consideram um dever, uma especie de complemento cultural indispensavel, percorrer os paizes principaes do Velho Continente, sem que jamais tenham pensado fazer outro tanto com a parte do mundo em que vivem, a qual forma uma região immensamente rica e poderosa, tanto no sentido material como no espiritual: refiro-me ao Continente Latino-Americano, á terra que habitamos, da qual procedemos e á qual volveremos, á terra que nos dá nutrição e alenta nossas energias physicas e espirituaes." (op. cit., 93)
Anseios integrativos enraizados
Curt Lange salientava que o movimento integrador, correspondendo a necessidades do momento, era, na verdade, expressão de um anseio cultural profundamente enraizado. Fazia-se, assim de porta-voz de uma posição que se poderia dizer especificamente própria da identidade uruguaia.
Pude observar que em todos os artistas havia, latente, um immenso desejo de communicação, de serem comprehendidos, sinceramente julgados e estimulados na tarefa emprehendida, e que consiste em levar a cabo uma orientação natural, completamente logica, a unica prescripta pela eterna lei da natureza e do meio physico. Houve tentativas particulares de aproximação e recíproco conhecimento, nascidas sempre como uma necessidade e comparaveis ao grito de um ser suffocado em ambiente demasiadamente estreito. Seguramente em muitos espíritos amadurecia a idéa de uma cooperação interamericana; lançar, porém, essa idéa, parecia gigantesco, e temerario organisar praticamente a união latinoamericana, não sómente dos interesses profissionais (...) (loc.cit.)
Montevideo como ponto de partida e centro
Tal como em pronunciamentos atuais, já Curt Lange procurava justificar a razão da escolha de Montevideo como centro dos esforços integrativos pelas condições naturais e históricas do Uruguai.
"Essa tarefa, cuja realização é desejada por todos, e que muitos consideram uma ousadia, eu a tentei em Montevidéo, procurando despertar um movimento (...)
Alguns leitores, talvez, perguntarão porque se estabeleceu esse Instituto em Montevidéo, julgando que seria mais conveniente procurar outro paiz, maior em extensão territorial, mais opulento em producção artistica. Creio sinceramente que a situação topographica de Montevidéo não podia ser mais favoravel á realisação de nossos propositos. Paiz visinho do Brasil, ao qual está unido por vinculos inseparaveis e uma grande sympathia, elle é o eixo das communicações com o Pacifico e o facto da Colombia, o Equador, a Venezuela, Cuba e o Mexico se acharem muito afastados não tem impedido a aproximação sempre crescente dessas nações (...) A centralisação no Brasil offereceria, certamente, difficuldades, devido ao idioma (...)." (op.cit.)
Auto-consciência e despertar de consciências
O tema "Americanismo Musical" marcou também artigo inaugural do Boletim Latino Americano de Música, publicado pela instituição que Francisco Curt Lange dirigia, a partir de 1935. Nesse texto, manifestou expressamente o significado da adesão do Brasil aos esforços partidos do Uruguai.
"Apenas iniciado el movimiento de dignificación del arte musical latino-americano, de una fructificación recíproca de ideas y hechos, y viendo despierta súbitamente la conciencia artistica de nuestro continente, creciendo diariamente el número de adherentes incondicionales a nuestros sanos propositos, era preciso crear, por encima de una copiosa correspondencia de hombre a hombre, de institución a institución, un órgano que fuese no solamente el defensor de nuestros ideales, sino a la vez un campo donde dar a conocer nuestras capacidades, nuestros esfuerzos y desvelos, nuestras legítimas aspiraciones y fundadas esperanzas.(...) Es preciso dejar constancia de la íntima satisfacción que nos produjo la comprensión inmediata y adhesión espontánea de las autoridades musicales y centros de arte del Brasil. Nuestra reciente visita representa en los anales de la Historia musical americana, un jalón victorioso en la realización de tan difícil empresa, una compenetración ideal de positivos resultados. Con este viaje quedó nuevamente demostrado cuan necesario es el contacto personal periódico con los colaboradores. Nunca vióse mejor la necesidad de un Congreso latino-americano de Música, destinado a fortificarnos mutuamente al conocer valores y confortarnos viendo una multitud de artistas bien inspirados, sanos de spíritu y alma" (Editorial, Boletin Latino-Americano de Musica I/1, Montevideo 1935, 9-12) Nas suas palavras, Francisco Curt Lange mencionava o fato de estar o Brasil predominantemente representado nesse primeiro número do Boletim, e isso através de artigos de renomados intelectuais e compositores brasileiros. Salientava, sobretudo, que esses artigos estavam sendo publicados em português, em órgão editado no Uruguai. Percebe-se, nesse fato, a repercussão de sua estadia no Brasil, onde havia percebido que uma das principais reservas relativamente aos esforços partidos do Uruguai dizia respeito justamente ao idioma, no receio de que o português pudesse ser suplantado pelo castelhano. Assim, Luís Heitor Correa de Azevedo, na sua saudação a Curt Lange, por ocasião de sua visita ao Rio de Janeiro, havia deixado clara a exigência do emprêgo do português. Referindo-se oficialmente à revista poliglota Cultura Artística, lembrava que seria possível tolerar o insuficiente domínio oral do idioma por parte de estrangeiros que atuavam nas esferas culturais, na área editorial, porém, o uso do português seria indispensável.
"No próprio interesse do aperfeiçoamento nacional, devemos permitir por certo tempo, ainda, que o estrangeiro tome alguns de nossos lugares, afim de que o mais capaz tècnicamente substitua o insuficiente. Temos de fechar os olhos e tapar os ouvidos, na babel de povos absorvidos pela nacionalidade, aos sacrifícios impostos ao nosso idioma. Mas que ao menos êle, e sòmente êle, o belo idioma purissimo de Camões e de Bilac, seja empregado nas publicações feitas em nome da coletividade brasileira."("Nacionalismo Musical (Fragmentos). De uma saudação a Francisco Curt Lange", Luís Heitor, Música e músicos do Brasil: História, Crítica, Comentários, Rio de Janeiro, 1950, 402-404, 404)
Intuitos integrativos e difusão
A fundação do Intituto Interamericano de Musicologia e o movimento do Americanismo musical devem ser considerados no contexto da história cultural do Uruguai de fins da década de 20 e início da de 30. Sobretudo a radiofonia veio de encontro aos anseios de superação de limitações do meio. A 20 de junho de 1931, a sala do ex-teatro Urquiza, transformada em Estudio/Auditório, era sede do concerto inaugural da Orquesta Sinfônica do Servicio Oficial de Difusión Radio Eléctica (SODRE). Os concertos passaram a ser transmitidos simultâneamente pela Estación C.X. 6 do SODRE. Essas atividades foram acompanhadas de medidas educativas de músicos e de ouvintes que surgem hoje como singulares e surpreendentes. No seu artigo "Organización musical en el Uruguay", publicado no Boletim N°1 (op.cit. 111-117), F. Curt Lange expõe pareceres extremamente rígidos quanto à disciplinação do público: "de la costumbre, al parecer dificil de extirpar, se pasa fácilmente al orden." (pág. 113) A princípio, tendo em conta interesses nacionais, a direção da OSSODRE havia sido confiada a maestros uruguaios. Em outubo de 1931, a Comissão Diretiva do SODRE contratou Lamberto Baldi, jovem italiano que atuara em São Paulo. Inclinado para a música contemporânea, facilitou a sua divulgação entre os ouvintes do Uruguai e dos países vizinhos. Para Curt Lange, porém, seria necessário intensificar a difusão de obras de compositores de outros países latino-americanos:
"Es justo que la ejecución de obras latino-americanas se haga de una manera recíproca, que todos los directores de orquestra las introduzcan en sus programas, como lo han hecho hasta ahora Walter Burle-Marx en Rio de Janeiro, el Teatro Colón de Buenos Aires y José Francisco Berrini en Rosario. ya podemos hablar de una literatura sinfónica latino-americana, de obras de positivo valor dentro de una prodccuón realmente asombrosa de distinta calidad. Sin embargo, sólo una organización consciente, una especie de Central distribuidora de partituras y material como la anhela la Sección de Investigaciones, podrá encanzar las justas aspiraciones de muchos compositores." (op.cit. 114)
Esforços integrativos e estudos de identidade
O extraordinário esforço de Francisco Curt Lange, as suas visões amplas e progressistas para a época, os sucessos que alcançou surgem hoje não apenas como expressões de uma etapa de particular relevância na história do pensamento musical nas Américas e como fenômeno singularmente predecessor de intuitos integrativos que passaram a ser impulsionados recentemente. Como parte da história cultural, o Americanismo musical pode ser êle próprio objeto de estudos teórico-culturais. A partir de perspectivas abertas por estudos mais recentes pode-se tentar compreender a ação extraordinária desempenhada justamente por um europeu no movimento integrador. Foi sempre motivo para surprêsa e fascínio o entusiasmo, a paixão que Curt Lange sempre demonstrou com relação a questões americanas, em particular latino-americanas, a sua extraordinária energia e força de trabalho colocada a serviço da causa. A convicção e a auto-consciência de Curt Lange transparecem de seus escritos e foram marcas de seus pronunciamentos e ações. Apresentava-se como que a serviço de uma missão, e essa atitude de extremada consciência de si e de sua tarefa nem sempre foi bem entendida e aceita, dando margens a inúmeras polêmicas, sobretudo no Brasil. Procurou-se, várias vezes, explicá-la como produto de sua personalidade, origem e formação. Hoje, porém, levanta-se a questão se as razões de sua atitude e que tanto marcou o movimento do Americanismo não deveriam ser analisadas no âmbito de processos identificatórios relacionados com a sua integração no Uruguai. Os estudos da imigração e de processos de transformação de identidades mais recentes têm demonstrado as relações entre a instabilidade de imigrados em novos ambientes e os impulsos de auto-afirmação. Tais estudos dão continuidade àquelas análises que já há mais tempo estão sendo dedicadas a mecanismos de transformação de identidades de populações nativas no âmbito da história da colonização e da conversão. A questão tem sido sobretudo analisada sob o aspecto do indígena e do africano cristianizado, prosseguindo-se com estudos da miscigenação e de suas conseqüências. Tem-se salientado, nesse contexto, a situação quase que paradoxa marcada pela labilidade de vínculos identificatórios e o desejo de suplantação e auto-afirmação que permitiriam elucidar tendências culturais marcadas por manifestações de domínio técnico e pelo exagêro de expressões. O converso se tornaria mais cristão, mais europeu do que os próprios colonizadores e missionários, mais brilhantes no domínio de correntes artísticas e intelectuais do que os seus modêlos europeus. Pouco se tem considerado, porém, nos estudos culturais de conformação de identidades, a situação da contraparte, a do próprio europeu imigrado que procura integrar-se no Novo Mundo. A instabilidade também aqui é a situação dominante, o impulso de auto-afirmação, porém, diferentemente orientado. Não se trata, como no caso do indígena, de integração no universo daquele que vinha de fora. O imigrante, que procurou a integração e integrou-se no novo meio, tornar-se-ia mais americano do que os americanos, mais apaixonado pelo meio ambiente e cultural do que aqueles que nele nasceram. Nesse sentido, seria significativo considerar-se mais pormenorizadamente o papel desenvolvido por estrangeiros na história cultural de vários países latino-americanos do século XX, sobretudo relativamente ao fomento da pesquisa da cultura popular, das tradições, do cultivo do canto em idioma nacional e da criação artística local. Ao contrário porém do indígena e do mestiço do passado, o europeu imigrado não teria que lutar contra discriminações tão intensas, podendo até mesmo gozar de um prestígio fundamentado na história cultural européia. O impulso de auto-afirmação manifestar-se-ia aqui não tanto no exagêro das expressões interpretativas e nas manifestações da inteligência prática, mas sim e sobretudo no entusiasmo idealístico, no ímpeto doutrinário. É significativo que Curt Lange, um dos mais apaixonados e incansáveis promotores da cooperação interamericana tenha sido também o revelador do Barroco musical latino-americano, em particular do brasileiro, de seus valores, e do "Mulatismo musical".
Prospecções
O vulto de Curt Lange, portanto, oferece êle próprio possibilidades de análises histórico-culturais. Estas não deveria visar tanto a elucidação de aspectos de sua personalidade brilhante e complexa, nem sempre compreendida, mas sim e sobretudo a do próprio movimento que tanto propagou. Sendo esse movimento estreitamente vinculado à sua pessoa, parece também poder ser analisado sob aspectos teórico-culturais correspondentes, ou seja, no contexto amplo do processo transformador e formador de identidades, no caso de europeus que se integram no universo latino-americano. As conseqüências dessas reflexões não podem ser menosprezadas. Surgindo o movimento americanista centralizado no Uruguai, com intuitos claramente predecessores de esforços integrativos atuais, agora impulsionados pelo Mercosul, abrem-se aqui possibilidades de análises mais profundas dos próprios mecanismos que possivelmente se encontrem subjacentes. Análises elucidativas desses mecanismos poderiam talvez prever e evitar a perda do meio-termo, a queda em exagêros auto-afirmadores e de complexos intuitos superadores, seja de entusiasmos doutrinários e de ímpetos, seja de visões culturais dirigidas a expressões marcadas por barroquismos e por demonstrações de superioridades.