Doc. N° 2312
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
112 - 2008/2
Alemanha-Brasil
Fernando de Magalhães no romance histórico alemão dos anos 30 "Linguagem dos fatos" e a imagem do "homem heróico" na interpretação histórica: Rudolf Baumgardt
Trabalhos da A.B.E. 2008
A.A.Bispo
Há uma vasta literatura alemã dos anos trinta e quarenta do século XX que caiu no esquecimento, cujos autores estão esquecidos ou são pouco considerados em obras específicas. São livros que foram impressos em grandes edições, alcançando ampla divulgação nos países de língua alemã. Hoje, encontram-se em grande número em antiquários, são porém pouco procurados. Somente aos poucos redescobre-se essa literatura, e esse interesse é devido a uma perspectiva não tanto literária mas histórico-cultural: nessa literatura pode-se encontrar materiais para análises de mentalidades de uma época altamente conturbada. Muitas dessas obras foram também difundidas no Exterior, em comunidades de imigrantes, ou trazidas por fugitivos e exilados. Na imigração, adquiriram por vezes maior significado do que na própria Alemanha, por se tratar de literatura de cunho popular, de fortes apelos emocionais. Algumas dessas publicações tratam de assuntos explicitamente referentes ao Brasil e a outros países da América do Sul. Pouco têm sido porém consideradas nos estudos específicos, uma vez que apresentam dados nem sempre fidedignos e objetivos. Entretanto, também aqui merecem especial consideração do ponto de vista da história cultural no contexto das relações internacionais. A A.B.E. vem dando particular atenção à análise crítica dessas obras esquecidas, o que pode ser constatado em vários números desta revista.
Uma das obras praticamente desconhecidas nos meios acadêmicos no Brasil, embora encontrada em coleções de imigrantes alemães no país, é um romance histórico dedicado a Fernando de Magalhães, de Rudolf Baumgardt, com o subtítulo de "A História da primeira viagem ao redor do mundo" ((Rudolf Baumgardt, Fernando Magallan: Die Geschichte der ersten Weltumseglung, Berlin: Zeitgeschichte-Verlag 1941). Muito mais do que o esperado de um romance, esse livro marcou a imagem do navegador e a da primeira viagem ao redor do mundo, inclusive fora da Alemanha. É digno de nota que, em 1943, foi publicada em francês, em Paris (Rudolph Baumgardt, Magellan. Paris: Editions Denoël, 1943)
Rudolf Baumgardt, hoje pouco lembrado e considerado, nasceu na Prússia Oriental, em Zoppat, região de Danzig, a 9 de julho de 1896. Faleceu em Würzburg, a 27 de janeiro de 1955 (ou 1957). Foi doutor em Direito e Ciências Políticas, prefeito e autor de vários livros, sobretudo novelas, poemas e peças teatrais. É um nome de certo significado para a região da antiga Prússia Ocidental pelo seu romance Die Rodendahls (1951), onde retrata a estória de uma família de Danzig, de 1886 a 1945. De seus romances e novelas, alguns alcançaram grande divulgação (Das Landhaus der Sultanin; Das silberne Band; Der Kardinal; Schloss Wiesenberg; Sikor, Ekstatische Novellen; Dedicou-se em particular ao romance histórico e à história romanceada a partir de determinados vultos, destacando-se o seu livro dedicado a Bismarck (Bismarck, Licht und Schatten eines Genies), Carl Schulz (Carl Schulz, Ein Leben zwischen Zeiten) e, sobretudo, aqueles sobre a vida de Alberto Magno (Der Magier: Das Leben des Albertus Magnus) e sobre Carlos XII da Suécia (Karl XII von Schweden: Der Held aus den Norden). Uma consideração justa das qualidades literárias dessa surpreendentemente vasta - mas hoje ignorada - produção de Rudolf Baumgardt e de uma crítica de sua possível inserção na história política da época somente poderão ser feitas após pesquisas e publicações mais pormenorizadas. No caso dos estudos euro-americanos, cumpre salientar a singularidade do interesse pela vida de Fernando de Magalhães na Prússia ou sob o pano de fundo da cultura prussiana em época tão crítica da história do século XX. Esse interesse pode ser explicado por uma concepção de história guiada sobretudo pelo interesse em grandes nomes e, sobretudo, em vultos que, pelos seus feitos heróicos, marcaram o desenvolvimento da humanidade. Significativamente, o autor escolheu para abrir a sua obra uma frase de João de Barros, segundo a qual aquele que vive para a fama não necessita recear perigo (Wer für den Ruhm lebt, fürchtet keine Gefahr). Trata-se, portanto, não tanto de um interesse especificamente literário que leva a uma consideração de R. Baumgardt no âmbito dos estudos euro-americanos mas antes teórico-historiográfico e histórico-cultural.
O romance de Rudolf Baumgardt é dedicado a Marianne Baumgardt e traz a indicação de Veitshöchheim a. M.. O seu conteúdo é disposto em quatro capítulos, denominados metaforicamente segundo termos marítimos: Rebentação, Costa, Oceano e Marés. Além de dados históricos sobre a vida de Fernando de Magalhães e de sua expedição de primeira circumnavegação do globo, a obra inclui uma considerável bibliografia e ilustrações.
Referências ao Brasil
O episódio da estadia de Fernando de Magalhães e seus expedicionários no Brasil é tratado por Baumgardt em longo trecho. Baseando-se em A. Pigafetta, oferece descrições dos indígenas, de sua índole e cultura.
"Na praia esperavam nativos, que olhavam estarrecidos, cheios de curiosidade as caravelas. Estão nús, são bastante negros, sujos e pintados em todo o corpo. Quando os botes desceram à água, bateram com as mãos. Imaginavam que eram filhos do navio. A recepção é amigável. Pigafetta admira-se: Esses povos são extremamente confiantes e bons. Isso parece ser para êle a pré-condição mais útil para uma atividade missionária, pois acrescenta refletindo: poder-se-ia, com pouco trabalho, movê-los a aceitar a religião cristã. Na realidade, os espanhóis tiveram sorte; a boa recepção deu-se graças a uma ocorrência acidental. O país sofria há meses sob indizível calor e sêca; com a esquadra veio uma leve chuva, e a benesse foi atribuída pela superstição à conta dos forasteiros. Que maravilha, após o eterno balançar no mar poder colocar novamente os pés em terra firme. A tripulação transforma-se imediatamente. Alguém tinha protestado contra os sacrifícios? Não há destino mais belo do que o de ser marujo!
O comandante ordena que se construa um pequeno altar na praia; os religiosos celebram a missa, a tripulação a ouve mais compenetrada do que em casa. Os nativos se compartam silenciosos e admirados. Que hora inesquecível! A rebentação representa hoje os sinos, a cúpula vítrea do céu ampliou-se em catedral, a ladainha dos sacerdotes soa mais melodiosa, pois se mistura com o eco das ondas. O capitão-geral não os guiou excelentemente? Como se já estivessem no fim de sua viagem, deliciam-se com esses dias. Pigafetta observa os nativos exatamente. 'Os seus cabelos são curtos e lanhosos, e não possuem pelos em nenhuma parte do corpo, pois arrancam-nos.'
Êle se comunica por sinais, depois através de algumas palavras que rapidamente aprendeu. 'Não são cristãos, não adoram porém nenhum ídolo. Vivem muito tempo, alcançam freqüentemente uma idade de 120, às vezes 140 anos.' Isso já relatara Vespucci; êle descreve os brasileiros nas suas cartas, que contaram a sua idade com o auxílio de pedrinhas e mostraram-lhe as gerações desde os seus tataravós até o filho mais novo." (op.cit. 182 ss. trad. A.A.B.)
Referências à primeira execução devido à homosexualidade
Um aspecto de interesse histórico-cultural do relato romanceado de Baumgardt é o fato de não calar sobre uma ocorrência que outros estudiosos pouco consideraram ou silenciaram . Trata-se da execução, no Brasil, por ordem de Fernando de Magalhães, da execução de um dos oficiais da esquadra devido à prática sexual. Essa referência testemunha a ocorrência não só da homosexualidade na tripulação das viagens dos Descobrimentos, um fato pouco considerado na história cultural, como também de relacionamentos afetivos entre os marinheiros. A execução, como Baumgardt interpreta, ter-se-ia dado antes por questões de disciplina, sobretudo por tratar-se de relacionamento entre uma autoridade e um prisioneiro. O autor, com as suas tendências à ordem e à disciplina, não poderia deixar de julgar essa execução com necessária. "Com esses oficiais, que não valem pelo chumbo de uma bala, não se pode segurar as rédeas de nenhuma tripulação. O Coca na nave "Antonio" é um idiota. Não entende nada de navegação, e os suplentes formados por Cartagena o terrorizam. O pessoal no navio está totalmente indisciplinado. Henrique não observou que o Mendoza, no "Victoria", vive na mais estreita união com o seu prisioneiro Cartagena? O ex-vice-admiral tem mais autoridade na corveta do que o seu capitão. Deve-se agir. Quem deixa crescer plantas venenosas está perdido! Ou se consegue que a armada forme uma unidade, ou Ternate tornar-se-á um nada. De meias medidas não se atinge um objetivo, de paciência tolerante não se cria uma frota unificada pelo seu objetivo. Ao despontar da manhã, martelam os tambores. Os sinos dos navios assinalam alarma, todos os botes são levantados. Então surge o General perante as filas. Lê o julgamento e quebra um bastão branco. A suprema autoridade condenou o segundo oficial do Victoria à morte por causa de atos homosexuais. O delinquente é executado imediatamente. Um ajudante se dirige ao "Antonio". Coca é suspenso de seu posto, o até então reservista no navio-bandeira, Alvaro Mesquita, torna-se capitão. Mais uma nova ordem. É transmitida pelos mensageiros em todas as caravelas. Quem levar mulheres ou escravos será enforcado. O Admiral não tolera nem motivo para discórdia nem glutões." (op.cit. 186-187, trad. A.A.B.)
Prioridade da ciência e não do comércio
Uma análise desse romance histórico permite constatar, nas entrelinhas do texto, na disposição dos assuntos, nas interpretações de fatos e de caracteres posicionamentos e enfoques do autor. Para êle, a viagem de Fernando de Magalhães teria sido o mais audacioso e importante feito da época dos Descobrimentos e, ao mesmo tempo, o seu encerramento. Fazendo um balanço dos resultados do empreendimento, salienta, no final de sua obra, que o seu maior mérito residira não no fomento do comércio mas no fato de ter iniciado uma nova época da ciência e dos sistemas de concepção do mundo. Considera as relações entre os conhecimentos científicos e a política, insinuando também as conseqüências amplas dos êrros cometidos pela ciência.
"Mais do que o comércio ganha a ciência. O seu progresso não pode ser calculado em números, o espírito que faz entusiasmar, que movimentou o grande projeto, a pertinácia do admiral, a coragem dos oficiais, o esquecimento de si da esquadra colhem para o Todo os mais magníficos frutos da árvore do verdadeiro conhecimento. Com base na prova da forma redonda da terra elevar-se-á futuramente o conhecimento do universo, todos os sistemas dos pensadores se construirão a partir de então dessa viagem; cosmógrafos, cientistas naturais, astrônomos, filósofos, historiadores e pilotos terão que reaprender; a extensão do mundo até então subestimada tornou-se conhecida de todos, a época grandiosa dos Descobrimentos se fecha com o sua mais portentosa descoberta.
Do cálculo erudito pode-se tirar conseqüências. Na nova época da humanidade, a hipótese pode-se unir à experiência. Copérnico inqueriu o firmamento e os planetas, Galileu seguiu a sua lógica, logo Tycho de Brahe e Johannes Kepler erigiram doutrinas definitivas.
O que para um é o dinheiro e para outros o enriquecimento de suas faculdades; para a política o que vale é o prestígio. Carlos da Espanha pode agora dizer que no seu império na realidade o sol não se põe. De resto, o seu jôgo com os portugueses se desenvolve indeciso. Brito anexou as Molucas, Valladoli contraria a sua legitimação acadêmica de posse, até então nem o Tejo nem Castela sabem que o projeto desse empreendimento, que fundiu o impossível de séculos no quadro do alcançável, floresceu do êrro.
Somente quando as distâncias forem melhor pesquisadas e adicionadas de forma precisa é que vai-se poder constatar que a terra das maravilhas não cai em área espanhola, mas na metade da linha de demarcação lisboeta." (op.cit. pág. 366)
Realidade dos fatos e vida heróica
As últimas palavras de Baumgardt manifestam uma visão do mundo na qual contam sobretudo a realidade dos fatos. Somente estudos analíticos de outras obras de sua autoria poderão demonstrar se essas palavras representam apenas um recurso literário ou expressão de um edifício de idéias de cunho político.
"Enquanto o pulsar das marés bate nas costas da terra, enquanto a maré cheia alternar com a calma maré vazia, o seu nome, o seu exemplo será modêlo de uma existência que se elevou do nada à perfeição, da força à complitude, um imortal exemplo entusiasmante de uma vida verdadeiramente heróica. O fato é mudo. O fato é eterno." (op. cit. pág. 368)
A "História da primeira viagem ao redor do mundo" de Rudolf Baumgardt apresenta, assim, vários elementos de uma concepção do mundo, do homem e da história que justificam a sua publicação em elevada tiragem (de 6 a 10.000 exemplares) em época crítica da Guerra. Que a obra foi bem vista pelos nacional-socialistas não pode haver dúvida. Entretanto, elos com a ideologia política alemã da época não são explícitos. Sabendo-se que o fascínio despertado por Fernando de Magalhães e a sua viagem também pode ser constatado na obra de autores não relacionados com o regime (veja texto sobre a obra respectiva de Stefan Zweig nesta edição), pode-se partir da suposição de que aqui se trata antes de uma concepção de história - centralizada na biografia de vultos "heróicos" - que marcou um "espírito do tempo". À teoria da história caberia, portanto, primazia na análise cultural e a ela também especial responsabilidade nos edifícios de pensamento e na política, com todas as suas conseqüências. Estudos comparativos mais pormenorizados das publicações quase que concomitantes de Baumgardt e Zweig poderão determinar diferenças mais sutís dentro de edifícios de pensamento que apresentam certas similaridades à primeira vista.
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).